O CULTO À SARDINHA CONTAGIA O RIO; SAIBA ONDE COMER O PEIXE

Oteque: a sardinha com foie gras e brioche tem inspiração inglesa

Seja nos balcões mais tradicionais da cidade, nas melhores casas portuguesas, nos japoneses mais exclusivos ou até nos menus degustação mais desejados, a sardinha é um clássico da cozinha carioca.

Ela brilha em botecos históricos, como a Adega Pérola, em Copacabana, assim como no Oteque, em Botafogo, que ostenta duas estrelas Michelin, por muitos considerado o melhor restaurante do Brasil. Sobretudo entre março e setembro, quando a pesca da sardinha-verdadeira é liberada (o resto do ano, é época de defeso, quando ela só é encontrada congelada, nacional ou importada, ou em conserva, que é uma tradição portuguesa).

Apesar de desprezada por muitos, que a consideram um ingrediente muito barato e popular, a sardinha é muito nobre. Vale lembrar que também a encontramos em alguns dos restaurantes dos mais caros e sofisticados do Rio. Como é o caso do Oteque, do chef Alberto Landgraf. Em cartaz desde a inauguração, um dos pratos mais famosos do menu degustação servido ali é uma torrada de brioche bem amanteigado, com terrine de foie gras e sardinha. São três formas de apresentar a gordura ao comensal, um prato realmente genial. Todas as espinhas são retiradas do peixe, que ganha sabor ainda mais profundo com o processo de cura.

O prato está em cartaz desde o início do Oteque

– O conceito deste prato é o seguinte: na Inglaterra, existe um sanduíche, chamado “sardine on toast”, que inclusive o Heston Blumenthal fez como sorvete. É sardinha em lata no pão de forma, com manteiga. Fiz uma versão refinada disso. Em vez de pão de forma, eu usei brioche. No lugar da manteiga, botei foie gras, e no lugar da sardinha em lata eu fiz um preparo, de um picles de sardinha, com uma técnica que eu desenvolvi, que tem o sabor do escabeche à moda portuguesa, a acidez, e ao mesmo tempo ele tem a textura do peixe cru, do peixe gordo, que me atraiu muito. Quando eu era um jovem cozinheiro na Inglaterra, a gente comia isso, no intervalo, assim como todos os outros profissionais da cozinha – conta Landgraf, que mantém este prato no menu de seu restaurante desde a inauguração, em 2018.

No Venga ela é marinada, à moda espanhola

Também marinada, e sem qualquer espinha, o que dá um trabalhão, a sardinha encontrada no Venga de Ipanema, em preparo que remete a um clássico espanhol, está entre as melhores do Rio: são uma referência aos boquerones en vinagre, uma tapa muito popular na Espanha, encontrada em todo o país. O peixe, gordo e com sabor ainda mais marcante devido à acidez do vinagre, é finalizado com muito azeite, além de alho cru e gominhos de limão, e pede um copo de um bom Jerez, seja Fino ou Manzanilla, para acompanhar.

Bar Ocidental, no Beco das Sardinhas: fritas

A sardinha é tão identificada com o Rio que virou ponto turístico, uma referência geográfica.  Logo ali, bem no coração da cidade, o entroncamento boêmio, na esquina entre a rua Miguel Couto e a Avenida Marechal Floriano. Sim, falamos do Beco das Sardinhas, onde ela é preparada inteira, espalmada e frita, empanada na farinha de mandioca: por lá, o peixe é chamado de frango marítimo. Na calçada fechada ao trânsito, e coberta com lona azul, espalham-se mesas de dois bares, um de frente para o outro, que disputam a clientela: o Rei dos Frangos Marítimos e o Bar Ocidental. O primeiro, hoje, tem como sócios ex-funcionários do segundo.

Casa Paladino: em conserva, vira omelete

A apenas uma quadra dali, a centenária Casa Paladino, fundada em 1906, na esquina da Marechal Floriano com a Rua Acre, é um antigo armazém, daqueles secos e molhados de antigamente, que esbanja história em suas prateleiras de madeira-de-lei. Ali comemos petiscos típicos dessas bodegas de outrora: temos porções de tremoços e azeitonas, uns picles, queijos, embutidos, além de sanduíches e de algumas conservas, como as sardinhas portuguesas em lata, que na pequena cozinha se tornam cobiçadas omeletes.

Fim de Tarde: portuguesas assadas

O Centro é repleto de enclaves onde pescamos muitas das melhores sardinhas do Rio. Basta lembrar ainda que, bem perto dali, também está o Fim de Tarde, onde executivos engravatados que ainda existem naquela área almoçam uma legítima cozinha ibérica, com um serviço de sardinhas importadas primoroso. Assada, ela é servida com cebola e alho, e fica ainda melhor se regada com pimenta e azeite, e acompanhada de um bom Vinho Verde.

