UM SÉCULO ANTES DE BARDOT

As caiçaras herdeiras das fundadoras de Búzios celebram a ancestralidade jogando a rede no mar e lembrando os tempos em que a cidade era uma vila de pescadores

Luisa Prochnik

Sabe aquela conversa, de meio de tarde, sobre uma calçada de cidade pequena, cheia de causos e risadas, quando o tempo parece que desacelera? Esse é o clima da entrevista, ou melhor, do bate-papo agradável com as mulheres caiçaras de Búzios. As vozes do grupo se misturam, se atropelam, se complementam. Múltiplas vivências são costuradas com o cenário de uma cidade que não existe mais: Búzios antes da explosão de turistas, quando deixa de ser, de vez, uma aldeia de pescadores, para se tornar o paraíso mais glamouroso da região dos lagos. A Buzias pré-pré-pré-Bardot. Hoje a cidade é cara, tem comércio de luxo, noitadas badaladas, shows e grandes eventos; tem mansões de artistas, de pessoas ilustres. Búzios ferve, mas, de uns tempos para cá, tem outras camadas sendo reveladas, camadas mais profundas, suas raízes, suas origens.

— A gente viu que as pessoas contavam as histórias de Búzios só de Brigitte Bardot, ninguém contava a nossa história, que estava dentro da nossa casa. Aí um dia fiquei revoltada por uma situação e falei, pronto, a partir de agora a gente vai começar a contar nossa história – afirma Leni, presidente da Associação das Caiçaras, que, de legalizada para cá completou dois anos.

— O que eu conto, na verdade, é dentro do que eu vivi. E algumas coisitas a mais que a gente pega no meio do caminho das irmãs mais velhas, de uma prima, de outra família – completa Sarah, irmã de Leni, tida como a historiadora do grupo por ter grande prazer em divulgar memórias dela e das outras caiçaras.

Prazer que reacendeu a identidade caiçara, a vontade de contar e de celebrar costumes, gastronomia, modo de vida e de sustento. Quando pequenas, o peixe era o produto principal e eram variadas as formas de pescar.

— Nossa família sempre foi de pescadores. E o que temos hoje, nossos pais deixaram e tem meu esposo também que é pescador – lembra Deisy, filha de Sebastião e Amélia.

— Caiçara é mais na rede, é artesanal. E de nylon, pesca de vara. O meu pai saía para pescar na canoa grande, botava a rede, aí vinha lotada: 5 mil, 6 mil peixes. Você sabe o que é isso? Não eram dois, três que o pessoal pega hoje não – compara, Leni, o ontem e o hoje da pescaria em Búzios.

— Tinha salga de peixe ali na Praia dos Ossos, na subida da Igrejinha. E nós, como crianças, a gente ia e lavava os peixes para elas salgarem — tem a mesma lembrança a Lili, que ainda tem um irmão pescador. — Meu irmão vive de pesca, pesca de linha. Hoje mesmo pescou lula e anchova.

— Meu pai tinha uma casa de peixe na beira da praia. Ele escalava o peixe – isso é abrir igual bacalhau – para colocar o sal. As mulheres limpavam, mas os filhos é que lavavam e era o mais prazeroso para nós, para as crianças – diz Sarah, que lavou muito peixe antes da salga.

O peixe era comida – peixe frito com banana o prato típico – e também moeda de troca em um vilarejo em que pouco dinheiro circulava. Para completar a mesa, das roças localizadas em praias como Ferradura, Forno, Brava e João Fernandes vinham legumes e frutas variadas.

— A gente pegava as mandiocas, colocava no jacá, dois cestos ao lado do burro, levava para Casa de Farinha. As mulheres todas descascavam a mandioca. Tinha o processo de colocar na moedora, de tirar aquele sugo para fazer a farinha. Meu pai ficava 15 dias no mar. Ele voltava e trazia as coisas. Fardo de linguiça, de calabresa, de carne seca, de farinha, para a gente ter o que comer. Quando ele não estava, a gente comia o que tinha: peixe, legumes, fruta – mamão e banana. – explica Zenith.

