ARTIGO: A QUEM INCOMODAR POSSA

POR ANDRE RODRIGUES

Acabamos de passar pelos 90 anos da primeira disputa das escolas de samba. Nesse longo período de negociação e evolução, as queridas agremiações nos entregaram assuntos e debates de diferentes origens, recortes e olhares. Pautaram o Brasil, pontuaram períodos da história, ditaram moda, definiram assuntos, moldaram valores e caráter dos brasileiros. Foram elas as responsáveis por traduzir (durante considerável período de tempo) o que eram as necessidades desse povo.

Pois bem: passados esses 90 anos, volta ao debate, no ano de 2020, o papel intelectual do negro na maior e mais importante manifestação cultural do país.

Assim como o doloroso processo que vivemos fora do universo de fantasias do Carnaval, o mundo das escolas de samba foi dominado pela branquitude que resolveu pautá-lo para benefícios próprios, privilegiando (como sempre) sua maneira de contar as histórias. Os negros que faziam cultura nos anos 1930 – o que perfeitamente poderia ser o Modernismo Carioca – negociaram seus espaços no comando da manifestação para não sucumbir às duras investidas das organizações brancas sobre a festa.

Voltando no tempo, para termos ideia de como se deu a tomada de narrativa, durante os festejos carnavalescos acontecia, em jornais e rádios, a disputa do “Cidadão Samba”, concedido ao mais nobre expoente sambista do ano. O prêmio promovia uma luta de vaidades entre os próprios sambistas – espetáculo para branco ver. Mas quem elegia as pessoas mais importantes do samba? Quem teve a audácia de se postar acima de Ismael Silva ou Paulo da Portela, os criadores de tudo isso que vivemos? Sim, homens brancos, formados, acadêmicos, jornalistas etc. Em momentos como estes perdemos o poder de narrar nossas próprias histórias, de pautar nossos interesses, de eleger nossos ilustres.

E não é assim até hoje? Qual fundamento de cultura está dizendo o valor da nota 10 de um casal de mestre-sala e porta-bandeira, na dança inaugurada por Bicho Novo? A batida da bateria, o que ela evoca? Quem são os que elegem os sambistas de ouro? Quantos negros enxergamos nesses espaços?

E é exatamente nesta condição que eles se sentam na confortável cadeira do privilégio.

A escola de samba criou Brasis pela ótica eurocentrada ou ufanista. A escola de samba pagou muito caro pela pouca visibilidade dos negros que a constituíam; nessa troca quem muito ganhou foram os artistas da pele clara. Alçados aos papéis de revolucionários, transformadores e até salvadores, esses personagens se apossaram de várias camadas do processo das escolas, para empurrá-las a esquecerem ou desvalorizarem seus artistas primordiais, como compositores, carnavalescos, músicos, pensadores – todos negros e oriundos dessas comunidades.

Cá estamos em 2022, ano do maior número de enredos que tratam da ancestralidade, das origens ou dos debates sobre questões de raça neste país. Todos de caráter combativo. Cresce também  a urgência dos debates sobre representatividade no desenvolvimento e no comando dos enredos, valorizando o recorte pelo lugar de fala. 

Surgem novos intelectuais negros falando sobre escola de samba pelo recorte racial e social que os abraçam. Surgem novos (e novas!) carnavalescos, pesquisadores, jornalistas, compositores. Todos racialmente letrados, entendendo que seus papéis serão de retomar a ancestralidade que os atravessa. Artistas que compreendem que a intelectualidade carnavalesca sempre enxergou o corpo da escola de samba como objeto de estudo e promoção, não como um corpo igual, possível, vivo, necessário e necessitado.

São novos tempos, que provocam novos debates sobre o papel do poder e do trabalhador, o papel de quem fala e quem se quer atingir. O corpo preto inteligente é provocador por estar vivo e pensante.

A quem incomodar possa, vai o recado: estamos vivos e produzindo escola de samba de alta qualidade, voltada para suas verdades, respeitando nossos antepassados, nossos ancestrais, os mais velhos e os mais novos. Muitos irão se inspirar em nós – e os caminhos estão abertos e protegidos. Laroyê!

Somos a brasa de Exu, a espada de Ogum, a flecha de Oxóssi e o Oxê de Xangô. Somos o incômodo do conforto, somos o vento e a semente, somos tudo e nunca mais seremos nada.

André Rodrigues é diretor de criação da Beija-Flor