A BAIXADA LUTA PELO SEU PRIMEIRO MUSEU DE ARTE

Foi um episódio em 21 de novembro de 1910 que inscreveu o nome de João Cândido na História do Brasil

Jan Theophilo

O capital cultural é uma das muitas riquezas negadas aos moradores das periferias das grandes cidades brasileiras. E um caso gritante é o da Baixada Fluminense, que possui apenas 19 museus em seus 13 municípios – o Rio tem sete vezes mais. Um estudo de 2020 apontou que cidades como Duque de Caxias, com quase um milhão de habitantes, investiam apenas 0,11% do seu orçamento em atividades culturais. Nova Iguaçu é a grande campeã do ranking negativo da cultura, investindo apenas 0,1% dos impostos arrecadados junto a seus cidadãos em atividades culturais. Mas o brasileiro é, antes de tudo, um forte. E o povo se vira em cineclubes, semanas temáticas, um forte cenário de produção musical e, agora, se articula em torno da construção de um grande equipamento: o Museu de Arte e Cultura Urbana da Baixada Fluminense (MAB).

No fim do governo Pezão foi formado um coletivo para transformar esse sonho em realidade. Liderado pelo então presidente interino da Assembleia Legislativa do Rio, André Ceciliano, ele reunia o deputado André Lazarone (de forte atuação na região), o ex-presidente da Funarj, Nelson Freitas, o conhecido arquiteto e urbanista Vicente Loureiro – que assumiu a tarefa de desenhar o plano-piloto do museu – fora um sem-número de vereadores e empresários interessados. O local escolhido para sua instalação foi a antiga fábrica da Inega Jeans, grife que marcou época nas décadas de 1980 e 1990 com comerciais que exibiam modelos em fotos ousadas e o slogan divertido “Causamos torcicolos”.Localizada na Rodovia Presidente Dutra, 15.500, em Nova Iguaçu, o projeto prevê duas salas de exposição (Arte Contemporânea e Memória), cada uma com 1,5 mil metros quadrados; 13 salas de exposição para a memória histórica e contemporânea das cidades da Baixada Fluminense; um Centro de Convenções com dois auditórios, seis salas multiuso; um polo gastronômico com restaurantes, cafés, bistrôs, fast food; dois cinemas; Salão de Memória Geográfica; Livraria; além de unidades da Escola de Música Villa Lobos; Escola de Teatro Martins Pena e da Escola de Dança Maria Olenewa.

“Não será um museu apenas para expor e revelar ao mercado a produção cultural da Baixada. Ele também será isso, mas creio que o mais importante será a representação do patrimônio cultural e imaterial dos seus municípios”, diz o ex-presidente da Funarj, Nelson Freitas que, no segundo mandato de André Ceciliano à frente da Alerj, tentou levantar recursos para a adaptação da fábrica como um novo equipamento cultural.

Entretanto, como visto recentemente nos episódios da tirolesa do Pão de Açúcar e na reforma do Jardim de Alah, não existe projeto inovador no Rio de Janeiro que não termine em um Fla-Flu, embora pelo menos o parque da divisa entre Ipanema e Leblon tenha avançado. Em 2020, outro grupo se articulou advogando a tese segundo a qual, mais importante do que um museu, seria a instalação de uma unidade hospitalar no local. Briga de lá, briga de cá, em julho deste ano a antiga fábrica foi reinaugurada como Rio Imagem Baixada, um dos maiores complexos públicos de exames da América Latina.

Mas a luta cultural continua. Segundo Nelson Freitas, a Prefeitura de Nova Iguaçu já tem conversações avançadas com os proprietários de duas áreas não-urbanizadas também na Via Dutra, para, agora, tirar do chão um novo prédio que abrigue o museu. Os endereços não foram divulgados para não atrapalhar as negociações. O projeto-piloto está sendo finalizado, novamente, por Vicente Loureiro. Só que agora o problema é decidir quem vai assinar o cheque. Nos bastidores da Funarj, se fala que o MAB pode não estar entre as prioridades para o setor definidas pela gestão do governador Claudio Castro. A alternativa foi apelar para a Funarte, em uma ação da bancada federal do Rio. Porém, até o fechamento desta edição nenhuma decisão fora tomada. “O Museu de Arte da Baixada será um dos maiores espaços culturais que representará todos os 13 municípios, refazendo nossa história e criando pontes para o conhecimento e o fortalecimento da valorização e de pertencimento”, diz Nelson Freitas.

