O RENASCIMENTO DO VALE DO CAFÉ (E MUITO MAIS)

Durante mais de um século, nada menos que 75% de todo café consumido no mundo foi produzido aqui

Jan Theophilo

Espécie de Vale do Loire fluminense, devido ao luxo das sedes de suas fazendas, o Vale do Café está renascendo graças à produção de queijos, cachaças e cafés de qualidade internacional, e vem com tudo para se tornar um importante polo de turismo rural.

Durante mais de um século, nada menos que 75% de todo café consumido no mundo foi produzido aqui. Exatamente a duas horas e meia da Guanabara, na região formada por 15 municípios e conhecida como o Vale do Café. Era o começo do Ciclo do Café, um dos mais importantes períodos econômicos da História do Brasil, que impulsionou tanto riquezas como a tragédia do trabalho escravo. As fazendas produtoras ganharam sedes opulentas, dando ao local ares algo semelhantes aos do Vale do Loire francês, e mais de um milhão de servos (20% do número oficial de pretos escravizados que chegaram ao Brasil trabalharam em seus cafezais). Mas nem tudo era opressão, luxo ou riqueza. O manejo equivocado do solo exauriu as terras, e com a chegada dos imigrantes italianos, a produção cafeeira se mandou para as terras roxas de São Paulo. “Se Las Vegas foi erguida sobre as areias do deserto, o Vale do Café foi construído sobre o sangue dos negros escravizados”, pondera Nestor Rocha, membro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e presidente do Instituto Preservale – uma articulação de fazendeiros, empresários e gente apaixonada pelas belezas locais que está promovendo imensas transformações na região. A boa notícia é que o bom e velho vale está renascendo. Livre, claro das mazelas que, outrora, mancharam nossa história. Com base num tripé de Arranjos Produtivos Locais (APLs) focados no turismo e na produção de queijos, cachaças e (por óbvio) cafés de extrema qualidade, que vêm conquistando títulos e destaque em competições não só aqui como também no exterior.

“O Brasil é o Vale. Ele é o pote embrionário da cultura brasileira. Você tem aqui a maior bacia hidrográfica do Sudeste e, em torno disso, a miscigenação de vários povos: os indígenas, os europeus, os africanos, árabes, judeus…”, diz Cristina Braga, uma das maiores harpistas brasileiras e uma das pioneiras desta retomada (veja texto adiante): “O Vale do Café é, portanto, uma coisa incontornável para quem quer se entender como brasileiro, e para quem quer entender o Brasil enquanto estrangeiro.”

O impacto da produção cafeeira local na economia brasileira é facilmente mensurável pelos números. Em 1790 a região produzia cerca de 400 toneladas anuais de café. Este volume saltou para 350 mil toneladas em 1870, tendo o auge da produção entre as décadas de 1820 a 1870. E este desenvolvimento foi construído sobre a dor e o sangue da população escravizada, que tornou nosso país o maior produtor mundial de café no século XIX. Em 1845 o Brasil produzia 45% do café mundial. Os navios portugueses trouxeram homens, mulheres e crianças para uma vida de sofrimento e maus tratos, sem dignidade ou liberdade. Apenas uma das fazendas da região possuía o registro impressionante de 380 trabalhadores escravizados. Mas a presença deles foi tão forte e marcante que em tudo que temos hoje há o seu legado. Na música, na indumentária e na religião, que guarda marcas indeléveis de sua vinda.

Para suprir a infertilidade das terras, a produção de café passou a ser itinerante. Depois da proibição do tráfico de escravos pela Inglaterra, o Brasil teve que progressivamente se adaptar aos novos tempos, substituindo a mão de obra sequestrada da África pelos imigrantes europeus assalariados. Mas essa chaga ainda não foi totalmente cicatrizada. Segundo dados da Coordenação-Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas (CGTRAE), do Ministério do Trabalho e Emprego, o Brasil registrou em pleno seculo XXI, no ano passado, o maior número de resgatados em condições análogas à escravidão em 14 anos. No último ano, foram resgatadas 3.190 pessoas. Em 2009, foram 3.765 trabalhadores.

