Por Ricardo Bruno*
O carnaval extemporâneo de 2022 tem códigos e signos que merecem ser decifrados à luz da história. A prevalência absoluta de temas engajados em protesto contra o racismo, a desigualdade e a violência, em meio à truculência política promovida por Jair Bolsonaro, assenta de modo irretorquível a teoria do russo Mikhail Bakhtin de que a festa é um momento de afirmação pública de uma fugaz inversão social – mas fortemente simbólica. No bailado jocoso, sobram críticas de efeito político demolidor. Prevalecem as regras do riso, do comportamento frouxo, desregrado e um tanto anárquico, em contraste com o formalismo careta do poder oficial.
Não foi coincidência tampouco o acaso. Historicamente, fracassaram todas as tentativas do poder institucional de refrear o espírito crítico dos foliões. Se no Estado Novo, Getúlio Vargas tentou impor a abordagem de temas de exaltação à história nacional; se durante a ditadura militar de 64, houve um rebote desta tentativa de capturar a folia pelas forças dominantes; em 2022, o controle da festa foi retomado inteiramente pelo chão dos barracões – onde se mesclam carnavalescos famosos e outros tantos protagonistas anônimos dessa fascinante narrativa popular da história contemporânea brasileira.
O conjunto crítico de temas e enredos ecoou como uma espécie de rosnar das massas em oposição ao embrutecimento da política, sob um governo central sisudo e de pretensões autocráticas. Não houve regra ou o entendimento para que fosse assim. Os grêmios simplesmente expressaram o sentimento latente da sociedade brasileira. Promoveram, de fato, a subversão social, antevista pelo intelectual russo.
Há muitos anos a folia na avenida não se contrapunha de modo tão visceral às regras e normas emanadas de um governo de cacoete ditatorial, anulando as distinções entre governantes, governados, atores e espectadores. Suspenderam-se regras e dogmas – ainda que provisoriamente. Num súbito e fantasioso processo de ascensão proletária, os extratos da base da sociedade brasileira impuseram-se como protagonistas de sua própria história, restando aos governantes um papel secundário; coadjuvantes, se tanto. Ao fim e ao cabo, a Sapucaí de 2022 foi palco de uma manifestação benfazeja do anti-poder. Após o balé de ritmistas e passistas da última escola, teve-se a sensação de que tudo o que foi ali apresentado poderia ser resumido num grito ensurdecedor, que não foi dito, mas ouvido: “Fora Bolsonaro”.
Se o carnaval promove a subversão da ordem em sentido estrito, invertendo a hierarquia de comando e poder, a arte, abundante na festa, é um instrumento revolucionário. Nesta edição, um ano após a morte de Paulo Gustavo, a Rio Já dedica suas páginas a uma de suas amigas mais próximas: a igualmente niteroiense e talentosa Samantha Schmütz.
Fomos também ao Largo do Terreiro da Pole, ou, para os mais íntimos, Praça XV de Novembro, para desbravar o novo Centro Cultural Convento do Carmo, recém recuperado após investimentos de R$ 30 milhões da Procuradoria Geral do Estado. O espaço faz parte do projeto “Caminhos do Brasil Memória: Centro Histórico Praça XV”, que articula outros 13 equipamentos culturais da região e se propõe a buscar soluções para recuperação daquela área, por meio de atividades em rede dos centros culturais e museus, como o CCBB, o Palácio Tiradentes e a Casa França-Brasil
Mergulhamos ainda na Lagoa Rodrigo de Freitas para tentar desatar imbróglio que envolve o estádio de remo, que se arrasta na justiça há mais de 20 anos e impede a utilização plena de
um dos espaços mais aprazíveis da cidade, o Complexo Lagoon.
Ainda sob os eflúvios da Sapucaí, é necessário dizer que o protesto incontido, expresso nos enredos, sambas e manifestações espontâneas da plateia, funcionou como uma espécie de radiografia recôndita da alma do povo brasileiro neste momento grave da vida nacional. Revelou as entranhas e a profundidade do descontentamento.
Se o carnaval chegou, mas com ele ainda não veio o fim do atual pesadelo cívico que nos atormenta, é preciso aguardar um pouco mais.
A paráfrase dos versos de Chico Buarque ajuda a dimensionar o tempo que nos resta de martírio:
“Quem me ofende, humilhando,
pisando
Pensando que eu vou aturar
Tô me guardando pra quando
outubro chegar
E quem me vê apanhando da vida,
duvida que eu vá revidar
Tô me guardando pra quando
outubro chegar”
Que venha outubro!
O jornalista Ricardo Bruno é chefe de redação da RIO JÁ