AS HERDEIRAS DE MARIELLE

POR AYDANO ANDRÉ MOTTA

Uma brisa progressista sacode o protetorado de homens brancos da política fluminense, consolidando as trajetórias de três mulheres negras, decididas praticantes de um estilo inovador nas disputas de poder. As casas legislativas, catedrais do conservadorismo, abrigam um trio de feministas, que impõe novas agendas e inaugura outra atitude na vida pública. A eleição de 2022 também foi delas.

Da solidez ideológica à firmeza identitária, da altivez ao visual, há quase nada de convencional na deputada federal Talíria Petrone (PSOL) e nas estaduais Renata Souza (PSOL) e Dani Balbi (PCdoB). As duas primeiras estrearam em 2018 e, após quatro anos de batalhas na estrutura tradicional do parlamento, foram referendadas por votações consagradoras. A terceira é a primeira transexual na Assembleia Legislativa do Rio.

Assumidas herdeiras do legado de Marielle Franco – a emergente liderança política carioca assassinada no início do mandato de vereadora, em 2018, crime de repercussão planetária e ainda impune –, elas têm origens nos setores mais esquecidos da sociedade. Vem dos rigores da vida nas periferias a coragem para enfrentar preconceitos no Legislativo.

“Sou uma soldada revolucionária”, anuncia-se Dani Balbi, 33 anos, professora e roteirista criada no Engenho da Rainha, nas franjas do Conjunto de Favelas do Alemão, consagrada por 65.815 eleitores. “Procuro equilíbrio na luta contra os intolerantes, para cumprir os compromissos da cidadania. Bolsonaristas não têm agenda, nem pauta, muito menos compromisso. Nossa resposta será no tom necessário”, avisa ela, que planeja exercer sua “mandata”  com a presença do povo nas galerias da Alerj “para constranger os conservadores”.

O plano dela prevê a construção de uma educação anti-misógina e anti-LGBTfóbica, coerente com a militância que tem como outras grandes pautas a ciência e a cultura. Ela defende ainda a humanização de aspectos econômicos – por exemplo: a concessão de renúncia fiscal deve contemplar a reserva de vagas para pessoas LGBTQIA+ nas empresas beneficiadas. “Podemos melhorar esse mecanismo, humanizando o impacto econômico”, prega uma das quatro trans eleitas no país – com as federais Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) e a também estadual Linda Brasil (PSOL-SE).

A pioneira “soldada” trans carioca cerrará fileiras com um dos grandes sucessos progressistas de 2022. Renata Souza, do PSOL, teve o mandato renovado por contundentes 174.132 eleitores, a terceira maior votação do estado. (Considerando que os dois primeiros, Márcio Canella e Douglas Ruas, são de, respectivamente, Belford Roxo e São Gonçalo, ela foi a campeã na capital.) A jornalista teve, aliás, a preferência de 5.259 “compatriotas” da Maré, o conjunto de favelas que inclui a Nova Holanda, onde ela nasceu, há 40 anos, e viveu até o início da idade adulta.

Muito ligada a Marielle (era amiga e assessora da vereadora), Renata lutou por seu território no primeiro mandato. Teve participação na aprovação de projeto de doação de R$ 20 milhões da Alerj para combater a covid-19 em comunidades populares e periferias, beneficiando 120 mil famílias com realizações como a construção de oito cozinhas comunitárias, no Rio e na região metropolitana. Aprovou, com as colegas Dani Monteiro (PSOL) e Martha Rocha (PDT), a Lei Ágatha Felix – a menina do Complexo do Alemão morta por tiros de fuzil –, que garante prioridade na investigação dos crimes contra a vida de crianças e adolescentes.

“O campo progressista pode ser menor, mas tem muito mais qualidade”, resume a deputada que, mestre, doutora e pós-doutora pela Uerj, pretendia virar professora (“Conversei isso com a Marielle”, recorda) até o assassinato da amiga. Acumulou 64 mil votos na primeira eleição, iniciando mandato de luta pelos mais pobres e alvos de violências diversas.

Na terra de tantas chacinas e de genocídio dos corpos negros, está longe de ser fácil – e Renata muitas vezes precisou levantar a voz para ser ouvida. A reação chauvinista tentou rotulá-la como descontrolada, mas não prosperou. “Falei alto e bati boca para responder à ofensa de um homem e a visão machista tenta emplacar a ideia da mulher destemperada. É machismo e racismo”, ataca, argumentando que a sociedade naturaliza a histeria masculina.

E segue o baile. “As pessoas terão que lidar com nossa voz alta”, avisa. “Não vou pedir licença para falar nem me submeter a um clichê para estar no espaço de homens brancos, que matam rindo”, avisa, conjugando firmeza e serenidade. Um saber forjado no dia a dia da Maré, que não abandona por nada. “Vou toda semana, faço feira lá e também frequento a Rocinha e o Complexo do Alemão”, lista ela, orgulhosa componente do Gato de Bonsucesso, escola de samba da Maré que desfila na Avenida Intendente Magalhães.

A violência no que deveria ser espaço de convivência plural e democrática nasce do estranhamento dos conservadores diante das pautas e mesmo dos corpos das “novas” parlamentares, diagnostica Talíria Petrone, a professora niteroiense reeleita com 198.534 votos, a terceira mais popular do estado. E com ela, o preconceito mostrou a cara antes do resto todo: em 2018, a deputada noviça foi barrada na própria posse!

“Um país com quatro séculos de escravidão, onde o poder sempre foi de homens brancos, heteros cis normativos, donos de terras, não pensou o poder para nós”, analisa. “Infelizmente, ainda somos minoria, apesar de fazermos política em todos os espaços”, constata Talíria, que encara a brutalidade desde os tempos de vereadora, na sua Niterói.

Nascida na Riodades, bairro de classe média-baixa na região do Fonseca, ela tem a educação como agenda central, mas se insurge, desde sempre, contra o genocídio dos jovens negros, nas favelas. “A cidade tem extrema-direita organizada e a Câmara muito violenta.

Lembro que conversava com a Marielle sobre a diferença de clima sempre que falava em letalidade policial”, relembra. “Quando pedi, na tribuna, um minuto de silêncio pelas vítimas da chacina do Salgueiro (ação que resultou na morte de nove pessoas no conjunto de favelas em São Gonçalo), sofri ameaças de morte”.

A intolerância prosseguiu em Brasília e Talíria precisou falar alto para garantir o direito à própria voz. A altura – 1,76m –, que viabilizou pequena carreira no vôlei ainda na adolescência virou ferramenta política, e teve colega tentando cortar o microfone da deputada. Em vão. “O parlamento não é feito para mulher, para mulher negra e muito menos para as mães”, lamenta ela, que levou Moana Mayalú, a filha de dois anos, ao gabinete e à tribuna, produzindo imagem histórica. (E a família vai aumentar na virada do ano, com a chegada de um menino.)

O novo mandato será de sustentação ao novo governo Lula – se as previsões das pesquisas estiverem certas – e à discussão de políticas sobre drogas, contra a letalidade dos jovens negros, e no combate à penetração do racismo nas estruturas sociais. “Grandes desafios, para um governo que estará ainda diante do fascismo”, prevê ela. De qualquer jeito, as três parlamentares abrirão caminhos na direção de um país mais justo. “Todo mundo tem medo de mulher preta. Somos incontroláveis”, define Renata Souza, antecipando que o mofo da política não terá sossego.