Bruno Agostini
Um dos instrumentos de percussão clássicos de uma bateria de escola de samba é o prato. O mais famoso intérprete do carnaval carioca é Jamelão, nome de uma fruta, assim como a própria Sapucaí, onde está a Passarela do Samba – que, aliás, nasceu junto a uma das primeiras fábricas de cerveja do Brasil, a Brahma. A Mangueira é uma árvore frutífera, fundada por Carlos Cachaça, ao lado de outros bambas, como Cartola e Nelson Cavaquinho. E quase todas as agremiações do Rio têm em suas agendas culturais uma feijoada mensal para chamar de sua.
São pistas (há muitas outras) da antiga e natural relação entre o mundo da folia e o da boa mesa. Vem desde os tempos de Tia Ciata, pioneira do samba e quituteira de mão cheia, e se potencializa até os dias de hoje de várias maneiras. Seja no Bar do Zeca Pagodinho, seja nos enredos que muitas vezes trazem referências à gastronomia, seja em alas que remetem a pratos típicos, seja nas letras que muitas vezes tratam do assunto.
Todos lembram de versos históricos, como “Tem pato no tucupi/ Muçuã e tacacá/ Maniçoba e tucumã/ Açaí e aluá”, do samba clássico de 1975 da Unidos de São Carlos, reeditado pela Viradouro em 2004. Ou “Tem xinxim e acarajé/ Tamborim e samba no pé”, início do hino em exaltação a Dorival Caymmi, campeão da Mangueira, em 1986.
A comida é muito importante nas religiões de matriz africana, com inúmeros simbolismos, e como elemento de rituais. Difícil um enredo que trate do assunto e não traga ao menos uma ala com referências ao caruru, à farofa de dendê, oferecida a Exu, e à canjica branca, doce oferecido a Oxalá, por exemplo.
Outro exemplo é “Hoje eu vou tomar um porre / Não me socorre que eu tô feliz / Nessa eu vou de bar em bar / Beber a vida que eu sempre quis”, famoso trecho inicial do samba de 1991 da União da Ilha, homenagem a Didi, autor de clássicos como “É hoje”, sucesso na Sapucaí em 1982, e na voz de Fernanda Abreu, em antológica regravação de 1995.
CONVERSAS DE BOTEQUIM
São muitos os sambas que tratam dessa relação simbiótica entre samba e botequim, desde antes mesmo de Noel Rosa cantar seus mais famosos versos, em música composta com Vadico e lançada há 90 anos, em 1935:
“Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa / Uma boa média que não seja requentada / Um pão bem quente / com manteiga à beça /Um guardanapo e um copo d’água bem gelada / Feche a porta da direita com muito cuidado / Que não estou disposto a ficar exposto ao sol / Vá perguntar ao seu freguês do lado / Qual foi o resultado do futebol”.
O que pode ser mais carioca do que isso?
Ao longo do tempo vários acontecimentos costuraram essa identidade. Basta lembrar do bar Zicartola, que funcionou nos anos 1960, na rua da Carioca, tendo como sócios Dona Zica, que cuidava da cozinha, e Cartola, o anfitrião responsável pelas históricas rodas de samba que atraíam nomes como Clementina de Jesus, Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Hermínio Bello de Carvalho, Nara Leão e Paulinho da Viola, entre muitos outros (meu tio-avô, Eugênio Agostini, foi quem teve a ideia de criar uma pensão de comida caseira aproveitando os conhecidos dotes culinários de Dona Zica).
E hoje em dia, quem seria o mais famoso sambista do Brasil? Muitos responderiam Zeca Pagodinho, que tão fã de botequins, acabou, em 2018, abrindo um para chamar de seu. A primeira unidade do seu Bar do Zeca Pagodinho foi inaugurada no shopping Vogue Square, na Barra, bairro que o sambista adotou. Hoje são quatro unidades no Rio e uma em São Paulo. Para a empreitada, ele convocou Antônio Carlos Laffargue, mais conhecido como Toninho Momo, do Bar do Momo, na Muda, inaugurado em 1973, anos mais tarde comprado por sua família. “Quem fundou o Bar do Momo foi um Rei Momo, na década de 1970, chamado Abraão”, relata Toninho, em referência ao famoso monarca do Carnaval carioca Abraão Reis, que reinou de 1958 a 1973.
Evoé!
CONCENTRAÇÃO DE BLOCO É NO BAR
Quase todos os blocos do Rio nasceram na mesa de algum bar, e é muito natural que seu local de origem se transforme no ponto de concentração antes do desfile (muitos, ficam por ali mesmo, nos chamados “desfiles parados”). O Bar Joia para o Suvaco de Cristo, no Jardim Botânico; o finado Mercadinho São José para o Imprensa que eu Gamo, criado por colegas meus, que em 2025 faz seu desfile derradeiro; o bar Portão da Tijuca para a Banda Cultural do Jiló, que tem outros botequins parceiros na região, como o alemão Carioca Deutsch. Com espírito familiar, a agremiação, fundada em 2004, promove eventos durante todo o ano e desfila sexta-feira de Carnaval. “Preservamos as marchinhas, os sambas-enredo. O desfile este ano é no dia 28 de fevereiro, de 16h às 22h, e tem roda de samba antes, de 17h às 19h. Depois, tem uma apresentação de instrumentos de sopro, além de pandeiros, tamborins, e saímos por volta das 19h30. Voltamos por volta das 22h para o bar Portão da Tijuca, e ficamos lá ainda, até 1h, 2h da madrugada” narra Leonardo Assmar, presidente da Banda do Jiló.
