RIO 60 GRAUS

Fernanda Abreu: música premonitória e apocalíptica

Jan Theophilo
“Rio 40 graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”. O hit de Fernanda Abreu e Fausto Fawcett, lançado em 1992 como previsão futurística e apocalíptica, ficou defasado bem antes do que se esperava. Com a chegada da estação favorita de cariocas e simpatizantes, as previsões são de temperaturas nunca vistas podendo chegar a alucinantes 60 graus, pelo menos como “sensação térmica”! Um calorão desses só havia sido registrado antes no Vale da Morte, na Califórnia, que certamente não deve ter ganhado esse nome à toa. Mas como diz aquele famoso vídeo que circula nas redes, a água de origem duvidosa usada para fazer o mate que gente bebe na praia, não nos mata, fortalece. A própria Fernanda admite que a música icônica precisa ser atualizada e o índice de 40º foi para o espaço com a crise ambiental. Como você vai ver, a turma que nasceu às margens da Guanabara, mais uma vez está criando modas e modismos para sobreviver à estação.
Na capital do sangue quente do Brasil, do melhor e do pior do Brasil, o pessoal que desde o advento do horário de verão, descobriu que, além do mergulho matinal, poderia pegar um fim de tarde depois do trabalho, foi ficando à beira-mar. Foi ficando, foi ficando. E hoje, mesmo tarde da noite, alguns points como o Arpoador, permanecem lotados de gente que prefere a brisa marinha ao calorão de suas casas.

O Rio é uma cidade de cidades misturadas. E além das bolhas gigantes de plástico que surgiram em Copacabana e se espalharam pelas areias escaldantes da Zona Sul, o mais novo grito da estação é a presença cada vez maior de colchões azuis de ar que são vistos para além da arrebentação. A novidade, importada do Piscinão de Ramos, é vista com mais frequência no Arpoador, de onde a garotada se joga das pedras em dias de mar calmo, para ficar boiando e pegando sol. Mas o Ministério do Verão adverte: uma coisa é boiar numa piscina, outra em mar aberto. E já foram registrados óbitos de pessoas, sem nenhuma intimidade com o mar, que foram levadas por correntezas traiçoeiras enquanto se imaginavam em um cenário de “White Lotus”.

A novidade cultural da garotada favelada, suburbana, classe média, marginal são os novos points da cidade onde se pode buscar uma fresca em dias de calor senegalês. E que não são exclusivos de quem mora nos privilegiados bairros da Zona Sul. Na Zona Norte, o parque ecológico da Escola Wenceslau Bello, com seus 144 mil metros quadrados de área verde às margens da Avenida Brasil, foi carinhosamente apelidado de Fazendinha da Penha. O lugar é um alívio em meio à selva de pedra da via expressa. Já em meio à correria do Centro, um novo point de cultura e ar geladinho (não necessariamente nessa ordem), é a biblioteca suspensa do Centro Cultural da Justiça Federal. Sua estrutura metálica é semelhante ao convés de um navio e foi doada pela Marinha.
A cidade sangue quente maravilha mutante verá na moda muitas novidades. Marcas famosas estão mergulhando de cabeça no “quiet luxury” que ferveu a cabeça dos estilistas durante a quarta temporada da série “Succession”, da HBO. O “quiet luxury” consiste no uso de peças básicas, minimalistas e de boa qualidade, que focam mais no valor do que no preço. Além disso, de acordo com os mais recentes desfiles em Paris sobre moda-verão, se o azul é a cor mais quente, o tom que vai imperar neste verão é o azul-claro, meio menta, quase igual ao da Tiffany’s.
O Rio é uma cidade de cidades misturadas. E se antes, para boa parte da população, os cinco estrelas da orla eram paraísos inacessíveis, essa realidade mudou graças à disseminação do “day use”. Nesse sistema, por um valor bem inferior a uma diária, o interessado pode passar o dia todo desfrutando nas piscinas destes hotéis das delícias do serviço de primeira categoria.
O Rio é uma cidade de cidades camufladas, governos misturados, camuflados, paralelos, sorrateiros, ocultando comandos. E a nota triste do verão que está chegando é o aumento da violência e a inação policial, que teve seu apogeu em Copacabana.
Comando de comando, submundo bandidaço. Após a agressão a um morador que reagiu a um assalto, pitboys de orelhas de repolho que fazem pouco uso do cérebro, decidiram sair às ruas para brincar de Batman. Comando de comando, submundo classe média. O máximo que conseguiram foi esculachar um jovem, obviamente preto, que inocentemente vendia sacolés de manga. Uma prova inequívoca de que no Brasil, até o fascismo pode ser esculhambado. Comando de comando, submundo da TV.
Na chincha das esquinas de macumba violenta, este verão promete ser inesquecível. Mesmo com os anglicismos que tentam se impor na cidade. Para onde se olha vê-se expressões como “rooftops”, “all inclusive”, “open bar”, entre outras, vendidas como se fossem atestados de garantia de qualidade segundo as regras do turismo internacional. Francamente, de quem é esse lugar? Quem é dono desse beco? Quem é dono dessa rua? De quem é esse edifício? De quem é esse lugar? É seu esse lugar? É meu esse lugar? Também é seu! Sou carioca, quero meu crachá.