FLORESTA DE EMOÇÃO  E SAUDADE

POR AYDANO ANDRÉ MOTTA

Camillo Glockl (3.4.1992/21.12.2021). Presenteei-o plantando uma palmeira, árvore favorita dos pássaros pelos seus frutos. Homenagem de sua mãe, Denise.

No calvário imposto aos brasileiros na pandemia, entre várias tragédias, multiplicaram-se os enterros impessoais, sem pranto nem cerimônia, com as famílias apartadas, impedidas até de velar seus mortos, pelo risco de contaminação. Uma iniciativa na Zona Oeste do Rio de Janeiro conjuga sensibilidade e cidadania para amenizar a dolorosa viagem do luto: o Bosque da Memória.

A área no Recreio dos Bandeirantes saiu do abandono para se transformar num parque cheio de árvores, plantadas em homenagem à memória de vítimas do coronavírus. Há ainda bancos e grandes espaços para piqueniques. Uma grande celebração à vida e ao meio ambiente, emoldurada pelas árvores para reverenciar os que partiram.

Claudia Souza Pereira (24.4.1968/8.8.2021). Realizamos o plantio da aroeira e a esperança que uma nova vida esteja presente. Homenagem de sua família.

O terreno atravessa oito quarteirões, nas franjas do Parque Municipal Chico Mendes, e abriga exatas 156 árvores, nomeadas em memória às vítimas da pandemia. Seus 24,7 mil metros quadrados (ou 2,7 alqueires) foram adotados oficialmente por uma cidadã, a arquiteta Isabelle de Loys. Nascida há 55 anos em Lausanne, na Suíça, vive há 51 no Rio, primeiro no Leme, onde cresceu e morou até se mudar, década e meia atrás, para o Recreio. A trajetória sedimentou em sua vida a ligação com o mar e a natureza.

Bicampeã mundial de surfe de peito, Isabelle aprendeu o valor da preservação pela via do esporte. “Nossa responsabilidade com a cidade não termina na janela ou na porta de casa”, ensina ela, que desde muito jovem se acostumou a recolher o lixo alheio na areia da praia. “São os nossos quintais, precisamos cuidar”, prega.

Antônio Isidro Fernandes (11.9.1948/9.10.2020), casado dois filhos, três netos. Que bom poder te homenagear plantando um ipê-amarelo e continuar mantendo um cuidado ao te regar. De sua sobrinha Marilene.

A lição transbordou para a prática – e virou objetivo de vida – quando Isabelle se deparou com a área degradada na beira da Alameda Sandra Alvim, entre sua casa e a orla. Além do abandono, havia o perigo sempre à espreita da especulação imobiliária. E a arquiteta tomou a decisão de adotar o espaço, para transformá-lo num parque.

“Mas a senhora tem noção do tamanho?”, admirou-se o funcionário da Fundação Parques e Jardins, ao ouvir a demanda. Aliás, tourear a burocracia para materializar a iniciativa significava subir um Everest de papel, requisições e protocolos. Esporte radical – mas Isabelle encarou.

A Comlurb foi a primeira parceira, seguida pelo grupo Patativas do Recreio, seis vizinhas do terreno que “compraram o barulho” e embarcaram na iniciativa. “No primeiro dia, tiramos 250 quilos de lixo”, recorda a arquiteta, lembrando que o coletivo comprou as primeiras quatro lixeiras do lugar (hoje são 34). Até que, em janeiro de 2019, a adoção saiu no Diário Oficial.

Denise Mattos e Silva (16.2.1963/24.5.2021).

Sua figura hoje se exterioriza por meio de um lindo ipê-amarelo. Nelson, Bruno, Bianca, Isabella, Gabriel e Estella.

No meio de 2020, Isabelle conheceu os Bosques da Memória, campanha criada por ONGs ambientalistas, ligadas à preservação da Mata Atlântica, de plantio de árvores e recuperação de florestas, como gesto simbólico em homenagem às vítimas da covid-19. Ela (que não perdeu ninguém na pandemia até agora) enxergou a destinação ideal do terreno. Iniciava-se nova batalha.

A vizinhança se ofendeu com a ideia, falando em “baixo astral, “isso aqui não é cemitério”, “mau agouro” e outras barbaridades. A pressão afetou a saúde de Isabelle, que sofrou um infarto, mas o histórico de atleta (aqui, verdadeiro) a salvou. “Pensei em largar diversas vezes, mas continuar me fortaleceu”, reconhece.

Rogelio Gonçalves de Gutierrez (3.4.1934/28.3.2021). Escolhi uma árvore forte, a grumixama. Lembra meu marido e sua fortaleza. Marly de Castro Gutierrez, esposa.

Um dia, a empresária e escritora Antonina Buriti foi plantar duas árvores no parque, em homenagem à mãe e ao marido, André, mortos na pandemia. “Todo o processo do bosque foi muito acolhedor”, atesta ela, chamada de Nina por amigos da vida toda. “Vejo André e minha mãe de mãos dadas. É maravilhoso estar com meus filhos na sombra de árvores que nós plantamos”.

A amizade das duas se firmou de maneira instantânea e deu no livro “Bosques da memória – plantar, transformar e ressignificar” (Editora Patuá). Nina, veterana do voluntariado, integrou-se à pequena tropa cidadã que cuida do lugar. “No começo, meu filho, Luigi, achou que eu estava ficando ainda mais maluca”, diverte-se ela, diante das mudanças que a cidadania proporciona.

Najá Buriti (2.7.1948/19.4.2021). Uma paineira branca. Com amor, Antonina.

Isabelle constata ter liderado uma conquista para pessoas tão sofridas. “É lindo ver o alívio das pessoas no plantio. Fica muito mais leve de carregar a dor da perda”, relata ela, que coordena a escolha das espécies, respeitando o ecossistema da região. “São na maioria árvores frutíferas de restinga”.

O resultado inaugura o círculo virtuoso que só a natureza consegue realizar. A fauna ressurgiu com capivaras, pássaros, cobras, gambás e outros bichos compondo o cenário ecológico. A praga dos vizinhos intolerantes se esvaneceu e o bosque encheu a região de beleza e bem estar. Moradores passeiam com cachorros e sentam nos bancos para ler ou simplesmente ver a vida passar.

Dulce Alves de Sant’Anna de Melo (10.9.1928/5.6.2021).

Seu nome é pau-brasil: robusta, intensa e linda. Com amor, sua filha, Regina.

 Candidata a vereadora em 2020 (“Vou tentar de novo em 2024”), Isabelle alerta que não recebe qualquer remuneração pelo trabalho; é pura paixão cidadã. Agora, trabalha num segundo projeto: criar ali o maior museu de esculturas a céu aberto do Rio. Além disso, recebe denúncias de crimes ambientais por toda a cidade e participa de audiências públicas sobre assuntos ligados ao meio ambiente.

“Minha cruzada, no sentido amplo, é individual. Fazer o certo muitas vezes incomoda, transforma a gente em uma pessoa chata. Mas tudo bem”, avalia. “Se cada um adotar um pedacinho do Rio, teremos nossa Cidade Maravilhosa de volta”.

Clelio Guimarães Alves

(24.4.1963/16.1.2021).

Plantamos pau-brasil, árvore que ele adorava.

De seu filho, Caio, e da mulher, Helena.