Rapahel Vida e a refeição: em molho de tomate, com ovo

Dali até o Largo da Prainha, na Zona Portuária, são uns dez minutos de caminhada. O espaço hoje tem agito todos os dias, e o responsável por isso é o empresário e agitador cultural Raphael Vidal, que tem várias casas na praça histórica, berço do samba e da cultura negra carioca, junto à Pedra do Sal. Ele deu ainda mais vida á área, com seus três bares: Casa Porto, que serve uma sardinha frita, 2 de Fevereiro, um boteco de inspiração baiana, e o Bafo da Prainha, que abriga shows gratuitos, apresentados na fachada do casarão, que vira palco para músicos como Moacyr Luz.

Neste último, a sardinha é servida como prato principal, uma verdadeira raridade no Rio. É a sardinha portuguesa ao molho, com base de tomates e cebolas, tudo coroado com um ovo frito. Também é um belo petisco para compartilhar.

Como nigiri, nos melhores japoneses, como o Mitsubá

Já nos endereços nipônicos encontramos a sardinha em forma de nigiri, coroando o bolinho de arroz, como no Mitsubá, que serve as melhores versões do peixe à moda japonesa, incluindo uma espetacular e rara de ver ver, em forma de sashimi.

O Henriqueta faz sushi de sardinha com pimenta

Hoje, também achamos essa receita na Henriqueta, uma tasca portuguesa, com certeza, no Leblon, finalizada no maçarico, com flor de sal. A inspiração vem do Sea Me Peixaria Moderna, de Lisboa, que lançou a receita dessa maneira, em Portugal.

Não poderia nem mesmo faltar um boteco com uma homenagem ao peixe. E ele é vizinho ao Henriqueta, no Leblon: a Tasca Sardinha fica na mesma Aristides Espínola, na mesma quadra, na mesma calçada: é a Sardinha Taberna Portuguesa, de Gonçalo Carvalho, que este começou a expansão da marca, com a inauguração do restaurante no Barra Shopping. No menu, não poderia, claro, faltar o peixe.

Pertinho dali, na Rua Dias Ferreira, no Boteco Rainha, ela é servida empanada e frita, a versão mais encontrada na cidade, e que ali alcança uma de suas melhores versões.

Centenária: na Casa Cavé ela vem coroando a pizza

Mas, vamos voltar ao Centro, região que costura toda essa história, com tantas as opções que encontramos por lá. A variedade de sardinhas da área central do Rio continua com a mais antiga confeitaria da cidade, que não é a Colombo, mas a Casa Cavé, bem perto dela, inaugurada em 1860, na Rua Sete de Setembro: entre uma imensa variedade de doces se destaca uma especialidade, a pizza de sardinha, de massa fofinha e cobertura farta.

No Labuta Bar elas são fritas na panko

A uma curta caminhada, em direção à Lapa, é bem-vinda sempre uma parada no Labuta Bar. Item quase obrigatório no curto menu do pequeno bar, que serve ela frita, a versão mais encontrada pela cidade, empanada na farinha panko, o que lhe dá mais crocância. Neste esforço de reportagem, foi a campeão entre as fritas: a fritura muito rápida e em óleo muito quente, deixa a sardinha no ponto exato e mantém a carne úmida, alta e untuosa, o que é pouco comum.

Novidade: Labuta Mar reabre na Glória

Boteco irmão, o Labuta Mar acaba de reabrir, desta vez na Glória. Na birosca marinha do chef Lúcio Vieira, que tem como timoneiro Yan Ramos, que está servindo uma versão assada: é a escabeche de sardinha na brasa, com legumes que igualmente são tostados na churrasqueira: uma versão original, que mistura duas formas de preparo em uma. Ali, também encontramos a sardinha frita na panko, servida com gominho de limão, como no Labuta Bar.

À escabeche: especialidade do restaurante Shirley

Lembrando, ainda, dos endereços mais tradicionais, igualmente com suas raízes ibéricas, o Shirley serve uma porção de sardinha à escabeche que merece distinção, irretocável, com seu molho cheio de sabor, vermelho, com pimentões e cebolas. Uma beleza.

Assadas na brasa: pra comer com pão

Alguns lugares têm o privilégio de ter um braseiro para assar as suas sardinhas, como acontece no Cantinho das Concertinas, um monumento da lusofilia, no Cadeg, em Benfica, principalmente nas manhãs de sábado, com as festas portuguesas que celebram a cultura da região do Minho. Na Gruta do Bacalhau, com lojas no Cadeg e no Mercado dos Produtores, no Uptown, na Barra, também faz na churrasqueira as suas sardinhas, servidas com pão, conservinhas de cebola, alho e azeitona, como encontramos em Portugal: ficam deliciosos os sanduíches.