Com a transferência da produção para São Paulo, o Vale entrou em decadência e, durante muitos anos passou a ser visto apenas como uma região falida, remanescente de uma sociedade escravocrata e que promoveu a derrubada maciça da Mata Atlântica para o plantio do café. Mas o jogo está começando a virar. A região aposta agora no Turismo Rural para retomar o esplendor de outrora. Das antigas e suntuosas sedes, exatas 190 continuam de pé, parte delas já adaptadas como hotéis, hotéis-fazenda e/ou hotéis-butique. Uma das mais espetaculares é a Fazenda São Luiz da Boa Sorte, que proporciona aos turistas uma verdadeira imersão nos costumes dos antigos barões do café, com hospedagem requintada inspirada no século XIX, atrações típicas de hotel-fazenda e gastronomia de primeira. E os resultados já começam a aparecer. Segundo o secretário estadual de Turismo, Gustavo Tutuca, no último Carnaval os hotéis da região cravaram taxas de ocupação quase idênticas às da capital: “enquanto no Rio a ocupação dos hotéis ficou em torno dos 87%, no Vale do Café ela chegou a 85%”, festeja Tutuca.

Antigos cafezais adotaram novas práticas, com apoio da Embrapa e da Emater. A colheita é feita agora em duas etapas, o que proporciona um produto de qualidade superior aos que se encontram no mercado. Alguns cafés do Vale chegam a custar mais de R$ 200 o quilo.

Mas como um bom cafezinho requer acompanhamento a altura, no APL (Arranjo Produtivo Local) do Queijo, por exemplo, hoje quatro fazendas integram a Rota dos Queijos, proporcionando aos visitantes uma imersão no processo de produção, desde a matéria-prima até o produto, com degustações que elevam a experiência.

Uma delas é a Fazenda Du’Vale, cujo queijo fino possui certificações nacionais e internacionais, inclusive o reconhecimento de especialistas franceses. Ela abriga a primeira caverna subterrânea do Brasil para a maturação de queijos, para proporcionar um elemento mineral de qualidade e tornar o queijo um produto artesanal e único.

Além disso, hoje pelo menos nove cidades do Vale do Paraíba produzem cachaças artesanalmente. O processo é rápido, mas quanto mais antiga a bebida, melhor e mais requintado o seu gosto. A maioria dos alambiques da região está nas mãos de famílias que mantém uma tradição de gerações. Em Rio das Flores, por exemplo, fica o alambique da Cachaça Werneck, envelhecida em barris de carvalho por 10 anos, bicampeã do Concours Mondial de Bruxelles, edição brasileira, e que custa a partir de R$ 130 a garrafa.

“Turismo gera emprego, movimenta a economia e você faz as pessoas felizes. Cada restaurante que abre é uma indústria sem chaminé. Você traz empresas sem poluir. Mas para que isso tudo funcione é preciso gerar brilho nos olhos”, diz Wanderson Farias, assessor especial da Secretaria Estadual de Turismo e coordenador das ações do turismo do Vale do Café. Nos últimos anos, Wanderson percorreu as principais feiras e eventos do trade turístico brasileiro apresentando as maravilhas da região. “Eu sempre carregava na mochila um kit com queijos, cachaças, cafés e folders apresentando a região. Muita gente não acreditava que tudo isso existia a 120 quilômetros da capital do Rio”, diz ele. A peregrinação funcionou. E hoje mais de 150 operadoras incluem as rotas do Vale do Café em seus portfólios.

E outros produtos estão a caminho. Entre 1992 e 2016 o Senai ofereceu em Vassouras o único curso de técnico cervejeiro da América Latina. “Dois anos depois que o Senai encerrou suas atividades, a Universidade de Vassouras decidiu que não poderíamos abandonar esse legado e decidimos continuar”, conta Ligia Marcondes, professora do curso de Engenharia Química da instituição. “Hoje conseguimos produzir qualquer tipo de cerveja. Ainda não entramos no mercado, até porque estamos nos adequando para nos tornarmos uma cervejaria certificada pelo Ministério da Agricultura. Não posso te precisar quando atingiremos essa etapa, mas quem sabe não teremos em breve uma bela surpresa na região”, diz ela.

