A PERFEITA TRADUÇÃO DE UM TRABALHADOR

POR JAN THEOPHILO

“Se eu contar minha história pro carroceiro, o burro chora”, brinca José Nilton Barbosa, 50, mais conhecido entres os boxes e depósitos do CEASA, nome popular da central de distribuição de alimentos do Rio, no bairro do Irajá, pelo apelido de juventude de Cabeludo. Em 1978, aos seis anos de idade, o pai o trouxe de Campina Grande (PB) para morar na favela do Acari. Mas foi nas madrugadas entre frutas e legumes que fez a vida. Aos 10 anos varria lojas em troca de comida. Aos 16, já arrastava “burros sem-rabo” com sacos de 50 quilos de batatas ou cebolas. Poucos anos depois, promovido a vendedor, revolucionou o comércio local abrindo sua loja meia-noite, três horas antes dos demais fornecedores. Hoje, mesmo sem jamais ter aprendido a ler ou escrever, Cabeludo comanda uma empresa de mais de 300 funcionários, 18 lojas e depósitos com mais de 30 mil itens de produtos variados e um faturamento mensal na faixa dos R$ 8 milhões. Mas continua o mesmo workaholic incansável que circula pelos 16 pavilhões do CEASA festejado e cumprimentado a toda hora como um vereador do interior. “Até pouco tempo o pessoal lá de casa andava de Uno. Meu filho me perturbou até eu comprar um Jeep Compass”, conta, com uma sonora gargalhada em seu escritório, em uma megaloja do CEASA.

l Rio Já: Como começou sua relação com o CEASA?

 n Cabeludo: Quando eu tinha seis anos meu pai me trouxe de Campina Grande pra morar na comunidade de Acari, aqui perto. E eu então, muito novo, fiz do CEASA meu meio de vida. Catando xepa, vivendo das migalhas que sobravam nos pavilhões. Foi quando conheci o Amaury, um dos donos da Seridó Cereais — os nomes aqui são todos nordestinos — que virou meu amigo, sócio e mentor. Eu comecei a varrer a loja dele em troca de uma quentinha no almoço e outra na janta. Porque quando você é menor em comunidade, ou corre atrás de alimento ou corre pro mundo errado. E eu preferi correr atrás no Ceasa. O Amaury foi mais do que um pai pra mim. Quando eu faltava ao trabalho, muito novo, ele mandava me buscar na comunidade pra varrer a loja. E assim foi até os 16 anos de idade quando fui promovido a carregador. Arrastava aqueles “burros sem rabo” com sacos de 50 quilos de batata ou cebola. (Hoje uma ilustração de um carregador é a logomarca de seus negócios).

l Quando começou a virada na sua vida?

 n Bom, primeiro virei carregador, daí já tinha um salariozinho e a carteira assinada. Além disso tomava conta de carro, ajudava a organizar os caminhões, e acabei conhecendo toda a clientela de hortifruti. Já ganhava mais em gorjetas do que de salário. Até que os sócios da Seridó romperam e os principais vendedores foram embora. O Amaury, coitado, não sabia o que fazer e eu disse: “vamos cair dentro, vamos trabalhar”. Ele levantou a cabeça e me disse: “a partir de amanhã você vem de roupa trocada. Você não vai ser mais carregador, vai ser vendedor”. Eu fiquei apavorado. Tinha 19 anos, mas nunca tinha entrado em uma sala de aula. Como ia ser vendedor? Anotar um pedido? Ele falou “você vende e eu anoto”. Foi quando eu mudei o horário do CEASA.

l Como assim?

n Naquela época, o CEASA abria 3h30, 4h da manhã. Eu já morava em Caxias, na Vila Operária, então passei a sair de casa as 23h e, meia-noite, já abria a loja. Quando o resto do pessoal começava a chegar, eu já tinha vendido pelo menos dois caminhões de batata. Eu brinquei vendendo batata e cebola. A margem de lucro era de mais de 50%. Tinha dias de vender 12, 14 caminhões. Logo a concorrência passou a abrir mais cedo também. Mas a gente já havia se destacado, tanto que começaram a me convidar pra conhecer roça. Hoje conheço quase todos os principais produtores do Triângulo Mineiro. Fui me desenvolvendo. Mas colégio que é bom…nada.