Um episódio marcante nesse enredo que une o bar, os blocos e a folia de Momo, foi a morte de Pixinguinha, durante o desfile da Banda de Ipanema, no sábado de carnaval de 1973, dia 17 de fevereiro. Ele estava em um batizado na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, no qual seria o padrinho, quando teve infarto fulminante. Albino Pinheiro foi avisado da morte do músico. Ao passar pouco depois na frente da igreja, a banda tocou “Carinhoso”, e o céu desabou em seguida, num temporal de lavar a alma. O desfile não parou, e a homenagem ficou registrada como uma das mais célebres histórias do Carnaval de rua.
Hoje, quem vai ao Bar da Portuguesa, em Ramos, perto de onde vivia o grande músico, é saudada pela estátua de Pixinguinha, sentado à mesa, despojadamente, de sandálias. Virou marca registrada da casa, assim como a hospitalidade de Dona Donzília e família, e seus quitutes, como a fritada de bacalhau, o joelho de porco, os bolinhos de aipim, os pastéis de polvo e os caldinhos, de siri e de mocotó.
Porque, no Carnaval carioca, tudo começa, e termina, na mesa de um bar.

CONFESSO QUE COBRI
Cobri por alguns anos o Carnaval pelo finado “Jornal do Brasil”, inclusive atuando ao lado do editor desta revista especial momesca, Aydano André Motta. O Lula Branco Martins, jornalista que coordenava o trabalho, usava afinidades dos repórteres com os enredos para escolher quem cobriria as escolas.
Eu já escrevia sobre gastronomia e turismo em 2004, quando fui escolhido para fazer a resenha do desfile da Unidos do Viradouro. Em outubro do ano anterior, havia feito a cobertura do Círio de Nazaré, numa das experiências mais marcantes de minha vida. O desfile que resgatou o enredo de 1975 foi emocionante, inclusive porque havia aprendido o samba, paixão dos moradores de Belém, muito cantado nos vários festejos que integram a maior procissão católica do mundo. “Tem pato no tucupi…”
Em 2005, pelos mesmos motivos, fui escalado para o desfile da Mocidade, com enredo sobre a Itália, país que mais amo no mundo – não por ser Agostini, mas pela comida, minha preferida entre todas. Então, estava lá, de bloquinho e caneta nãos mãos, e uma câmera no pescoço, quando “Buon mangiare, Mocidade! A arte está na mesa” rendeu apresentação morna, como escrevi em minha reportagem, intitulada “Desfile com pouco tempero”. Com patrocínio da empresa italiana TIM, a escola contratou o carnavalesco Paulo Menezes para o enredo com enfoque na arte, na moda e na culinária da Itália. Lembro que havia alas dedicadas à pizza, por exemplo. Dizia a letra, logo em seu início: “Buon mangiare, Mocidade! Amor…/ Se a arte tá na mesa, eu tô… (bis)/ É a trupe independente de Padre Miguel/ Brilhou uma estrela lá no céu”.
Em 2006, novamente o samba e a comida cruzaram meu caminho na Sapucaí. A Vila Isabel foi campeã com “Soy loco por ti, América – A Vila canta a latinidade”, cujo refrão assim dizia: “Soy loco por tí, América/ Louco por teus sabores/ Fartura que impera, mestiça mãe terra/ Da integração das cores”. Havia, ao longo do desfile, muitas referências à tradição culinária do continente, das frutas tropicais ao chimarrão.
No dia seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, quando o resultado foi anunciado, fui fazer uma reportagem especial, com a Velha Guarda da Vila Isabel. A missão era levar veteranos da agremiação ao saudoso Bar do Costa, na Rua Torres Homem. Enquanto bebíamos cervejas e batidas, comendo a famosa porção de moela da casa, fomos conversando sobre a história da escola, o bairro, Martinho da Vila, Noel Rosa e até mesmo a PDVSA, petroleira venezuelana que patrocinou o desfile.
No texto, está o depoimento satisfeito de José Pontes, atencioso garçom do bar: “É impressionante como aumentou o movimento desde quarta-feira, quando pela primeira vez acabou a cerveja no bar. Não só aqui, mas em vários outros. Muita gente de diversos bairros tem aparecido para curtir o berço do samba, de novo campeão do Carnaval. A Vila sorri”.
Em 2015 vi pela TV o desfile do Salgueiro, cujo enredo “Do fundo do quintal, sabores e saberes na Sapucaí” prestava homenagem à culinária mineira. O refrão do samba era assim: “O danado desse cheiro sô, ô sinhá/ Atiçou meu paladar, ô sinhá/ Já bebi uma purinha/ Vim sambar na academia/ E não quero mais parar”.
Samba e botequim são tão íntimos quanto mestre-sala e porta-bandeira.