Já no aspecto essencialmente turístico, a expectativa é grande para a conclusão das obras de restauro do casarão de 1853 onde funcionou o Hospital da Santa Casa de Misericórdia e, depois, o Asilo Barão do Amparo. Em 2017, o Instituto Vassouras Cultural, fundado pelo empresário Ronaldo Cézar Coelho, adquiriu o casarão após seis anos de negociações. O local será reinaugurado em breve como o Museu das Identidades. A ideia é destacar ali a história regional no período entre 1830 e 1880, auge do Ciclo do Café, mas tendo como diferencial a visibilidade de personagens escondidos e silenciados pela história, como Marianna Crioula, uma mulher negra escravizada durante o século XVIII, que se tornou símbolo da resistência negra à escravidão no Brasil. Ela foi líder da última grande insurgência do Império que ajudou a libertar cerca de 400 outros escravizados na região do Vale do Café, em 1838.

Além disso, o Vale do Café Convention & Visitor Bureau tem estudos avançados para lançar 20 novas rotas na região, além do café, da cachaça e do queijo. Entre elas a Rota Afro, a Rota Romântica e a Rota das Quaresmeiras, espécie de árvore nativa com flores de coloração roxa. “Nós temos uma capacidade incrível de crescer com turismo, trabalhando com as vocações de cada município”, conta Wanderson Farias. “Paty dos Alferes, por exemplo, está investindo no turismo rural. Miguel Pereira, em gastronomia e parques temáticos, como o Terra dos Dinos, o maior parque de dinossauros do mundo, que ocupa uma área de mais de 50 mil metros quadrados e está dando super certo”, diz.

Mas como tudo que acontece nesse país, não poderia faltar uma polêmica. Em 2022 a Prefeitura de Barra do Piraí instalou numa praça do distrito de Ipiabas um Boeing 727-200, de 52 metros de comprimento. Seria o “primeiro avião do metaverso do mundo”: um local onde turistas entrariam em contato com ferramentas de realidade virtual contando a história do Vale do Café. No entorno do avião está previsto um vagão de trem que será adaptado como um bar de gelo, uma estação ferroviária do século XIX totalmente reformada, e uma Maria Fumaça que fará um percurso entre o centro de Ipiabas e alguns dos mais suntuosos palacetes das antigas fazendas dos barões de café. A população não gostou muito da ideia, que gerou um processo do Ministério Público. Se vai dar certo ou não, é difícil saber. Mas o importante é que, após quase dois séculos de decadência, o Vale do Café está vindo com tudo para sacudir a poeira e superar as adversidades. Vai aí um cafezinho?

A planta é nativa da Etiópia

O BOM FILHO À CASA TORNA

Depois de quase um século, a região do Vale do Café está voltando a produzir… café! E do tipo especial, que exige uma cultura artesanal, adotada por diversas fazendas da região, muitas delas também centenárias. Maior produtor mundial da commodity na virada do século XIX para o XX, o Vale do Paraíba fluminense — que abrange 15 municípios — está reintroduzindo os cafezais, em um projeto apoiado pelo Sebrae.

Você já ouviu falar em memória olfativa? Nossos cérebros são verdadeiras caixinhas de lembranças, e basta um estímulo para abrir essa caixa e nos levar ao encontro a pessoas e lugares, associando o cheiro a momentos importantes de nossas vidas. O aroma do café nos conecta aos nossos lares, famílias e momentos felizes. O café como apreciamos hoje se tornou conhecido nos últimos três séculos, e sua trajetória até chegar ao Brasil tem muita história para contar.

Não existem registros oficiais sobre a origem do café. Sabe-se, entretanto, que se trata de uma planta nativa das regiões altas da Etiópia (Cafa e Enária). Segundo uma das lendas, foi um pastor etíope, chamado Kaldi, quem percebeu que havia algo diferente nas plantas da região. Ele havia alimentado suas cabras com arbustos e folhagens que tinham um fruto amarelo avermelhado e notou que os animais ficaram mais animados e com energia, a medida em que mastigavam os frutos.

