GASTRONOMIA: TEM BATUQUE NA COZINHA

Samba do Trabalhador: vai ter samba na segunda de Carnaval

Bruno Agostini

Existe uma simbiose entre o samba e o botequim. Desde a origem, com Tia Ciata, quituteira também famosa pelas iguarias que trouxe de sua Bahia Natal: acarajé, vatapá, abará, caruru, mugunzá e outras delícias oxítonas. E essa tradição vem até os dias de hoje, em constante renovação. O bar Bip Bip que o diga. E o Largo da Prainha também. Assim como a batucada, a cozinha brasileira também orbita o universo afro. Viva o tabuleiro da baiana! No Rio, o samba gira ao redor da mesa do bar: “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa”…

Foi uma “Conversa de Botequim”, como essa de Noel Rosa, que ajudou o carnaval de rua do Rio a se renovar: o Bloco dos Barbas foi fundado em 1983, no antigo Bar Barbas, em Botafogo. E o mesmo se passou em ralação ao Simpatia é Quase Amor e com o Jangadeiros, em Ipanema. E com o Suvaco de Cristo, com o Bar Joia, no Jardim Botânico.

Carnaval e birosca são coisas que estão entrelaçadas. Fundador da Mangueira, Cartola nos anos 1960 chegou a ter um boteco para chamar de seu: o Zicartola, que criou com sua mulher, Dona Zica, cozinheira de mão cheia. O bar ficava em um sobrado, no número 53 da Rua da Carioca. Comia-se muito bem por lá: tinha carne-seca com abóbora (ou jiló), linguiça frita com farofa, filé com fritas (dois ovos por cima eram opcionais), bolinhos de carne – além de figos em calda com queijo Minas.

Mas, se a comida era boa e caseira, o repertório musical passava dos limites do extraordinário. Entre 1963 e 1965, quando o boteco fechou as portas, o time de frequentadores assíduos tinha nomes como Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Dorival Caymmi, Ismael Silva, Carlinhos Lyra, Ciro Monteiro, Roberto Menescal, Elizeth Cardoso, Aracy de Almeida, Hermínio Bello de Carvalho, e o trio que lançou o espetáculo Opinião: Zé Keti, Nara Leão e João do Vale. Além de jornalistas, como Sergio Cabral, e toda a sorte de intelectuais, como Ferreira Gullar e artistas de cinema. Foi lá que Paulinho da Viola fez a sua primeira apresentação, e recebeu ali seus primeiros cachês como músico. E Monarco, ainda jovem, também aparecia por lá.

O livro foi lançado em 2004

Dona Zica é uma das representantes de dessa tradição das “Donas” a “Tias” ligadas às escolas de samba, que também se destacam na cozinha. Que vem lá de Tia Ciata. Essa história virou até livro: “Batuque na Cozinha – As Receitas das Tias da Portela”, de Alexandre Medeiros, que este ano completa 20 anos de lançamento: é de 2004. Além da feijoada, a lista de pratos traz angu à baiana, sopa de ervilha, rabada, galinha ao molho pardo, papa de caruru, bobó de camarão, cozido… Tia Surica, uma das personagens mais célebres deste universo, que agora também atua na TV, ainda prepara as suas feijoadas, regularmente, no Teatro Rival. Sempre com sambistas convidados, os ingressos geralmente se esgotam dias antes.

A feijoada, obviamente, é o prato mais emblemático desse receituário tão brasileiro, e hoje todas as escolas de samba organizam pelo menos uma vez por mês uma roda de samba servida com o prato. E o Cordão do Bola Preta, bloco de carnaval mais antigo do país, também tem em seu calendário de eventos as suas feijoadas regadas a samba e cerveja gelada.

Novidade da temporada, o Circuito Salgueirense de Botequins foi lançado no final de 2023: a ideia é que aconteça ao longo do ano, como parte dos festejos dos 70 anos da escola, sempre no primeiro domingo do mês. A primeira edição, porém, foi cancelada, por conta da morte do intérprete, Quinho. A ideia é que o evento aconteça a partir de março, depois do Carnaval. Na lista de bares participantes estão nomes como Bar da Frente, Bar do Momo, Bar da Gema, Bar do Bode Cheiroso, Cine Botequim, Bar da Portuguesa, Botero, Pescados na Brasa, Baixela e Groen. Uma seleção de respeito. Falando em Bar da Portuguesa… este boteco tradicionalíssimo de Ramos era muito frequentado por Pixinguinha, que, aliás, morreu durante um desfile da Banda de Ipanema, em 1973. Hoje, o músico está imortalizado em estátua, na porta do estabelecimento.

Feira das Yabás: idealizada pelo sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz

Outro evento do gênero é a Feira das Yabás, criada em 2008, e que completou 15 anos em 2023 – já fixo no calendário oficial da cidade. A festa reúne música e gastronomia, sempre no segundo domingo do mês, na Praça Paulo da Portela, e foi idealizada pelo sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz – que também ajudou a desenvolver a ideia do Trem do Samba – que acontece nos dias 1º e 2 de dezembro. Ano passado, foram cinco Velhas Guardas e 32 rodas de samba – que se espalharam por 14 bares tradicionais da região de Oswaldo Cruz.