l Você nunca frequentou a escola? Isso nunca te atrapalhou nos negócios?

n Olha, se você me perguntar se faz falta, faz falta sim. Hoje eu tenho uma equipe que me ajuda muito. Mas sou bom de número. Número e conta. É que acabei aprendendo um pouco de matemática no vuco-vuco do dia-a-dia. Mas, na vida, a prova em que passei mesmo foi a do trabalho. Para você ter uma ideia, no dia do meu primeiro casamento, vim no CEASA abrir a loja, trabalhei até 8h da manhã, fui até Caxias me casar e depois voltei para trabalhar. Era essa lida aí.

l E quando foi que você partiu para ter o seu negócio próprio?

 n Um dia eu estava tomando um café no CEASA quando vi uma lojinha de 49 metros que, por acaso, era do dono do botequim. Ele tentara abrir uma pastelaria ali e não deu certo. Perguntei se ele alugaria pra mim. Era mil reais por mês, mas eu não tinha esse dinheiro. Liguei pro Amaury, contei que tinha achado a lojinha e se ele poderia me ajudar. Ele disse que sim. E qual era ajuda que eu queria? Crédito, dinheiro. Mas ele me cozinhou um ano. Porque na verdade ele sabia que se eu abrisse a loja e desse certo, eu largaria ele. Então penei lá trabalhando. Precisei vender meu carro para bancar o aluguel e começar a ocupar a loja oferecendo produtos pequenos. Porque eu não tinha crédito, não era ninguém. Quando ele finalmente viu que eu não ia desistir, ligou para alguns fornecedores grandes, desses que mandam no mercado, e os caras chegaram a mim. Foi quando conheci o André Sanchez, que agora tá mexendo com futebol.

l Você diz o André Sanchez, do Corinthians?

n O próprio. Ele tinha uma indústria de embalagens em São Paulo e um monte de lojas pelo Brasil todo. E na minha frente tinha uma filial. Mas eu nunca tive a coragem de pedir crédito a ele. Até que juntei coragem e fui falar com o gerente da loja. O rapaz me falou: “Cabeludo, o não você já tem. Segunda-feira ele tá aí. Chama e conversa com ele”. Quando eu vi o cara, tremi. Como é que a gente pede crédito duro? Mas eu criei coragem e contei minha história. E ele “tá bom, vou ver o que eu faço”. Na época, 20 anos atrás, eu tinha conseguido juntar 10 mil emprestados pra ampliar a oferta de produtos. Cheguei lá com os 10 mil, o André me recebeu, chamou o financeiro dele e disse: “Vamos ajudar o garoto. Você vai comprar 10 mil à vista e vou te dar 10 mil de crédito”. Aí começou a história pra valer. Comprava loja, dava certo, abria outra, dava certo também. Hoje a marca Cabeludo está em 18 lojas e depósitos e temos mais de 300 funcionários. Quando eu comecei era só embalagem bruta: Bobina, sacola de supermercado. Hoje tenho mais de 30 mil itens de produto. Se chegar aqui e quiser montar um restaurante, eu só não tenho fogão. Tenho tudo de hotelaria.

l E agora, quais os planos futuros?

nSou um cara satisfeito, realizado. Eu não trabalho por dinheiro, trabalho por prazer. Nós vamos expandir essa loja onde estamos, que tem 1.250 metros e vai ganhar mais 1.500 metros. Com isso vamos passar, só aqui, de 80 para uns 140 funcionários. Nosso principal investimento é em gente, nos nossos funcionários. Porque todas essas conquistas não são só minhas, são deles. E isso é muito gratificante.