FEIRA DAS YABÁS: 15 ANOS DE ENCANTAMENTO EM OSWALDO CRUZ

Lecy Brandão se apresenta na festa

Aydano André Motta

A metrópole assentada numa longeva história de violência e desigualdade se traveste de paraíso na vocação para festas e na rua como endereço e destino. A conjugação dos dois predicados tem como símbolo mais perfeito um alegre encontro mensal, em jornadas dominicais de uma praça pequena e mítica. Ao redor da estátua do inventor das escolas de samba, espalha-se comida e música da melhor qualidade. Sonho em plena vida real – é a Feira das Yabás.

O autodenominado evento de música e gastronomia negra carioca completa, agora em maio, 15 anos de existência, consolidado pela santa teimosia de seu criador, Marquinhos de Oswaldo Cruz. O cantor e compositor conduz o babado – tornado patrimônio cultural imaterial do Rio em 2018 – todo segundo domingo do mês, na Praça Paulo da Portela, no bairro que virou sobrenome artístico. Uma delícia literal e espiritual.

São 16 barracas que ocupam três quarteirões da Estrada do Portela, e servem iguarias como tripa lombeira, cozido, bobó de camarão, macarrão com carne assada, peixe frito, mocotó, angu à baiana, feijoada e rabada com batata. Ao promover a comilança, as senhoras das barracas encarnam as yabás, nome em yorubá que pode ser traduzido como Mãe Rainha, e define as orixás, responsáveis pela alimentação de seus filhos.

Lotada mês sim, mês também, a feira transformou-se ainda em importante exemplo de empreendedorismo feminino. Cozinheiras divinas como Vera Caju (cozido), Selma Candeia (carne seca com abóbora), Tia Edith (carne assada com macarrão), Neide Santana (angu à baiana), Tia Nira (peixe frito e pirão ao molho de camarão) e Rosimeri Cruz (galinha com quiabo) resolvem boa parte de seu orçamento mensal no evento. Cultura e economia na receita carioca.

Marquinhos de Oswaldo Cruz e as quituteiras da Feira das Yabás

Como inúmeras iniciativas na caudalosa inventividade suburbana, a feira começou modesta na Portelinha, quadra antiga – e irresistível – da maior campeã do Carnaval (em frente à barraca de Vera Caju, atualmente). Marquinhos promovia roda de samba como tempero para uma macarronada com carne assada e feijão, feita pelas pioneiras Tia Edith e Neide Santana. “Tem que ser na rua”, reivindicavam os frequentadores apaixonados. “Fui lembrando várias comidas de calçada, como roupa velha, frango com quiabo e decidi mergulhar na ideia”, relembra Marquinhos.

Inventor de preciosas tradições cariocas – criou também o Trem do Samba e a Feijoada da Família Portelense, imitada por todas as escolas –, o artista sustenta luta permanente para manter a feira, que tem patrocínio da prefeitura. No governo do bispo neopentecostal Marcelo Crivella (2017-2020), aconteceu de forma irregular, por falta de recursos. A fase aguda da pandemia foi outro momento difícil, mas em 2022 voltou às edições mensais.

A música começa por volta de 15h, normalmente com o próprio Marquinhos, entoando sucessos como “Geografia popular” – canção-manifesto composta por ele, Arlindo Cruz e Edinho, que descreve o sonho do passeio por uma cidade fraterna e integrada, desde Deodoro até chegar, em rimas de partideiro, ao Leblon – e “Santo Amaro a Madureira”, a do refrão “Oxum oraieieôoraieieôoraieieô” e da homenagem às matriarcas do bairro carioca: “Já pedi à mãe Luiza / Para abençoar/ Tia Doca, Tia Surica/ Vem aqui sambar/ Na lavagem ou boa morte/ Eu também vou lá”. Um espetáculo.

Tem ainda “Vai ô nega”, o hino da feira (de Marquinhos e Ivan Milanês), momento de as Yabás subirem ao palco para receber as palmas da plateia, pela comida, pelo clima, pela energia, pela História. Até outro dia, a apoteose acontecia no miudinho de Tia Nira, senhorinha de bengala e passo impecável, que encenava umbigadas com o cantor, para delírio da plateia (ela, 83 anos, não tem ido por problemas de saúde). Mas suas parceiras sustentam a arte mais carioca, sambando lindas e poderosas no palco da praça.

“Existe uma África na região de Madureira e Oswaldo Cruz, que recebe todo mundo, sempre recebeu”, testemunha o cantor e compositor. “Estamos comemorando 15 anos de luta pela preservação dos bens culturais e materiais daquela parte da cidade”, festeja. Ele acrescenta que ali há muita oferta cultural – Portela, Império Serrano, o baile charme sob o viaduto – sempre com o acolhimento típico do subúrbio. “A feira carrega em sua essência a luta pela resistência da cultura negra e a promoção da união”, arremata.

No domingo 12 de março, o show principal ficou a cargo de outro ícone do samba, Leci Brandão, que cantou por mais de duas horas, prolongando a festa até 21h. Sob as estrelas do céu de Oswaldo Cruz, a civilização carioca se impôs novamente, num encanto coletivo irresistível.

Vida eterna à Feira das Yabás!