Paladino: clássico do Centro

Moacyr Luz, do Samba do Trabalhador, é um dos grandes entusiastas do assunto, e um excelente contador de histórias dos botequins do Rio, muitas delas sempre ganharam destaque em suas crônicas, “sagrados templos gastronômicos”, segundo sua definição. Em seu livro “O Rio do Moa”, de 2018, uma divertida seleção crônicas, muito bem escritas, um capítulo inteiro é dedicado aos botequins, com dez textos deliciosos sobre instituições cariocas, como o Paladino, o Málaga, o Villarino, o Lamas e o Beco das Garrafas, entre outros bares: o título é “Amigo Eu Nunca Fiz Bebendo Leite”, versos, aliás, que ganharam o Brasil na voz de Zeca Pagodinho – que, a propósito, lançou a sua própria franquia de bares, que já chegou até a São Paulo. Parceiro da empreitada é o cozinheiro Antônio Carlos Laffargue, o Toninho do Bar do Momo – aliás, o lugar para onde a turma que frequenta o Samba do Trabalhador, capitaneado por Moacyr Luz, às segundas, no Clube Renascença, vai para a saideira depois da roda mais legal do Rio. Na segunda de Carnaval tem edição especial e concorrida do Samba do Trabalhador.

Como verdadeiro devoto da categoria, Moa se tornou amigo de muitos donos de bares tradicionais, como Antônio Rodrigues, da rede Belmonte, e João Paulo Campos, que ressuscitou o Adonis, em Benfica. Ele até virou música ano passado, quando o artista lançou “João do Adonis”. Bares são temas recorrentes em suas composições, como “Delírio da Baixa Gastronomia”, cuja letra diz assim: “Azeite no jiló / Pimenta fresca no bobó / A abrideira no balcão de mármore / Dentro do pirão, uma corvina, um azulão / E a feijoada desenhando o sábado / Cozido à brasileira, no domingo e quarta-feira / E também tem um camarão na abóbora / Depois de apaixonar pela batida do lugar”,

Casa Porto: protagonista da revitalização da área

Boteco dá samba, todo mundo sabe. É uma tradição antiga, mas que se renova constantemente. A região da Pedra do Sal foi revitalizada pelo samba, e o Largo da Largo de São Francisco da Prainha, hoje é rodeado de bares, e as apresentações dos fins de semana viraram um dos programas turísticos mais populares do Rio, pegando embalo no entusiasta pela região, Rafael Vidal, dono da Casa Porto, do 2 de Fevereiro e do Bafo da Prainha, entre outros empreendimentos que agitam o local.

Baródromo: homenagem às escolas

Alguns bares da cidade, voltados ao público mais jovem, como Brewteco, Fuska Bar e Porco Amigo, ficam lotados quando recebem suas rodas de samba nos dias de maior movimento. Mais do que apenas reduto de algumas das melhores rodas da cidade, como o Bip Bip, existem lugares que fazem do Carnaval o fio-condutor de tudo, da decoração ao cardápio. Caso do Baródromo, na Tijuca, que é uma verdadeira celebração das escolas de samba, e da folia – e, sendo assim, do próprio Rio de Janeiro.

Sambódromo: parmegiana e milanesa de língua

Vizinho à Passarela do Samba, o Bar Sambódromo também promove um desfile, onde encontramos beleza e criatividade: mas, é através da língua à milanesa, que é defumada na casa; das travessas com arroz caldoso ou com copa-lombo à parmegiana, das dobradinhas, do pão de alho com polvo e de tantas outras iguarias.

Comida dá samba. Toda escola tem sempre uma ou mais alas que remetem à comida: podem ser pratos preferidos do homenageado, ou do país, cidade ou estado em questão, ou referências ao universo boêmio dos personagens, ou à culinária de raízes indígenas ou africanas, temas recorrentes nos desfiles…

Vou, assim, lembrando do histórico desfile de 1986, com o antológico samba-enredo “Caymmi Mostra Ao Mundo o Que a Bahia e a Mangueira Tem”, que tem Ivo Meirelles entre os autores, um dos mais famosos e cantados de todos os tempos, com versos que o Brasil inteiro sabe cantar: “Tem xinxim e acarajé / Tamborim e samba no pé”. Vamos mais longe, no tempo e no espaço: para 1975, quando o enredo da Unidos de São Carlos louvou o Círio de Nazaré, e as iguarias do Pará, em “A festa do Círio de Nazaré”. Diz a letra: “E o vendeiro de iguarias a pronunciar / Comidas típicas do Estado do Pará / Tem pato no tucupi / Muçuã e tacacá / Maniçoba e tucumã / Açaí e aluá”.

Kassler à mineira: criação de Paulinho da Viola

Esta crônica parece impossível de terminar, tantas são as histórias que conectam o samba aos bares do Rio. Recordo de outra, que resultou numa delícia. O tradicional bar Brasil, mui distinta casa alemã de repasto, inaugurada em 1908, serve o kassler à Mineira, criação de Paulinho da Viola, que pediu para servirem a tradicional bisteca defumada alemã com a clássica guarnição brasileira, com arroz, couve e tutu de feijão.

Carne assada Da Muda: homenagem ao sambista

A tradição se renova, que bom: o novato e excelente Chanchada Bar, em Botafogo, prepara a carne assada da Muda, uma das melhores pedidas neste boteco de estirpe. Trata-se de uma homenagem a Gabriel da Muda, cantor e compositor, um dos integrantes do Samba do Trabalhador, capitaneado pelo Mestre do Bares Moacyr Luz.

– O chef Bruno Katz, quando foi abrir o bar, me perguntou: “Gabriel, o que não pode faltar em um Botequim?” E eu respondi: na minha opinião é carne assada. Quando é bem-feita, ela realmente credita o botequim. E é o meu petisco preferido. Quando vejo na estufa eu peço na hora, e ele fez pra me homenagear. Fez do jeito dele, e eu achei que ficou muito legal – diz o cantor e compositor, outra estrela do Samba do Trabalhador, que acabei de lançar seu segundo disco: “Se For, Me Chama”.

Camarada, estou indo pro Chanchada: vamos?