Intrigado com o comportamento de suas cabras, ele levou uma amostra da planta para um monge. O religioso, inicialmente, não aprovou a ideia, e mandou que as plantas fossem jogadas numa fogueira. Quando os monges sentiram o aroma dos grãos torrados, ficaram encantados e curiosos. Eles então resolveram preparar uma infusão com as plantas e frutos. Assim que consumiram o preparo, comprovaram que ele causava mesmo uma certa agitação. Considerando os efeitos positivos, os monges passaram a consumir o preparo dos frutos nas noites de reza. Mas foi no Iêmen que a planta ganhou o nome que é conhecido nos dias de hoje, denominadas inicialmente como Kaweh, Kahwah ou Cahue, que significa Força.

No Brasil as raízes do café foram plantadas no século XVIII, quando as mudas da planta foram cultivadas pela primeira vez que se tem notícia, por Francisco de Melo Palheta, em 1727, no Pará. A partir daí, o café foi difundido timidamente no litoral brasileiro, rumo ao sul, até chegar à região do Rio de Janeiro, por volta de 1760. Porém, sua produção em escala comercial para exportação ganhou força apenas no início do século XIX. Tal dimensão de produção cafeeira só foi possível com o aumento da procura do produto pelos mercados consumidores da Europa e dos Estados Unidos.

Mas a partir de 1880, a situação econômica do café começa a ficar ruim, devido à pouca utilização de novas técnicas na produção, ao inevitável e necessário processo abolicionista, crise de superprodução em 1897 e à política deflacionista de 1898 a 1902. O café encontrou uma série de limitações de terra, tanto para a sua expansão, como para o rendimento econômico. A erosão e a exaustão diminuíram ainda mais a oferta de terras, provocando deslocamentos para o Oeste Paulista.

Agora, com apoio do programa do Sebrae chamado de “Vocações regionais da cafeicultura fluminense”, os pés de café voltaram a florescer. Para isso, projetos personalizados para cada fazenda foram desenvolvidos pelo professor Flavio Borem, degustador e especialista em qualidade do café do Departamento de Engenharia da Universidade Federal de Lavras (MG). A ideia era simples. Foi lançado um processo de identificação geográfica, correlacionando as atividades turísticas com os produtores da região. “Quando eu ainda era secretário de Turismo de Vassouras, escutava muito as pessoas perguntando sobre o fim do  Vale do Café e isso me incomodava muito”, conta Wanderson Farias, assessor especial da Secretaria Estadual de Turismo e coordenador das ações do turismo da região.

“Passei a estudar o assunto. Até descobrir que aqui nós temos um café campeão que é o café da Fazenda Florença, uma propriedade de 1852 com uma cafeteria no meio do cafezal. Era turismo de experiência na veia!”, conta Wanderson. Com o apoio do Sebrae, foram realizadas inúmeras reuniões com produtores até a consolidação do Arranjo Produtivo Local (APL) do Café, que conta com o apoio das secretarias estaduais de Agricultura, Turismo e Desenvolvimento Econômico, além do Sebrae. “Os municípios são convidados e dentro desse APL a gente, por exemplo, tem o produtor de café que precisa de apoio para exportação. Nós conseguimos encurtar esse caminho através da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, que trata desse assunto. Já um outro produtor que quer produzir cafés especiais e precisa de uma análise de solo conta com o apoio da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro (Pesagro) e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER-RJ)”, explica ele.

Hoje o Vale do Café já conta com cerca de 40 produtores fazendo cafés especiais. Dentre os principais destacam-se o Café Grão Louzada, produzido na Serra da Beleza, em Valença; o Kafé Vassourense Especial, de Vassouras; o Do Pé ao Pó, também em Valença; o Café do Museu, em Vassouras; ou o Café Serras Verdes, de Conservatória. A maior parte deles costuma sair por volta de R$ 50 o quilo, mas alguns destes produtores têm lançado safras especiais que superam a faixa dos R$200.