Tão estigmatizada por conta do abandono do poder público durante décadas, a história da Baixada Fluminense não pode ser contada apenas pela violência de grupos criminosos que ocuparam o território e se prevalecem por meio do medo e da intimidação. A Baixada tem influências indígenas, portuguesas e afrodescendentes. Tem nordestinos, mineiros e até cariocas. Sem falar nas comunidades de japoneses, italianos, chineses e árabes, entre tantos outros povos que ali encontraram uma oportunidade de vida. E é justamente essa colcha de retalhos, alinhavada e entretecida de culturas que torna a região tão rica e interessante culturalmente. Que venha logo esse museu.

ENFIM… SALVE O ALMIRANTE NEGRO

Ainda na Baixada, outra obra de catedral – daquelas que não terminam nunca – busca homenagear um dos maiores brasileiros de todos os tempos. Herói estadual e municipal em São João de Meriti (onde viveu seus últimos anos), grande representante da luta por direitos da população preta e um dos líderes da Revolta da Chibata, em 1910: João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, eternizado na canção “Mestre-Sala dos Mares”, de Aldir Blanc e João Bosco.

No início do século XX, bem antes da hegemonia militar estado-unidense, a Marinha Brasileira era uma força considerável. Mas, passados apenas 23 anos da promulgação da Lei Áurea, o oficialato (todo ele branco) julgava ser absolutamente normal aplicar castigos físicos na marujada, formada por pretos, quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres. O país se modernizava e foi feito um grande investimento para tornar a frota brasileira a terceira mais poderosa do mundo, com a aquisição do cruzador Bahia e dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, que estavam entre os navios de guerra mais modernos da época. Uma comissão formada por oficiais e alguns marinheiros considerados exímios em sua função passou dois anos em Barrow, ao norte da Inglaterra, para acompanhar a construção e aprender o manejo dessas embarcações. João Cândido estava entre eles.

Nos estaleiros da empresa britânica de equipamentos militares Vickers Sons and Maxim, João Cândido conviveu com os trabalhadores ingleses, muitos deles já sindicalizados e teve seu primeiro contato com ideias anarquistas ou comunistas. Ao voltar para o Brasil, passou a frequentar os “Comitês de Marinheiros”, que se reuniam na Praça Mauá. Curiosamente, nunca foi um homem de esquerda. “Papai nunca negou que teve orgulho de fazer parte da AIB (Ação Integralista Brasileira, o grande partido fascista brasileiro)”, conta Seu Candinho, 84 anos, o último filho vivo de João Cândido: “Ele era um homem muito disciplinado, e só rompeu com o partido após a Intentona Integralista de 1938, da qual foi contra”.

Mas voltando um pouco ao passado foi um episódio em 21 de novembro de 1910 que inscreveu o nome de João Cândido na História do Brasil. Naquele dia, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas que, segundo registro dos jornais da época, “não se interromperam nem mesmo com o desmaio do mesmo”. Foi um basta. Na noite seguinte, enquanto o recém-eleito presidente Hermes da Fonseca comemorava sua vitória entre flûtes de champagne, os marinheiros liderados por João Cândido tomaram os quatro principais navios de guerra brasileiros e apontaram os canhões para o Rio de Janeiro, ameaçando bombardear a cidade se não fossem extintos os castigos físicos.

O resto é História. O governo, acuado por quatro dias, aceitou negociar, mas, depois da trégua, traiu os marinheiros. Diversas lideranças foram assassinadas e outras expulsas da força. João Cândido, depois de sofrer horrores na prisão e uma vida de perseguições, morreu como um pescador pobre em São João de Meriti. “De mar ele conhecia tudo. De manhã cedinho voltava da pesca, com um balaio cheio de peixes para vender. Mas nunca guardou rancor da Marinha por tê-lo expulsado”, garante Seu Candinho.

Uma emenda da deputada Benedita da Silva (PT) garantiu R$ 700 mil para iniciar a construção do museu, que vai ocupar a antiga mansão de veraneio do embaixador português Martinho Nobre de Melo, com vista espetacular para a Baía de Guanabara. De acordo com a Prefeitura de São João de Meriti, a primeira fase, que contempla a área de lazer, já está praticamente pronta. A segunda fase da obra será a reforma da casa, propriamente dita, que irá abrigar o museu. Por fim, a terceira fase prevê a revitalização do entorno do espaço, incluindo as ruas. Enquanto isso, o pequeno acervo de fotos e objetos do Almirante Negro estão guardados no Centro de Referência em Direitos Humanos de Vilar dos Teles. “Espero viver o suficiente para cortar a fita da inauguração do museu”, brinca Seu Candinho.