A celebração da pesca é motivo de orgulho para elas. O Dia Nacional das Caiçaras, comemorado em 15 de março, não podia ser diferente: uma animada puxada de rede na Praia do Canto. Caiçaras se misturam com moradores e turistas, a canoa espalha a rede de uma ponta a outra, e, aí, quem está na areia puxa. Puxa forte. E se não vem mais 5 mil peixes, nem perto disso, os que caem na rede são suficientes fazer a farra dos que estão presentes.

Segundo a socióloga e fotógrafa Lygia Baeta Neves, em seu livro “O Mar, a Pesca, a Ponta dos Búzios”, a antiga vila de pescadores começa a sofrer uma grande transformação, a partir de 1951, quando José Bento Ribeiro Dantas construiu sua casa em Manguinhos. Ainda segundo o livro, o novo proprietário se encantou por Búzios e decidiu investir em melhorias na cidade, o que atraiu a elite carioca e o fim dessa história é bem conhecido, repleto de hotéis, restaurantes e condomínios de casas. Entre os destaques locais, a rua mais conhecida de Búzios, a Rua das Pedras, tem o nome oficial em homenagem ao benfeitor dos anos 50. A mesma rua que hoje é tomada por lojas e restaurantes guarda outras histórias nada conhecidas, mas impactantes para a cultura local: foi lá que várias caiçaras nasceram, tiradas de parteira, como elas mesmo contam.

— Por que nós saímos da rua das Pedras? Nós tínhamos a casa de peixe e lavávamos o peixe nessa mesma praia e aí ficavam as vísceras. Nos anos 70, começou a vir o pessoal do Rio de Janeiro que tinha dinheiro para ficar turisteando e começou aquela pressão para o meu pai sair da beira da praia — explica Sarah, que diz ter a propriedade da sua família, em lugar nobre e valorizado nos dias de hoje, ter sido vendida pelo preço de um fusca. – Mas fusca era carro na época – completa ela sem perder o bom humor.

— Papai assinou e saiu vendendo um monte de terreno ali em Geribá. Ninguém tinha noção do que estava assinando. A gente perdeu muita terra por causa disso – diz Lili

A vida das mulheres não era nada fácil. Se os homens viviam 10, 15 dias debaixo de sol e chuva para trazer peixe para casa, elas tinham que ser pai e mãe, cozinhar, salgar peixe, pegar lenha e uma atividade que é também central na história de todas elas: buscar água no poço. O bate-papo para esta reportagem aconteceu ao lado do Poço da Bomba, local para pegar água para casa e para lavar roupa. E, segundo elas mesmas contam, era a rede social da época, quando um grupo grande de mulheres de idades variadas se reunia e ficava sabendo notícias das outras, de namoricos a casamento até quem tinha vendido sua roça para uma grande empresa. Pelo visto, o local continua sendo uma boa fonte de informação, pois foi lá que causos deliciosos foram contados, como o seu Marinô, que vendia tecido, e não se lembrava qual a casa era de quem na hora de cobrar. De uma cidade que dormia de janela aberta e se podia colher fruta na roça do vizinho. Que se queimava bosta de boi para matar mosquito. E tantas outras histórias que, hoje, não vão cabem mais escondidas dentro de suas casas: há livros sendo escritos, árvore genealógica das caiçaras sendo montada, há projeto para celebrar a gastronomia – Saberes e Sabores Caiçaras –, trilhas antigas sendo apresentadas aos turistas, há abaixo-assinado para as ruas valorizarem os moradores antigos e outros tantos projetos culturais. E há também uma vontade grande de aproveitar a vida e tudo que já se construiu nas últimas décadas.

— A gente vai fazer trilha, vai mergulhar. Vai fazer natação. A gente estava fazendo canoa havaiana. Só mulheres com mais de 60 – sorri Lili ao reforçar que há luta, mas com um desejo enorme de curtir tudo que o paraíso de Búzios, mesmo tão diferente de quando nasceram, ainda tem para oferecer. Sem perder a tradição e o bom humor.

Em Búzios, as caiçaras têm companhia de outros povos originários, que também buscam ocupar seus espaços, reivindicar seus direitos e compartilhar seus saberes. Entre eles, os quilombolas e as marisqueiras. Uma cidade que ferve: paradisíaca, badalada e cheia de memórias deliciosas do passado que merecem ser contadas, experimentadas e imortalizadas.