OS CARÍSSIMOS CAFÉS QUE NASCEM NO COCÔ

Seja sincero. Você degustaria um café cujos grãos foram recolhidos do cocô de um mamífero em risco de extinção chamado Civeta, que vive na Indonésia e lembra o herói Rocket Raccoon, dos Guardiões da Galáxia? Pois é. Isso existe, e é considerado, entre os aficcionados, Uma fina bebida que atende pelo nome de KopiLuwak, o café mais caro do mundo. Um pacote de um quilo da, digamos, iguaria sai pela besteira de R$ 14 mil – o equivalente a 700 pacotes de 500 gramas do Café Pilão, um dos mais vendidos no Brasil. Virou tendência nesse enigmático mercado de produtos de luxo.

Apesar do procedimento parecer muito pouco atrativo, não há resquício dos dejetos no produto. O animal se alimenta da polpa do café e as sementes passam intactas pelo seu sistema digestivo. Ao longo do “caminho” dos grãos por dentro do bichinho, enzimas e bactérias fermentam os frutos, o que, de acordo com quem conhece o assunto, dá um sabor frutado, pouco amargo e nada ácido. Mas sua produção não deixa de ser alvo de críticas de ativistas da causa da proteção animal. Uma iniciativa da ONG World Animal Protection pede o fim da criação de civetas em cativeiro para produção de café.

Os cafés exóticos parecem estar se consolidando como o último grito da moda entre os foodies. Na disputa pelo posto de mais caro do mundo, vem do norte da Tailândia o “Black Ivory” (Marfim Negro), que é recolhido entre as fezes de elefantes. Entretanto, para produzir apenas um quilo do café torrado são necessários cerca de 10 mil grãos, e a produção anual hoje é de aproximadamente 50 quilos. Devido à pouca disponibilidade, uma xícara do café de cocô de elefante custa em Londres cerca de R$ 100, e um quilo fica em torno dos R$ 5 mil. E o Brasil também resolveu surfar essa estranha onda.

Aqui nos trópicos, o animal responsável pelo serviço é o Jacu, uma ave de grande porte, presente em boa parte do território nacional e parecida com uma galinha, mas com penas de cor escura e que apresenta como característica marcante o papo vermelho. Durante muito tempo os jacus foram considerados uma praga, porque comiam grãos maduros de café e deixavam suas fezes no meio da lavoura. Até que, inspirados pela história do Kopi Luwak, alguns produtores começaram a revolver manualmente os excrementos da ave até encontrar grãos de café, que são higienizados e após um período de descanso, torrados e moídos para o consumo.

No Brasil, um quilo do Jacu Bird Coffee Bean pode ser encontrado nas melhores lojas da praça na faixa dos mil reais o quilo. Mas na Europa ele é tratado de uma maneira beeeem diferente. Desde 2015 a loja de luxo britânica Harrods compra o Jacu Bird Coffee Bean. Depois de exigir um certificado, emitido por autoridades brasileiras, confirmando que o pássaro não é confinado para produzir o grão diferenciado, o produto é vendido na tradicional loja inglesa por 1.400 libras o quilo. Algo em torno dos R$ 8.700. Como vovó já dizia, tem gosto para tudo. 

CACHAÇA PREMIADA E A PREÇO DE SCOTCH

É como naquele antigo programa de Silvio Santos:”você trocaria duas garrafas de uísque escocês Cardhu Single Malt por uma de cachaça fabricada no Rio? Nããão!” Hoje a resposta não é tão óbvia. Pelo menos nove cidades do Vale do Café estão produzindo cachaças artesanalmente que são vendidas não só em todo o território nacional como vêm sendo exportadas para nações como Alemanha, França e os Países Baixos. Existem versões para todos os gostos e bolsos, e até opções saborizadas, que são o último grito entre os donos de alambiques.

Numa época anterior ao ciclo do café, todas as fazendas da região exploravam prioritariamente a cana de açúcar. Este período gerou tanto riquezas como a miséria da escravidão, assim como deterioração do meio ambiente. Com o fim do Ciclo do Café, iniciou-se o ciclo do gado leiteiro, que também nada fez de bom para o meio ambiente. Foi quando alguns produtores decidiram corrigir os rumos, abriram o varandão da saudade, e retomaram a produção de cana, agora de forma mais moderna e sustentável, passando a destilar cachaças de excepcional qualidade.

