DESCAMINHO DOS NOMES DE RUAS, PRAÇAS E AVENIDAS DO RIO

Rua Paulo Barreto faz homenagem a João do Rio

Aydano André Motta

Vale diploma de doutorado em mistérios cariocas saber onde fica a Rua Dorival Caymmi. O icônico cantor e compositor, criador de algumas das maiores músicas brasileiras, batiza via com 38 metros de comprimento, onde não mora… ninguém. Confinada pelas faces laterais de quatro prédios, a pequenina transversal da Avenida Visconde de Albuquerque não leva a lugar nenhum. Sem saída, simboliza a barafunda dos nomes de ruas, praças e outros logradouros da cidade.

O baiano Dorival chegou ao Rio com 24 anos e viveu aqui por sete décadas, até morrer aos 94, em 2008. Suas músicas celebraram fortemente encantos e tradições da Bahia, mas ele criou tudo de Copacabana, seu lugar no mundo. Enredo da Mangueira no desfile campeão de 1986, merecia pouso mais relevante para seu nome nos endereços cariocas.

E João do Rio? Mais importante cronista do Rio na virada dos séculos 19 e 20, recebe homenagem secreta, em Botafogo, na Rua Paulo Barreto, seu nome de batismo, que ninguém conhece. Na parte inferior das placas, está a explicação da burocracia: “1881-1921. Jornalista, cronista, contista e teatrólogo. Conhecido como ‘João do Rio’ e autor de ‘A alma encantadora das ruas’, de 1908”. Surreal.

Olhar mais atento para os nomes dos logradouros enxerga desigualdade no perfil dos escolhidos, apego à história oficial (que está sendo desconstruída pelos estudiosos) e devoção de beata pelas elites. “As ruas do Rio são constituídas sem diálogo com a população em geral. E nomeá-las fica a cargo dos que têm visão ideologizada”, atesta Álvaro Nascimento, professor de história do Brasil da UFRRJ/CNPq. “Não tenho dúvida do viés conservador e das decisões de cima pra baixo”, complementa.

A análise dos eleitos para identificar os logradouros revela opções lastimáveis por todas as regiões, como Costa e Silva, general-presidente da ditadura, nomeando a Ponte Rio-Niterói (obra, aliás, emblema do período autoritário). Anos atrás, o Ministério Público fluminense tentou remover a barbaridade, mas fracassou. Projeto do ex-deputado federal Chico D’Angelo (PDT), de 2021, também reivindicou a mudança, mas a ideia não sobreviveu até a votação. Assim, vilões da história cristalizam-se em lugares fundamentais do cotidiano.

Outra: conhecida como Radial Oeste, a avenida nas franjas do Maracanã que leva à Zona Norte chama-se Castelo Branco. No fim do ano passado, o prefeito Eduardo Paes cogitou rebatizá-la em homenagem ao Rei Pelé. Teria de submeter a ideia à Câmara de Vereadores – por isso, escolheu mudar apenas um trecho. O ditador continua na vizinhança.

Precisou o maior jogador de futebol de todos os tempos para driblar o racismo estrutural também presente no assunto (como em todos os outros da vida brasileira). Há poucos negros entre os homenageados – algo especialmente absurdo, na capital das escolas de samba, instituições culturais que dão fama planetária ao Rio, criadas por afrodescendentes. Há a Praça Paulo da Portela, a escola Mestre Cartola e a Rua Compositor Silas de Oliveira; o Parque Madureira mudou recentemente para Mestre Monarco, mas a fila de esquecidos segue quilométrica.

“Nomes de rua têm muita importância – tanto que recentemente placas e monumentos foram atacados em atos políticos”, observa Nascimento. “Podiam ser pedagógicos, mas são contaminados por decisões políticas e ideológicas. E influenciam até o mercado imobiliário”. Ele destaca que as escolhas estão conectadas ao momento da decisão, além dos objetivos e da motivação dos inquilinos do poder. 

A importância se expressa, também, num ícone dos protestos políticos, a placa da “Rua Marielle Franco”, referência à vereadora assassinada em 2018 (crime ainda impune) que virou item cobiçado de consumo entre os progressistas. A via ainda não existe na vida real. “Tenho certeza que um dia vai ter”, aposta o professor.

A alternância de poder marca também as escolhas nas maiores vias expressas do Rio. Inaugurada em 1994 pelo então governador Nilo Batista (PDT), a Linha Vermelha (que, presente em vários municípios, tem controle estadual) se chama Presidente João Goulart, trabalhista próximo da esquerda; finalizada em 1997 a (municipal) Linha Amarela homenageia o ex-governador Carlos Lacerda, prócer da direita.

Para consertar essa história toda, num lugar diverso, dinâmico e contraditório como o Rio de Janeiro, será um longo caminho.