CULTURA: HERÓI DA RESISTÊNCIA DO CINEMA

A Cavídeo se instalou nas Casas Casadas, em Laranjeiras

Jan Theophilo

Os serviços de streaming enfrentam uma crise sem precedentes. Com o advento da Netflix, no início do milênio, a programação linear virou coisa do passado. Por uma mensalidade barata, o assinante passou a ter entretenimento na palma da mão, na hora que quisesse. Se até 2015 Netflix era sinônimo desse tipo de serviço, na virada para 2020 surgiu uma enxurrada de novas plataformas. O custo-benefício foi pro espaço. As novas empresas travaram uma guerra comercial, turbinada por questões legais e de direitos autorais, para engordar seus catálogos. Logo, a quantidade superou a qualidade. Com o sucesso da série “House of Cards”, as plataformas começaram a apostar em filmes e séries exclusivas, resultando em uma quantidade absurda de conteúdo lançado industrialmente, mas boa parte dele de qualidade duvidosa. Para piorar, muita gente boa já havia aberto espaço nas estantes dando ou vendendo seus DVDs e fitas VHS. Afinal, diziam os futurólogos de botequim, tudo logo estaria na nuvem. E para piorar, a boa e velha locadora da esquina deu lugar a uma farmácia.

“O pessoal reclama que passa 40 minutos percorrendo os catálogos até encontrar algo que assistem por 20 minutos, antes de dormir”, brinca José Carlos Alves Menezes, dono da Storm, a última locadora da qual se tem notícia no Rio. Em 1992, ele abandonou o emprego na área de informática em uma empresa de engenharia para comandar o negócio aberto cinco anos antes por dois irmãos dele. A Storm cresceu e chegou a ter duas filiais. “Duas e meia na verdade”, precisa José Carlos, irônico. Em 2000 ele viu chegarem os DVDs, e 10 anos depois os serviços de streaming.

Inimigo na trincheira: por incrível que pareça, a história da Storm virou filme que pode ser assistido na Globoplay

Mas, se por um lado, com tudo isso a Storm acabou reduzida a uma única loja na Galeria Castelinho, na Rua Gomes Carneiro, entre Ipanema e Copacabana, por outro, ela se valeu da derrocada das concorrentes para se fortalecer e se manter viva. De cada loja que fechava, José Carlos ia atrás e arrematava o estoque. Com isso, construiu um acervo invejável, com grandes clássicos do cinema, filmes cults e obras de grandes diretores. Hoje quem atravessa a pequena portinha da locadora mergulha em um túnel do tempo, formado por estantes atulhadas por mais de 25 mil DVDs de filmes devidamente identificados por diretores e gêneros. São obras de cineastas como Ingmar Bergman, Pier Paolo Pasolini, Serguei Eisenstein e Luis Buñuel, ou então produções assinadas por diretores de países como Irã, Uruguai e Vietnã. Títulos que não se encontram facilmente no streaming – se é que se encontram. A clientela é composta basicamente por idosos, estudantes de cinema e cinéfilos. O aluguel sai por R$ 7, e o cliente tem uma semana para devolver o filme.

Em seu auge, a Storm alugava cerca de quatro mil filmes por mês. Hoje, não passa de 400. “Curiosamente, a maior procura é por clássicos de terror noir. E meu grande encalhe são os filmes do Van Damme e do Steven Segall, que diferente de outras estrelas dos anos 1980, perderam totalmente o interesse do público”, conta José Carlos. Para garantir a sobrevida do seu negócio, ele resolveu diversificar as atividades e, hoje, metade da loja virou um sebo de livros. Mas ele assegura que boa parte da renda ainda vem do aluguel e venda de DVDs (que custam entre R$ 13 e R$ 15). O faturamento, segundo ele, é (quase sempre) suficiente para bancar o negócio. “Dizem que o ramo está com os dias contados. Mas pode ser que tenha uma reviravolta, como aconteceu com os vinis”, diz ele.