A mais badalada delas é a Cachaça Werneck, do casal Cilene e Eli Werneck, em Rio das Flores. Desde o início da comercialização, em 2011, a linha de produtos de seus alambiques já levantou nada menos que 31 prêmios em competições variadas, como no Concours Mondial de Bruxelles. “O carro-chefe é uma edição especial envelhecida por 10 anos em tonéis de carvalho americano que chega a custar cerca de R$ 800”, diz Marcelo Ribeiro, representante da Caixa Rural, um clube de assinaturas que faz o envio de cachaças e produtos artesanais do Vale do Café para todo o Brasil. Aliás e a propósito: para quem ficou curioso no primeiro parágrafo, uma garrafa de Cardhu, verdadeiro biscoito fino entre os single malts, costuma sair por cerca de R$ 400 nas melhores lojas do ramo.

Os Werneck estão no Brasil há mais de três séculos e foi no Vale do Café que seus ancestrais se estabeleceram. Ao levar para Rio das Flores seu projeto sustentável, o casal Werneck resgatou as origens familiares. Imediatamente iniciou uma recuperação de Mata Atlântica, hoje atingindo mais de 50% da área da fazenda. Também trouxe um conceito que era estranho no local, resgatando a Cachaça como Patrimônio Cultural. Uma cachaça com padrões de qualidade equivalentes aos utilizados na produção dos melhores destilados do mundo. Resgatou também o conceito de responsabilidade social, empregando com todos os direitos trabalhistas a população local e tanto quanto possível fazendo as compras localmente, injetando assim dinheiro na economia do município.

Mas a maior novidade da região é produzida na fazenda União Carvalheira, em Vassouras, e começou quase por acaso. Em 1979, seu proprietário Nelio Carvalheira, o Nelinho, começou a fabricar cachaça apenas com o intuito de presentear os turistas que seu hospedavam em seus hotéis fazenda. Mas a coisa escalou. “Em 2006 apareceram por aqui uns holandeses que ficaram muito interessados na minha cachaça. Eles haviam visitado 63 alambiques em Minas e no Rio até que escolheram a minha cachaça para importar. Desde então já exportei oito safras para os Países Baixos, duas para Alemanha e, agora, comecei a vender na França”, orgulha-se Nelinho.

Com o sucesso, Nelinho começou a fazer experiências. Até chegar nas aguardentes saborizadas. Elas estão disponíveis em três sabores: café, banana e cravo e canela. E rapidamente caíram no gosto do povo. “Só em Copacabana temos 50 lojas que vendem nossos produtos”, diz Nelinho. Além das cachaças puras como a Premium e a Ouro, Nelinho começou também a vender kits de mini garrafinhas das saborizadas. Cada kit custa R$ 35. “Hoje comercializamos os kits para todos os estados brasileiros. Aqui no Rio eu forneço também nos aeroportos do Galeão e no Santos Dummont, onde tenho vendido uma média de 80 kits por semana”, conta Nelinho. Abre teu olho, highlander!

A BEBIDA DE DOIS MIL NOMES

O destilado de cana de açúcar, ingrediente básico da caipirinha, a mais famosa bebida brasileira, possui em nosso país nada menos que duas mil denominações: branquinha, calibrina, capote-de-pobre, dengosa, fava de cheiro, pinga, uca, abrideira, bagaceira, purinha, engasga-gato ou, para encurtar o texto, simplesmente… cachaça. O que faz dela a palavra com mais sinônimos em português e provavelmente em qualquer outra língua falada aqui na terceira pedra depois do Sol. Para alguns historiadores seu nome vem de cachaza, um vinho inferior bebido em Portugal e Espanha, ou ainda, de “cachaço”, o porco, e seu feminino “cachaça”, a porca. Isso porque a carne dos porcos selvagens encontrados no Brasil era muito dura e a malvada era usada para amaciá-la.

