Aydano André Motta
Quando o portão da Praça da Apoteose se fechar, encerrando o desfile da Beija-Flor, na Segunda-Feira de Carnaval, estará também concluída página única da cultura brasileira. Será o ponto final de odisseia que durou meio século, 14 títulos e uma história de paixão e arte, alegria e dedicação, longevidade e coerência. No instante em que a bateria silenciar, terminará a carreira de Neguinho da Beija-Flor como intérprete na Passarela do Samba.
O cantor terá conduzido sua agremiação pelo 49º desfile consecutivo e, por decisão unilateral, deixará o posto na condição de maior nome da festa inteira, de todas as escolas. Entrará, assim, para o panteão dos artistas que fecharam suas trajetórias no auge, sem se permitir experimentar a decadência. E deixará legado de criatividade e resiliência, de alguém que venceu até o câncer em nome do samba.
O fluminense (de Nova Iguaçu) Luiz Antônio Feliciano Neguinho da Beija-Flor Marcondes, 75 anos, decidiu em novembro passado que seria a derradeira vez na avenida como intérprete. Um conjunto de fatores pesou para a escolha, a começar pela idade, que torna mais penoso o ato de cantar o samba-enredo, ao longo dos 82 minutos de desfile. (O segundo intérprete mais velho do Grupo Especial, Ito Melodia, da Unidos da Tijuca, é 20 anos mais jovem.)
Neguinho também planejou dedicar a carreira aos shows que garantem o sustento da família: a mulher e empresária, Elaine, e a filha caçula, Luiza Flor, 16 anos – ele também é pai de Paulo Cesar, Angela e JR. Na era do Carnaval radicalmente profissional, manteve relação amadora com a escola, da qual jamais recebeu salário. “Se alguém tivesse de pagar, seria eu à Beija-Flor”, garante. “Se vivesse 500 anos, não poderia pagar o que ela me proporcionou. Jamais teria construído a carreira que consegui”.
Uma história que começou no segundo semestre de 1975, ainda na versão Neguinho da Vala – apelido dos tempos de infância, inspirado pelos dias em que caçava rã nos córregos fétidos do bairro pobre onde morava. O jovem candidato a compositor, que não conseguira lugar nas então quatro grandes – Portela, Império, Mangueira e Salgueiro –, chegou a Nilópolis pouco depois do encerramento do prazo de inscrição na disputa de samba do desfile de 1976, o do enredo “Sonhar com rei dá leão”, sobre o jogo do bicho. A muito custo, o carnavalesco Joãosinho Trinta (também recém-chegado) cedeu. E Neguinho compôs o hino vencedor:
Sonhar com anjo
é borboleta,
Sem contemplação,
Sonhar com rei dá leão,
E nesta festa de real valor,
Não erre, não,
O palpite certo
é Beija-Flor (Beija-Flor)
(…)
Sonhar com filharada,
É o coelhinho…
Com gente teimosa,
na cabeça
dá burrinho,
E com rapaz
Todo enfeitado,
O resultado, pessoal,
É pavão ou é veado
A azul e branco reuniu outros talentos – o diretor de Carnaval Laíla, a destaque Pinah, a rainha de bateria Eloína, a porta-bandeira Juju Maravilha – e enfileirou um tricampeonato, materializando revolução única na festa. Tornou-se a escola protagonista, marcando época com desfiles ao mesmo tempo luxuosos e inflamados.
Sedimentou-se casamento indissolúvel entre o grêmio da Baixada e seu cantor, que teve os componentes como aliados até no momento mais difícil da vida. Em 2008, aos 59 anos, Neguinho foi diagnosticado com câncer no reto. O povo da escola mostrou sua força novamente e invadiu o hospital em solidariedade ao ídolo-parceiro – a ponto de os médicos proibirem visitas.
Num ensaio para o desfile de 2009, ele , de máscara por causa da baixa imunidade, escondeu-se num camarote, para assistir a seus confrades. Foi descoberto – e saudado pela comunidade com oração forte, conduzida em coro por quatro mil pessoas. “A escola armada na quadra e todos rezando por mim. Não tô falando que devo muito mais à Beija-Flor do que ela a mim?”, relembra, emocionado.
Mesmo debilitado, não faltou àquele Carnaval – cantou acompanhado pelo médico e com aparato de emergência a postos. Antes, careca pela quimioterapia, casou-se com Elaine na concentração da Sapucaí; teve, entre os padrinhos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Curou-se da doença e ostentou vigor ao longo dos anos, transformando-se no “Senhor Sapucaí”, como apelidou título inspirado de “O Globo”. Ao atrelar sua carreira à pista mítica, passou a ser reverenciado por cantores dos mais variados gêneros e se transformou numa das caras mais emblemáticas do Rio.
Aparentando menos idade do que tem, Neguinho mora num confortável apartamento em Copacabana (mas não abandona a Baixada Fluminense, onde também tem casa). Exercita-se diariamente na areia da praia e não negligencia as aulas de canto e o cuidado com a garganta, tudo para seguir a carreira internacional, pontilhada de shows pelo Brasil e turnês por todos os continentes.
“Não briguei com ninguém, nem cansei da Beija-Flor, que será para sempre meu grande amor”, assegura. “Vou continuar acompanhando a escola, desfilarei na diretoria sempre que possível. Mas senti que era hora de parar como intérprete. Ajudei nessa construção por 50 anos, agora está na hora de dar lugar aos mais jovens”, explica.
A cultura brasileira e o Carnaval agradecem. Neguinho da Beija-Flor será eterno na história de nossa grande festa.
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