Salve o Almirante Negro

RI São João de Meriti (RJ) 01/06/2021 - Dez Anos de Financiamento Coletivo. Movimento Negro Muro, idealizado em 2018 por Pedro Rajão e Cazé, foi vencedor do 1 Prêmio Benfeitoria de Financiamento Coletivo. O projeto vem pintando painéis com personalidades negras do Brasil e de fora. Na foto, painel sobre João Cândido, na Rua Turmalinas, em São João de Meriti. Foto de Márcia Foletto

Na noite de 22 de novembro de 1910, cerca de 2.300 marinheiros se amotinaram e tomaram de assalto os quatro principais navios de guerra brasileiros, recém-chegados da Europa, e que estavam entre os de maior poder de fogo em todo o mundo. Liderados pelo experiente e respeitado João Cândido Felisberto, ou simplesmente João Cândido (o “Mestre Sala dos Mares”, eternizado na canção de Aldir Blanc e João Bosco) eles apontaram seus pesados canhões de grosso calibre para o Rio de Janeiro e ameaçaram bombardear a capital caso não fosse posto um fim ao costume de se aplicar, com extremo rigor, castigos físicos nas embarcações. O episódio passou à História como a Revolta da Chibata.

A revolta propriamente começou na véspera, quando o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas na presença de toda a tripulação do encouraçado Minas Gerais, a nau capitânia da esquadra do Brasil. O marujo continuou sendo açoitado mesmo após desfalecer, o que gerou uma imensa indignação em toda a região do porto do Rio de Janeiro. Passados pouco mais de 20 anos da Lei Áurea, o oficialato majoritariamente branco e elitizado achava natural punir dessa maneira os marujos, quase todos negros, que cometessem qualquer infração ou deslize.  O governo tentou resistir e retomar a disciplina, mas após quatro dias de pressões de todos os lados, e sem ter como enfrentar o poderio daqueles navios, o presidente Hermes da Fonseca aceitou os termos propostos e prometeu anistia a todos os envolvidos. Mas a promessa jamais foi cumprida.

Dias depois, centenas de marinheiros que participaram do movimento foram expulsos da Marinha pelas mais variadas razões. Muitos foram assassinados. O líder, João Cândido, foi preso e enfrentou pesadas torturas físicas e psicológicas que quase tiram sua sanidade mental. Viveu uma vida de perseguições até vir a morrer em 1969 como um humilde pescador em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Nem morto foi deixado em paz. Seu enterro contou com a presença ostensiva de policiais e agentes do DOPS. Em 2019 a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) reconheceu seus feitos e inseriu seu nome no livro de heróis e heroínas do estado, por iniciativa dos deputados André Ceciliano e Waldeck Carneiro. Mas a nível nacional, a Marinha Brasileira ainda se recusa a admitir o ato de heroísmo do Almirante Negro.

Em reportagem publicada hoje (20/11), Dia da Consciência Negra, a Folha de S Paulo revela que duas semanas atrás, durante reunião da Comissão de Cultura, Educação e Lazer do Senado que aprovou, após longo percurso, a inclusão do nome de João Cândido no Livro dos Heróis da Pátria, a Marinha enviou aos parlamentares uma nota citando quebra de hierarquia e disciplina. A mesma posição expressa desde 1910. O texto afirma ainda que a força não considera o movimento um “ato de bravura” ou de “caráter humanitário”. A nota da Marinha fala das ameaças de bombardeio à cidade do Rio e afirma que vidas foram sacrificadas, inclusive duas crianças atingidas por um projétil _ um fato verídico, embora historiadores ressaltem que os marinheiros posteriormente juntaram dinheiro para ajudar as famílias das vítimas. A Marinha diz ainda não considerar que os castigos físicos estivessem corretos, mas salienta que reconhecer erros não justifica avalizar outros, citando a exaltação dos revoltosos como exemplo. Apesar da nota a homenagem foi aprovada por unanimidade e agora segue para apreciação da Câmara dos Deputados.

O projeto que propõe reconhecer João Cândido como herói nacional foi apresentado pela primeira vez em 2007 pelo hoje senador Paulo Paim, mas acabou arquivado pela Câmara. O que tramita atualmente é de autoria do então senador Lindbergh Farias. Um ano depois, em 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou projeto da senadora Marina Silva que concedeu anistia póstuma a João Cândido e seus companheiros. Porém, foi vetado o trecho que garantia todos os efeitos da anistia, citando promoções a que os anistiados teriam direito caso tivessem seguido no serviço ativo e pensão por morte. O argumento do governo para o veto foi o impacto orçamentário daquela medida. Ainda em 2008 Lula inaugurou uma estátua de João Cândido no Rio, sem participação de representantes da Marinha ou do Ministério da Defesa na cerimônia.

Longe das discussões de Brasília, no Rio, ALERJ e a Prefeitura de São João de Meriti, onde João Cândido morou boa parte da vida e que o reconheceu como herói municipal, alinham a criação do Museu Marinheiro João Cândido. O acervo está hoje provisoriamente guardado no Centro de Referência em Direitos Humanos, em Vilar dos Teles. Uma emenda da deputada Benedita da Silva já garantiu recursos para os primeiros projetos. Uma das ideias, que perdeu um pouco o fôlego recentemente, era restaurar a antiga casa de veraneio da Embaixada de Portugal, um edifício de relevância histórica, com vista espetacular para a Baía de Guanabara, e que abrigou bailes famosos por onde circulavam nomes como Carmen Miranda e Getúlio Vargas.

Neto de escravos, nascido em 24 de junho de 1880 em Encruzilhada do Sul, no Rio Grande do Sul, João Cândido era um marinheiro muito respeitado e reconhecido em sua época como alguém que entendia de mar. Tanto que foi um dos poucos escolhidos para viver dois anos na Inglaterra acompanhando a construção dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo e do cruzador Bahia _ reforços que tornariam a Marinha brasileira a terceira mais poderosa do mundo no começo do século XX. . Lá fez contatos e amizade com marinheiros ingleses, já sindicalizados.  “Na expressão usada pelos rebeldes, queriam uma Armada de cidadãos, não uma fazenda de escravos”, aponta o historiador José Murilo de Carvalho: “a Marinha tinha tido tempo mais do que suficiente para fazer mudanças exigidas pelas novas tecnologias e no treinamento de praças e oficiais já adotadas por outras Marinhas, mas não o fez. Tínhamos os melhores encouraçados do mundo, numa organização totalmente defasada”. Na reportagem publicada hoje pela Folha, Paulo Paim é claro: “O que aconteceu há 110 anos não pode ser motivo, com a evolução dos tempos, de não reconhecer a bravura da história de João Cândido. Zumbi mesmo se levantou contra o poder da época, foi morto e está no Livro dos Heróis da Pátria, assim como Tiradentes”.