FRIO MARAVILHA

Por Ricardo Bruno, chefe de redação

Os estereótipos já não resistem de pé. O ‘Rio 40 graus, purgatório da beleza e do caos’ é apenas uma fração, fortemente simbólica, desse belo quadrante do sudeste brasileiro. Resume e expressa o cenário mais conhecido e glamuroso do torrão fluminense. Mas não esgota nossa capacidade de surpreender e arrebatar pela beleza dos contrastes com que a natureza nos privilegiou.

Há um outro Rio, igualmente charmoso, apaixonante, de características aparentemente antípodas e distantes da imagem-síntese da alma carioca, projetada mundo afora. Um Rio de temperaturas gélidas, com direito a geadas, lareiras, fondues, vinhos e outros prazeres que só um inverno rigoroso pode oferecer.

Nesta edição, a ‘Rio Já’ visita o que seria – guardadas as diferenças cartográficas – a “Antártida” fluminense: os pontos mais gelados do estado, onde o frio é lancinante e a vida fruída de modo absolutamente diverso da rotina e do frenesi da capital. Desbravamos o Maciço da Mantiqueira para chegar ao Parque Nacional do Itatiaia, onde a temperatura neste ano despencou a 12 graus negativos – a mais baixa do Brasil, aquém até mesmo dos registros da serra gaúcha.

De lá, das prateleiras do Pico das Agulhas Negras, quinto maior do Brasil, chegam imagens que impressionam pela insólita beleza que expressam, especialmente aos cariocas. Enormes placas de gelo ensombram a vegetação num cenário quase glacial. Nas primeiras horas do dia, a relva mostra-se encoberta pelo orvalho solidificado. E dos arbustos, derramam-se estalactites de água congelada, em fotos arrebatadoras.

No sopé das Agulhas Negras, em Penedo, encontramos o Rituaali (ritual, em finlandês), o spa cinco estrelas destino de celebridades, políticos e endinheirados de modo geral. Abraçado pela floresta dos arredores da Mantiqueira, o espaço se propõe a proporcionar não somente emagrecimento ou relaxamento. O conceito é mais amplo. Oferecem-se ali ritos de iniciação ao almejado equilíbrio entre corpo, mente e alma. Ou “um pit stop na vida para reajustar rotas”, nas palavras do diretor clínico do lugar, o endocrinologista Luiz Sella.

Com competência e leveza, o repórter Jan Theophilo nos apresenta a rotina de quem se hospeda neste elegante misto de clínica, hotel e spa — onde um cardápio sazonal e orgânico inclui saladinhas com flores produzidas por lá mesmo, além de verduras sempre fresquinhas. Um charme, resume.

O desfrute dos prazeres do inverno nos leva a outra região da Serra Fluminense, delimitada pelo trilátero geográfico dos arredores de Petrópolis, Teresópolis e Friburgo. Concentra-se ali a maior variedade de endereços da boa mesa serrana. E para nos apresentar os sabores da região convidamos mais do que um competente crítico gastronômico, trouxemos um legítimo “connaisseur“, como diriam os franceses: o jornalista Bruno Agostini.

Sua tarefa inicial foi mergulhar na história para resgatar a saga do casal de siberianos Mikhail Flegontovich Smolianikoff e Eupraxia Wladimirovna Smolianikoff, que criou, em Teresópolis, o Dona Irene – um improvável e espetacular representante da culinária russa incrustado na serra fluminense.  

Em texto tão saboroso quanto os pratos descritos, Agostini nos apresenta o que seria uma refeição de modo soberano, assim como era Nicolau II – o último dos czares – cuja derrubada deu origem à história do próprio local.

Seguimos o périplo em busca novas emoções gastronômicas. A próxima parada foi o “Burrata” – casa que executa com excelência receitas da culinária italiana, como trai o nome. O chef Renato Beckmann traz a experiência da melhor escola desse tipo comida no Brasil: o grupo Fasano.

Dali, Agostini envereda pela bucólica rodovia Terê-Fri em direção a Nova Friburgo, mais exatamente Lumiar, onde o chefe Isaías Neries faz do hotel “Parador” uma singular referência da culinária da região. Com formação técnica francesa, esse baiano radicado na serra fluminense é responsável por criações tão improváveis quanto delicosas, como, por exemplo, o quiche de feijoada.

Nem tudo nesta edição trata de inverno, fondues, restaurantes e quejandos. Um de nossos temas mais recorrentes, o samba é objeto da narrativa sempre precisa e elegante dos textos de Aydano Motta. Ele discorre sobre a forte simbologia da ascensão  de Guanayra Firmo, legítima representante da comunidade, ao comando da Mangueira. Uma exceção à regra geral do mundo samba, onde as agremiações, quase todas, são presididas por homens brancos.

O “já”, advérbio parte de nosso nome, aconselha a iniciarmos rapidamente a leitura. Como a gastronomia ocupou boa parte de nossas páginas, desejamos um desfrute intensamente saboroso desta edição.