Jan Theophilo
Astuta e salomônica foi a solução encontrada pela Mocidade Independente de Padre Miguel para escolher, no fim das contas por unanimidade, o samba-enredo que defenderá em 2025 na Sapucaí. Resumindo: um grupo de compositores tinha samba considerado muito bom, mas o refrão não pegava. Outro, tinha obra… boa, mas com refrão sensacional. Diplomaticamente, fez-se a costura das duas músicas, que terminou assinada por quase um time de futebol de dez autores.
E esse é só um exemplo, entre muitos, de como os sambas-enredo nos ultimos anos foram se tornando cada vez mais complexos, pequenas obras de arte de dois minutos e dificil execução – com um grande adversário: a falta de popularidade. Os sambas-enredo de hoje em dia são piores do que os do passado?
”A questão é que não só nossas canetas ficaram viciadas, mas nossos ouvidos também. Porque a gente tem que agradar a bolha do Carnaval e os jurados. Se eu entrar na avenida com um samba ‘Tengo-Tengo/ Santo Antônio, Chalé/ Minha gente/ É muito samba no pé’ (Salgueiro, 1972), corro o risco dessa bolha dizer que minha rima é pobre, que meu samba não tem conteúdo”, explica o compositor Samir Trindade, campeão do Carnaval por três vezes no Grupo Especial e outras duas vezes em grupos de acesso, autor de sambas para Beija-Flor, Portela e Império da Tijuca, entre outras escolas. “Não tem mais aquele compositor oriundo do pé do morro, o cara que não tem estudo mas vai e faz um samba intuitivo”, aponta. “A bolha do Carnaval, que se alimenta na internet, abraça esses sambas cada vez mais rebuscados, de compositores que são catedráticos, acadêmicos. Aprendi a fazer samba na mesa de bar. Hoje se faz com o dicionario aberto”.
“O grande público fora da bolha não ouve mais samba-enredo”, constata André Diniz, o maior vencedor de disputas na Unidos de Vila Isabel, superando nomes como Martinho da Vila e Paulo Brazão. Para ele, os critérios de julgamento, influenciados pela tal bolha, foram se tornado cada vez mais complexos e padronizados, acorrentando a criatividade dos autores e se distanciando o grande publico. “Isso afasta o público e a gente tem que pensar também além do desfile. A gente concorre com axé, funk, sertanejo”, analisa. “Aí vem um baiano e estoura com uma música inteira sem uma consoante: aê/aê/aê/aê/ê/ê, uououou…”, brinca.
Andre lembra que essa caça pela nota 10 vai além dos sambas-enredo. Em 2023, a Viradouro levou 9,9 no quesito bateria, porque o jurado Rafael Barros alegou que “a agremiação apresentou sua bossa com poucos elementos criativos”. Com a nota, o título daquele ano caiu no colo da Imperatriz Leopoldinense. “Daí, toda bateria vai inventar alguma coisa para não perder o 10. E assim é com os sambas-enredo”, critica.
Mas, como se aprende nos filmes de John Wick, regras existem, e é com elas que cada compositor estabelece seu método criativo. “A primeira coisa que faço é procurar entender a identidade musical de cada escola. Suas tradições. Um samba que faço para a Portela não vai ser ouvido da mesma forma pela Beija-Flor, e vice-versa”, ensina Samir. “Quando fui para a Portela, em 2016, bebi muito da Velha Guarda, dos antigos, porque penso que os jovens compositores de hoje não procuram saber quem foi Davi Correa, Manaceia, não procuram conhecer os sambas antigos do Candeia e a obra do Paulinho da Viola”.
André Diniz por sua vez adota método, digamos, mais cerebral. “Peço a alguém que leia para mim a sinopse. E aí vou criando na minha cabeça o que chamo de ‘células melódicas’. Que podem ser mais harmônicas, ou mais rítmicas. É um processo lento, que vai e volta. Porque sou um cara mais de melodia, daí quando sinto que preciso de uma pegada mais rítmica, recorro a um parceiro”. E com tantas regras e reclamações, qual o segredo infalível para um 10? “O refrão!”, exclama André. “É o bingo. E é tão importante que sempre deixo pra fazer no final”.