Apesar de não haver um registro preciso sobre o local onde a primeira destilação da queima-goela tenha sido iniciada, historiadores afirmam que ela se deu em algum engenho do nosso litoral, entre 1516 e 1532, sendo, portanto, o primeiro destilado da América Latina. Ela é chamada também de “mãe do rum”, cujo processo foi criado na ilha de Barbados, em 1655, por holandeses expulsos de Pernambuco. A partir de 1635, a Corte Portuguesa fez de tudo para impedir sua disseminação. Mas como todo mundo sabe, sem sucesso. Até que em 1755 veio o famoso terremoto, seguido por um tsunami, que devastou Lisboa, e a criação de diversos impostos sobre aquela que matou o guarda foi determinante para financiar a reconstrução da capital do império. Em 1756 surge, em Pernambuco, a primeira aguardente comercializada em garrafa lacrada do Brasil: a espevitada Monjopina.

Hoje estima-se que existam mais de 40 mil produtores do nosso bom e velho mé em território nacional. Curiosamente, a sete-virtudes mais cara do Brasil não é fabricada em Pernambuco, na Bahia e nem no Rio, mas na pequena e pacata cidade de Ivoti (RS), onde a destilaria Weber Haus lançou a Weber Haus Diamant 21 Years Old, que vem com um diamante incrustrado e cujo preço começa pela bobagem de cerca de R$ 9 mil. Lançada para marcar o aniversário da empresa, a produção foi limitada a mil unidades e a garrafa 001 foi arrematada em um leilão por um colecionador que tirou o escorpião do bolso e a adquiriu por nada menos que R$ 66,9 mil – o equivalente a quase mil garrafas de uísque Red Label.

A produção de queijos locais cresceu nos últimos anos

QUEIJOS COM ‘TERROIR’ FLUMINENSE

Toda vez que entra no escritório da sede de sua fazenda em Conservatória, Rodrigo Du’Valle abre um sorriso. Pelas estantes estão espalhadas nada menos do que 14 medalhas obtidas pelos queijos que sua família fabrica há quatro gerações na região do Vale do Café. São distinções relevantes, como medalhas do Mondial du Fromage, competição que reúne anualmente produtores de mais de 50 países na cidade de Tours, na região Central da França. “Eu brinco que nas minhas veias não corre sangue, mas leite”, brinca Rodrigo.

A história da empresa começou em 1910, quando seu tataravô, Leopoldo Vieira Du’Valle, começou a curar queijos em Pedro Carlos, distrito de Conservatória. Como sua intenção era vender na capital, ele não podia fabricar queijos frescos, chamados frescal, porque não aguentavam viagens longas ou climas mais quentes. Ele então curava os queijos no porão da fazenda e depois transportava no lombo de burros até a capital.

“Quando ficou velho, ele passou a produção para meu bisavô, o vovô Catão. E até minha bisavó participava da fabricação. Então eu cresci ouvindo falar de como era dividido o processo. Ela teve 12 filhos e cada um ficava responsável por um pedaço da produção. Um cuidava da cura, minha avó cuidava da manteiga e do requeijão”, lembra Rodrigo: “Até o doce de leite que fazemos hoje é receita da minha avó. São cinco horas mexendo manualmente o doce em um tacho de cobre. E não dá nem para dar uma paradinha pro descanso, são cinco horas no braço”.

Feitos a partir de leite cru de vaca, dois produtos da queijaria Du’Valle fizeram bonito em concursos franceses: os queijos Pérola e Ouro, ambos com maturação acima de três e seis meses, respectivamente, receberam medalha de bronze na França. Já o Serenata, um minas padrão de massa semicozida e macia, com um mês de maturação, levou ouro, em agosto passado, na Expo Queijos realizada em Araxá, em Minas Gerais, com participantes de 11 países. “Mas meu maior orgulho é um queijo nosso chamado Pérola Negra. Ele já ganhou três medalhas, uma delas de ouro, que pra mim foi a mais difícil de conquistar, num evento que reuniu queijeiros de 12 países”, diz Rodrigo.

“O queijo artesanal é vivo. Ele muda e não aceita desaforo. No verão ele está de um jeito, no inverno de outro jeito. Todo nosso queijo é feito a partir de leite cru, ou seja, que não recebeu nenhum tratamento, nenhuma química, não foi pasteurizado, então é um queijo vivo, de microbiota viva. Ou seja, as bactérias lácteas do queijo estão vivas, e elas vão consumindo a lactose do queijo e transformando em acido lácteo. Então o queijo entra lá branquinho e vai se transformando, transformando, até revelar o terroir único da fazenda”, conta Rodrigo.