E isso parece não ser impossível acontecer. A revolução dos streamings atingiu seu ápice e, aparentemente, estagnou. Segundo a Bloomberg, os lucros caíram 90% em relação a última década. Se em 2013, foram de US$ 23,4 bilhões, no ano passado ficaram em torno de US$ 2,6 bilhões. Nos EUA, a HBO Max (que breve vai se chamar apenas Max) perdeu 1,8 milhão de assinantes. A Disney Plus já acumula US$ 460 milhões em prejuízos, mesmo tendo no pacote todo o Universo Marvel e Star Wars, além de suas próprias produções. Além disso, perdeu 12 milhões de assinantes em todo mundo entre o primeiro e o segundo bimestre deste ano. Pesquisas de mercado apontam que a crise se deve principalmente ao lançamento de muita porcaria ou refilmagens que muitos clientes não aprovam por, supostamente, estragar a nostalgia original. É cada vez mais raro alguma plataforma acertar um megahit como a série coreana “Round 6”. Por outro lado, a Amazon torrou US$ 400 milhões em “Anéis de Poder”, inspirada no universo de JRR Tolkien e só apanhou de críticos, assinantes e fãs radicais do universo da Terra Média. Para efeitos de comparação, o filme da Barbie custou US$ 145 milhões e arrecadou até o fechamento desta edição, mais de US$ 1,2 bilhão – um feito que apenas 50 produções conseguiram até hoje em todo o mundo.

Ironicamente, a história da Storm entrou para o catálogo de uma das plataformas. Estudante de direção teatral na UFRJ, Samuel Valadares, passou cinco anos registrando o dia a dia da locadora com sua câmera. O resultado é o filme “Storm Vídeo”, disponível na Globoplay desde dezembro de 2021. “Minha ideia não era contar a história da locadora, mas mostrar a relação de José Carlos com a loja, os clientes, além de abordar a forma como ele lidava com esse comércio que estava morrendo”, disse Samuel.

História semelhante à da Storm aconteceu com a Cavideo, do cineasta Cavi Borges. Com um acervo de mais de 27 mil títulos de filmes e 20 mil livros de cinema acumulados ao longo de 30 anos, ele sucumbiu à pandemia. Mas a boa notícia é que ele firmou uma parceria com a Prefeitura do Rio, que cedeu gratuitamente um espaço nas Casas Casadas, em Laranjeiras, onde foi instalado o Espaço Cultural Cavídeo. A diferença é que lá os filmes não são mais alugados e sim emprestados.

OBRAS-PRIMAS QUE VOCÊ SÓ ACHA NA LOCADORA

Hair: O musical que aborda o movimento hippie e suas intercorrências voltou a ser bastante comentado após a morte do ator Treat Willians, que interpretava o anárquico personagem Berger, em junho deste ano. Dirigido por Milos Forman após George Lucas (ele mesmo) recusar a empreitada, trata com leveza temas ásperos para a época, como racismo, sexualidade, drogas e relações familiares. Entre suas inúmeras cenas antológicas nada supera aquela em que Berger dança sobre a mesa em um banquete de milionários que pouco se lixavam para os jovens que iam morrer na guerra do Vietnam.

O discreto charme da burguesia: Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1973, o clássico de Luís Buñuel narra a história de seis pessoas da classe média que se reúnem para jantar, mas são constantemente interrompidos por uma série de estranhos acontecimentos. Constantemente tratado como um filme “surrealista”, é uma verdadeira uma radiografia da burguesia em sua intimidade.

A trilogia de Apu: Obra-prima do indiano Satyajit Ray, um dos maiores cineastas de todos os tempos, esta trilogia é considerada por críticos de todo o mundo como uma das maiores conquistas do cinema indiano. Os três filmes compreendem uma narrativa de “amadurecimento”: descrevem a infância, a educação e a maturidade precoce de um jovem bengali chamado Apu (Apurba Kumar Roy) no início do século XX.

Outubro: Primeiro de cinco filmes patrocinados pelo governo soviético em honra ao décimo aniversário da Revolução de Outubro, o filme mudo de Serguei Eisenstein foi usado pelo cineasta para desenvolver suas teorias sobre as estruturas dos filmes, usando um conceito que ele apelidou de “montagem intelectual”, editando junto as filmagens de objetos aparentemente desconexos em ordem para criar e encorajar comparações intelectuais entre eles.

Terra em transe: Filme brasileiro de 1967, roteirizado e dirigido por Glauber Rocha. O filme pode ser lido como uma grande parábola da história do Brasil no período 1960-66, na medida em que metaforiza em seus personagens diferentes tendências políticas presentes no Brasil naquele contexto. Foi proibido em abril daquele ano pelo governo, que o considerava subversivo. Proibido também em Portugal pela ditadura fascista, só pôde ser exibido após 1974. Em novembro de 2015 o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.