CULTURA: O RIO TEM VERGONHA DE CARMEN MIRANDA

O Museu Carmen Miranda é menor que o do Museu do Sapato, de Toronto

Jan Theophilo

Por que o Brasil nunca ganhou um Prêmio Nobel? A Argentina tem cinco; o México, três; Chile, Colômbia e Guatemala tem dois; e a Venezuela já conquistou um para chamar de seu. Em 2018, em entrevista ao programa Roda Viva, o ex-ministro Ozires Silva, que após deixar a política se dedicou a projetos educacionais, apresentou uma explicação que deu o que falar. Ele contou que certa vez jantou em Estocolmo com três membros do comitê responsável pelas indicações e perguntou a eles porque o país nunca fora laureado. Os suecos ficaram sem graça. Até que, algumas doses depois, um deles falou: “Vou responder sua pergunta. É que vocês brasileiros são destruidores de heróis”. Um exemplo dessa autofagia histórica, que vale para todas as áreas, está em pleno curso: a memória de Carmen Miranda, cujo museu foi reinaugurado após 10 anos de portas fechadas no mesmo endereço que ocupava desde sua inauguração, em 1976, o pavilhão de concreto de 22 metros de diâmetro no Aterro do Flamengo, que visto assim de longe mais parece uma marmita de cabeça para baixo.

“Na verdade, acho que a gente cria heróis errados. Como Tamandaré, Caxias ou Tiradentes, que são praticamente uma invenção”, diz o diretor do Museu Carmen Miranda, César Balbi: “então, quando a Mangueira trouxe os verdadeiros heróis do samba, foi um escândalo. Muita gente não sabia o que aquelas pessoas, todas negras, tinham feito. E que são os nossos heróis, embora isso nunca tenha sido exposto devidamente”.

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Mas o fato é que o espaço do museu é pouco, muito pouco, para celebrar um dos maiores ícones pop do Brasil em todo o mundo – embora Carmen fosse portuguesa, com certeza. O Museu Carmen Miranda é menor que o do Museu do Sapato, de Toronto, ou do Museu do Sorvete, em Miami. Seu acervo conta com mais de 4.800 itens da cantora, sendo 589 peças de indumentárias, entre elas bijuterias, trajes completos de shows e filmes – como cintos, sapatos e turbantes – além de 1.900 partituras, manuscritos, roteiros, 710 fotografias e cartazes. Porém a maioria das peças – avaliadas em 250 mil dólares em 1950 e desde então, por medidas de segurança, sem nova avaliação, não faz parte da exposição permanente do local. Ela compreende apenas seis cópias de trajes e dois originais: o traje de sua estreia na Broadway e o do dia que deixou sua marca na Calçada da Fama de Hollywood.

Não era para ser assim. Em 2009 foi anunciado que o acervo de Carmen seria um dos carros-chefes da obra de catedral que se tornou a construção da nova e modernosa sede do Museu da Imagem e do Som, que está enferrujando na Avenida Atlântica, em Copacabana. “A exposição no MIS seria robusta. Teria vários módulos, projetados pela Daniela Thomas, com uma boate no subsolo. Um desses módulos, por exemplo, teria a Carmen apresentando o Tropicalismo e outro só sobre a Lapa”, conta César Balbi.

“O fato é que estamos provisoriamente aqui desde 1976”, brinca César. Segundo ele, o museu ficou praticamente parado entre 1985 e 2002, quando começou o processo de restauração dos icônicos trajes da cantora. Algumas peças haviam ficado expostas por mais de 30 anos e já estavam se desfazendo. “Os trajes não podem ficar em manequins normais devido ao peso, que força a trama e a urdidura dos tecidos. Então definimos que peças originais ficariam expostas inclinadas em caixas de vidro, com controle de temperatura e umidade. E as réplicas sim, ficariam em manequins”.

Em 2013, após o trágico incêndio da Boate Kiss, o museu foi fechado para adaptações de segurança. César aproveitou o período para criar as cinco réplicas de trajes que ficariam em exposição permanente no novo MIS. Além delas, foram restaurados 162 itens originais para os diversos módulos. “Os trajes originais ficariam seis meses em exibição cada um, desse mesmo modo que você vê aqui, inclinado, dentro das caixas de vidro”. Mesmo assim, César acha que seria algo ainda acanhado para o tamanho de Carmen na história cultural brasileira.

“Carmen merecia um museu padrão hollywoodiano. Com telões para exibir os filmes, salas para as pessoas ouvirem as quase 300 músicas que ela gravou. Porque Carmen traz muita coisa. Precisaria de um módulo só para discutir a Carmen do ponto de vista da moda. Antes do personagem da baiana ela era uma referência muito vanguardista para as mulheres. Foi uma precursora do estilo art-déco, apresentando-se no Cassino da Urca com calças pantalonas muito modernas, por exemplo”, diz ele. Mas se aqui nos trópicos as autoridades dão pouca bola para a história de Carmen, em sua Portugal natal a coisa começou a mudar.

Carmen Miranda nasceu Maria do Carmo em Marco de Canaveses, ao norte de Portugal, em 9 de janeiro de 1909. Tornou-se Carmen Miranda no Brasil, depois estrela internacional nos Estados Unidos, primeiro na Broadway e depois em Hollywood. Em 2022 sua cidade natal resolveu criar um museu em sua homenagem e iniciou tratativas com as autoridades brasileiras para formar um acervo respeitável. “Só que eles querem tudo de graça. E, de graça, o Brasil já deu muita coisa para Portugal”, ironiza César. As negociações estão paradas no momento.

“Já passámos por várias fases da negociação. Uma das últimas conquistas foi, eventualmente, poder trazer alguns dos vestidos que estão no Museu Carmen Miranda no Rio de Janeiro, que neste momento não estão em exposição e que não estão conservados da melhor forma”, afirmou Cristina Vieira, diretora do museu português, indicando que “uma das contrapartidas em trazer para cá parte do espólio seria poder fazer também o restauro”. Cristina garante já ter 210 mil euros em caixa para o restauro das peças que vierem a ser emprestadas.

“Não devemos olhar Carmen apenas como uma showwoman, mas como um processo cultural. Ele teve uma participação fundamental na aproximação cultural dos países do centro e sul da América. Devemos perceber Carmen, e aqui o visitante do museu vai percebendo melhor essa criança que vai se transformando num ícone mundial. Era uma mulher muito à frente do seu tempo”, diz o curador do museu português, Armando David, historiador musical.

E enquanto a Europa se curva perante o Brasil, César Balbi e sua pequena equipe vão fazendo o que podem. “Somos o museu mais visitado do estado”, garante o diretor. Os herdeiros também ajudam. Eles bancaram do próprio bolso um site contendo sua história, músicas e fotos. E parte do seu acervo (168 itens), entre turbantes, roupas e acessórios diversos está em exposição on-line na plataforma “We wear Culture”, lançada pelo Google para difundir exposições de moda ao redor do mundo. César lembra de uma definição da cantora e atriz feita pelo compositor Mario Lago em um dia de visita ao museu: “ele dizia que a Carmen trazia o samba para a cidade. Ela nunca foi de uma escola de samba. Ela conhecia os compositores e criava. Ela tinha o caminho do samba, da Praça XI, da Lapa. Ela era híbrida, e por isso, internacional”.