A GUERRA PELO PARAÍSO

Por Jan Theophilo

Os mais jovens podem não acreditar, mas houve um tempo em que remo era o esporte verdadeiramente responsável por atrair multidões no Rio de Janeiro. Foi dos clubes dedicados a esta modalidade que saíram alguns dos mais importantes times de futebol da cidade, como Flamengo, Vasco ou Botafogo. O hype em torno do remo foi decrescendo ao longo dos anos, mas continuava badalado o suficiente para, em 1954, o governo inaugurar uma joia: um estádio totalmente dedicado ao esporte e debruçado sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas, palco das competições: o Estádio de Remo da Lagoa. Os anos se passaram, e a medida em que o interesse pelo esporte decrescia, o local passou a abrigar eventos diversos, como lendária noite de dois de outubro de 1993, quando nada mais, nada menos que Chuck Berry e Little Richards se apresentaram diante das arquibancadas lotadas, em uma noite considerada mágica. Foi uma espécie de canto de cisne do velho estádio, que voltou a ser relegado ao abandono, até que em 1997 ele se tornou personagem principal de uma longa e cabeluda encrenca que invadiu o século seguinte.

Naquele ano, a Prefeitura assinou um Termo de Permissão de Uso concedendo o estádio à uma empresa chamada Glen Entertainment por 10 anos a serem contados após o fim das obras de restauro. Logo em seguida a Glen apresentou o Projeto Lagoon, que consistia em um amplo complexo de esporte e lazer. O empreendimento previa, entre outras instalações, lojas, restaurantes e cinemas. Um shopping-center portanto. Bastou sair o anúncio para estourar a primeira polêmica. Os moradores da Lagoa, Leblon e até da Barra desenterraram seus machados de guerra em pânico com os possíveis impactos futuros no trânsito. Afinal, dois anos antes, o Flamengo acertara com a Multiplan a construção de um shopping em sua sede (como parte do investimento para a compra do jogador Edmundo) que fica praticamente do outro lado da rua do estádio — o empreendimento rubro-negro também virou um rolo judicial e nunca foi executado.

A partir dali vários projetos foram anunciados, mas sempre esbarravam em ações judiciais. Em meio ao impasse, que já levava quase 10 anos, a prefeitura decidiu transferir para o governo do Estado a administração da área. Em 2005 anunciaram o Rio como sede dos Jogos Pan Americanos de 2007 e a Glen viu nova chance de executar seus planos, quando o estádio foi escolhido como local de competição das modalidades de remo e canoagem. Um novo projeto foi apresentado, agora em uma versão “multiplex”,

ampliando, por exemplo, a área de treinos para os atletas para, assim, evitar a caracterização como shopping, desobstruindo licenças ambientais e problemas jurídicos, políticos e sociais. A Câmara dos Vereadores respondeu de forma clara: decretou o tombamento do Estádio de Remo da Lagoa. Problema resolvido? Pelo contrário, a história continuou a esquentar.

A Glen subiu a aposta. Não parou algumas obras já iniciadas, porém não conseguiu concluí-las a tempo para os Jogos. A cidade parecia ter ganhado um novo elefante branco, que sutilmente vinha sendo descaracterizado, e sobre o qual pairava total desinformação. Foi preciso um estudo dos professores Luiz Mario Behnken e André Godoy, publicado na revista da Fundação Getúlio Vargas, chamado “O relacionamento entre as esferas pública e privada nos Jogos Pan-Americanos de 2007. Os casos da Marina da Glória e do Estádio de Remo da Lagoa” (acadêmicos adoram títulos grandes), para que pusessem o guizo no gato: “(…) o processo do Estádio de Remo possui elementos complicadores, a começar pela origem do capital da empresa concessionária, Glen, que tem relações com a família Marinho, controladora das Organizações Globo, conglomerado de empresas de mídia e comunicação, com reconhecida influência na vida política, econômica e social da sociedade brasileira”.

Finalmente, em 2010 o Complexo Lagoon abria as portas com seis salas de cinema da rede Cinépolis, sendo três delas em 3D. A relação de restaurantes da área gastronômica vinha com nomes de peso, como o Giuseppe Grill Mar, Gula Gula, Pax Delícia, Quadrifoglio, San Remo e o Empório Gourmet Show. Isso sem falar na casa de shows Miranda Brasil, seguida anos depois pela abertura de uma filial carioca do clube de jazz nova-iorquino Blue Note. Parecia que o Lagoon ia driblar as dificuldades iniciais e se tornar um novo point da cidade. Só parecia. Porque seis anos depois a canoa virou.

A empresa que havia assumido a administração do complexo, a LRF Empreendimentos, acumulou dívidas de dois anos de aluguel e condomínio com a Glen. O valor devido, segundo os advogados da concessionária, chegava a R$ 7 milhões na época. Os restaurantes do complexo gourmet foram despejados. A Miranda, inaugurada em 2012, encerrou as atividades em 2015, e o Blue Note, em 2019, após dois anos de funcionamento. O motivo, mais uma vez, foram as altas dívidas.

Em janeiro de 2020, encerrados os 10 anos de concessão, o governo do estado notificou a concessionária de que não havia interesse na renovação do termo de permissão de uso do imóvel na Avenida Borges de Medeiros. A Glen recorreu e — para cortar o papo de advogado — em dezembro do ano passado a Justiça do Rio decidiu pela reintegração de posse do espaço e determinou um prazo de 90 dias para que a empresa desocupasse o imóvel. Fim da história? Nada disso.

No mesmo dezembro de 2021 o Lagoon anunciou que “a Lagoa revive”, com a inauguração do Varanda Lagoon, um complexo gastronômico que iniciava com quatro operações: Um Gastronomia, Evoo Cucina Italiana, Pato com Laranja e Pata na Brasa. Mas em abril deste ano o Corpo de Bombeiros interditou todas as atividades do Lagoon, devido a falta de documentação. O imbróglio judicial continua, já que a Glen pleiteia uma

prorrogação do período da concessão em função dos prejuízos causados pela crise sanitária da Covid 19. Mesmo assim, enquanto não desata esse nó, o governo já realiza estudos para definir os valores da nova licitação. Procurada, a Glen Entertainment não retornou os contatos da reportagem.