VITÓRIAS DE EXU

Por Gabriel Haddad e Leonardo Bora*

O desfile de 2022 da Acadêmicos do Grande Rio, que deu a inédita vitória no Grupo Especial para a tricolor de Caxias, causou uma disparada de buscas pela palavra “Exu” nas plataformas de pesquisa da internet. Desdobrou-se, ainda, em dezenas de matérias televisivas, centenas de textos e artigos (acadêmicos ou não) em revistas e publicações virtuais, homenagens, prêmios, pinturas, poemas, tatuagens, exposições.

Coroando um estranho Carnaval realizado em abril, depois da Páscoa cristã e misturado aos festejos de São Jorge, Exu, a divindade saudada no desfile, estava na boca do povo, em sala de aula, nas conversas de botequim. Uma vitória e tanto se pensarmos no histórico processo de demonização, preconceito, racismo religioso, violência e perseguições (e, por conseguinte, silenciamentos e interditos) enfrentado pelas religiões de matrizes africanas e, principalmente, pela figura central de Exu, senhor do movimento.

A repercussão de tal desfile, que conseguiu “furar a bolha carnavalesca”, na linguagem usual do “mundo do samba”, nos ajuda a visualizar o poder de reverberação e (re)construção de imaginários das centenárias escolas de samba e suas raízes negro-populares. Conforme lecionam pesquisadores como Vinícius Natal, essas instituições expressam, desde o alvorecer do século 20, as potências de vida e consolidação de laços identitários de milhares de pessoas que, no pós-abolição, se viam postas à margem de um projeto de país que valorizava os “boulevares” centrais em detrimento de periferias e morros.

No decorrer do século passado e nas duas primeiras décadas deste já tão intenso século 21, as escolas de samba cantaram, performaram e traduziram em musicalidade e esplendor visual narrativas que, aos moldes de Exu, desafiam o tempo e preenchem lacunas dos mais empoeirados livros. Contam a “história que a História não conta”, para citar o icônico samba de enredo da Estação Primeira de Mangueira de 2019.

Muitas já foram as histórias, as Histórias e as estórias contadas e cantadas pelas escolas. Foram as agremiações sambistas que bordaram em definitivo, no mapa brasileiro (e de que Brasis estamos falando? – é válido perguntar!), nomes como Xica da Silva, Chico Rei, Tereza de Benguela, Agotime, Dom Obá II – e tudo isso muito, muito antes de iniciativas louváveis como o projeto “Enciclopédia Negra”.

Ele é vitorioso e professor desde que o primeiro tambor ressoou em um terreiro e ganhou o asfalto das ruas da cidade, ensinando e convidando as multidões ao debate, à festa, à luta, ao delírio.

Quando a Beija-Flor de Nilópolis celebrou, em 2001, a saga da Rainha Agotime (contada em forma de literatura de cordel por Jarid Arraes, na coletânea “Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis”, de 2017), cada um dos componentes da escola da Baixada e cada um dos espectadores daquele magistral cortejo aprenderam – e, consequentemente, ensinaram – muito a respeito de uma biografia até então desconhecida do chamado “grande público”. O axé de Agotime rebrotou na Passarela!

Também é de se aplaudir a diversidade de maneiras de narrar que as escolas de samba expressam, o que é fruto, por óbvio, de sólidas pesquisas e infindáveis discussões. Em 1997, a temática da “loucura” (presente em algumas das mais belas páginas de Machado de Assis e Guimarães Rosa, autores canonizados de nossa literatura) foi cantada por duas escolas de samba do Grupo Especial carioca: Salgueiro e Porto da Pedra.

Enquanto a escola tijucana centrou a narrativa na psiquiatra Nise da Silveira, fundamental para o pensar da luta antimanicomial, a coirmã de São Gonçalo preferiu listar personagens do imaginário coletivo associados à “insanidade”, como Dom Quixote, Napoleão Bonaparte, Arthur Bispo do Rosário. Bispo, aliás, também apareceu no enredo e no desfile do Salgueiro, ou seja, desfilou duplamente naquela ocasião. E quem vai dizer que tais narrativas não contribuíram para o trabalho desse artista chegar a pessoas que possivelmente nada sabiam sobre ele?

Bispo se inscreveu nas narrativas da contemporaneidade ao subverter a lógica massificadora do manicômio e construir peças que recriavam o mundo – entre elas, uma coroa e uma capa para Exu. É de Luiz Antonio Simas a ideia de que “Exu é uma escola de samba”, tantas e tamanhas as potências exusíacas que as agremiações sambistas guardam nos seus roncós. Os saberes que giram nas saias de baianas e porta-bandeiras, a arte riscada pelos pés de passistas, as batidas das baterias, cada uma consagrada a um santo. 

É essa vida que pulsa e insiste em pulsar, mesmo quando sufocada e demonizada pelo poder público, que impulsiona reencantamentos sucessivos. Exu não venceu apenas em 2022. Ele é vitorioso e professor desde que o primeiro tambor ressoou em um terreiro e ganhou o asfalto das ruas da cidade, ensinando e convidando as multidões ao debate, à festa, à luta, ao delírio. Porque cada paralelepípedo sabe que o samba não pode parar – a gira, laroiê!, continua.

*Gabriel Haddad é mestre em Artes e doutorando em História da Arte pela UERJ e carnavalesco da Grande Rio;

*Leonardo Bora é doutor em Teoria Literária e professor de Ciência da Literatura da UFRJ. São carnavalescos da Acadêmicos do Grande Rio, criadores do desfile campeão de 2022