Adonis: referência na culinária portuguesa

No mesmo Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara está ainda outro lugar que faz na churrasqueira uma das melhores sardinhas da cidade. E, saindo deste que é também chamado de Mercado Municipal do Rio, bastam dois minutos, cruzando o posto de gasolina, para chegar a outro lugar de referência no assunto sardinha: o infalível Adonis, para muitos, como eu, o melhor bar da cidade hoje em dia. Uma catedral.

Canto Alegre e seu braseiro muito forte

Braseiro também está na origem do Canto Alegre, na Barra, que começou com uma barraca de espetinhos. Trata-se de tradicional reduto familiar da comida portuguesa, com quatro gerações à frente da casa, desde a sua inauguração, em 1968, na Barrinha. Dona Maria – a fundadora – ainda hoje está lá diariamente, e a antiga churrasqueira tem fogo muito potente, e as sardinhas saem perfeitamente assadas, completamente irresistíveis.

Gruta do Fado: assada em molho de tomate e cebola

Ainda falando de endereços portugueses, todos os mais importantes servem sardinha, ó pá – porque não poderia faltar, exceção são os Gajos d’Ouro, que tiraram o peixe do cardápio recentemente. No Rancho Português aparece com batatas ao murro, pimentão verde assado e salsinha. Ainda vem uma saladinha para acompanhar. Na nova casa do chef Alexandre Henriques, no Village Mall, na Barra, ela é servida assada em molho com tomate, cebola, em formato semelhante ao Bafo da Prainha.

Na Adega Pérola são quatro versões no balcão

Um dos locais que apresenta a maior variedade desses petiscos marítimos com sardinha é a Adega Pérola, que tem sempre pelo menos quatro versões em seu balcão refrigerado, além da frita, que sai da cozinha: tem escabeche, portuguesa marinada e como rollmops, abrasileirando uma receita nórdica que tradicionalmente é feita com arenque. As versões são estrelas no imenso balcão refrigerado.

No Traçado: bolinho criado para festival de botecos

Botequins que usam a criatividade na criação de acepipes para os concursos existentes também não poderiam ficar de fora deste roteiro das sardinhas. Este ano, para o Comida di Boteco, o Traçado, em Copacabana, lançou o bolinho de sardalhau, uma versão do salgadinho tradicional, mas usando o peixinho miúdo no lugar do importado e salgado. E ainda tem um temperinho malando, em forma de azeite condimentado com ervas, especiarias, limão siciliano e pimenta-dedo-de-moça, puro suco de Rio de Janeiro, complemento perfeito.

Real Chope: sardinha frita, comprada na feira

Copacabana é mesmo reduto da iguaria, encontrada em vários endereços, como A Marisqueira, que sardinhas portuguesas à Salazar, que era receita apreciada pelo ditador; O Caranguejo, o Príncipe de Mônaco e o Real Chopp, cujo sócio, Seu Hermínio, lendário personagem de Copacabana, cuida pessoalmente da compra, nas feiras livres do bairro, como a da Rua Ronald de Carvalho, às quintas.

Na churrascaria, ela aparece à vinagrete

Tão enraizada na cultura carioca, a sardinha é encontrada mesmo em churrascarias, como a Palace, ainda em Copacabana, que tem sempre em seu bufê de frios uma travessa de sardinhas portuguesas em conserva, essa tradição da cultura gastronômica lusitana, servida com vinagrete. A sardinha honra a tradição portuguesa dos sócios, que são do norte do país, na região entre Aveiro e Viseu. Em outras churrascarias, quase todas de gaúchos, essa iguaria não é muito comum.

– Antigamente, servíamos elas assadas na brasa, mas deixava muito cheiro no salão, lembra Antônio Saraiva, sócio da casa desde 1962.

Sashimi de sardinha: raridade no Mitsubá

O passeio envolve também a Ásia. Assim, fico pensando nos japoneses, que alçam as suas sardinhas frescas aos altares da mais alta gastronomia, botando as lindas peças, com cuidadoso acabamento, sobre o bolinho de shari, tempero milimetricamente calculado para valorizar o peixe. O Mitsubá, no Rio Design Leblon, cujo chef Eduardo Nakahara é fã desse peixe, vai além, e prepara um sashimi de sardinha de fechar o trânsito. Pena não encontrarmos sardinhas nos italianos do Rio.

Então, eu fico sonhando com um belo prato de ‘pasta con le sarde alla siciliana’, uma das melhores massas da vida, apreciada em uma noite de despedida da ilha italiana, numa trattoria no Centro de Palermo, destaque de uma refeição memorável. O prato leva, além da sardinha, pinoles, passas, ramos de funcho, aliche e cebola como ingredientes coadjuvantes. Nunca soube de algum restaurante carioca que serve esta receita, uma pena. O mundo não é perfeito, só faltava essa…