Outro destaque da região entra na conta do Caprinos do Lago, queijo de sabor intenso feito, como indica o nome, com leite de cabras e maturação de pelo menos um ano. Produzido na bucólica queijaria Capril do Lago, localizada às margens da Rodovia RJ-145, foi o único não europeu a chegar à fase final do Mondial du Fromage, terminando em sétimo lugar geral na categoria queijos de cabra.

“Foi a primeira vez que um queijo de cabra do Brasil figurou na lista dos melhores do mundo”, orgulha-se o dentista e produtor Fabrício Vieira, que começou a fazer os queijos por hobby há poucos anos. “Aos 12 anos, pedi de presente uma vaca, mas meu pai me deu uma cabra. Isso foi em 1986. Desde lá uma paixão surgiu. E mais recentemente, com a pandemia, preso no sítio, comecei a fazer queijos”, conta.

Tanto a Capril do Lago quanto a Queijos Du’Valle fazem parte, juntamente com mais duas queijarias de Valença — a Latte Buono, que produz queijos com leite de búfala, e a Vale do Vento, com produtos a base de leite de vaca — da Rota do Queijo, roteiro pensado para aproximar turistas e produtores artesanais, com apoio da Secretaria estadual de Turismo e incluída no catálogo de informações turísticas fluminenses.

Os grupos de visitantes saem às 8h para uma jornada que vai até as 16h. No caminho, as experiências se multiplicam: além da inevitável e muito esperada degustação de queijos, é possível ordenhar uma cabra, fazer seu próprio queijo de búfala ou conhecer a caverna onde as peças da Du’Valle são maturadas em ambiente com temperatura e umidade controladas. Também faz sucesso entre os visitantes um surpreendente desfile de vacas ao som do berrante tocado por Rodrigo du’Valle. “Hoje somos quatro participantes, mas nos próximos meses já temos outros 13 produtores de queijos artesanais que vão aderir ao projeto”, adianta Rodrigo.

QUANTO PIOR O CHEIRO, MAIS CAROS

“É impossível governar um país com 325 queijos”, afirmou certa vez o presidente francês Charles de Gaulle. A boutade do famoso general e estadista talvez não faça assim muito sentido. Embora na terra dos irredutíveis gauleses existam queijos para todos os bolsos, gostos e olfatos, a França (acredite) não é a maior produtora de queijos do mundo, e está distante de produzir os mais sofisticados deles – embora detenha a medalha de ouro no quesito variedade. Fala-se que existem mais de mil queijos franceses diferentes! E os mais fedorentos estão entre os melhores.

Os Estados Unidos lideram o ranking de produção com 5,5 mil toneladas por ano, seguido pela Alemanha, com 2,7 mil toneladas. A França leva apenas o bronze com 1,8 mil toneladas anuais. Por essa métrica, o Brasil não faz feio. Aqui se produz anualmente cerca de 1,5 mil toneladas de queijos. A maioria de composição menos rebuscada, como muçarelas, pratos ou queijo minas. E embora os mineiros falem muito dos queijos da Serra da Canastra, que ocupam a 24ª colocação entre os 100 melhores do mundo pelo Taste Atlas, espécie de enciclopédia da gastronomia mundial, recentemente o maior destaque tem sido o Azul da Mantiqueira, da Laticínios Paiolzinho, de Cruzília, que ganhou a medalha de ouro no World Cheese Awards 2022, repetiu o feito no ano passado, e pode ser encontrado por uns R$ 80 o quilo.

Agora se segure na cadeira. Embora o Pule, produzido na Sérvia, seja considerado um dos queijos mais raros do mundo (e custa 979 euros o quilo), o mais caro deles é fabricado na…. Inglaterra! Isso mesmo. O Frome Cheese Platter custa a bagatela de US$ 7 mil o quilo. Tamanho luxo se deve ao fato do “Frome” ser harmonizado com trufas, caviar, folhas de ouro comestíveis e obrigatoriamente servido em uma bandeja de prata. É mais ou menos o preço de 2.592 caixas de polenguinho. 

LEIA MAIS: O Renascimento do Vale do Café