EDITORIAL: TRIBUTO AOS QUE FAZEM A ALMA DO RIO

Por Ricardo Bruno, diretor e chefe de redação de Rio Já

Se a arquitetura é o corpo, os moradores emprestam-lhe a alma. Corpo e alma se mesclam num determinismo incerto a erigir a identidade – única e definitiva. Assim, filosoficamente, o Rio é um belíssimo recorte geográfico litorâneo moldado por hábitos, crenças e costumes de índios, negros e portugueses ao longo do tempo. Ora impõem-se a geografia, os projetos, a racionalidade, ora prevalecem as circunstâncias de vida dos moradores, com ocupações irregulares e favelização. O dinamismo dos aglomerados urbanos, portanto, reflete, em boa medida, a competência, a iniciativa, o talento e as necessidades de seus personagens mais ativos.

Nesta edição, a Rio Já apresenta quatro figuras centrais dessa epopeia urbana de construção da alma carioca – causa e princípio de uma cidade viva. O talentoso repórter Aydano Motta encontrou nas vielas e becos do Conjunto de Favelas do Alemão o ativista Raull Santiago –  singular personagem  da nova safra de militantes comunitários dedicados à transformação  social das periferias. 

Santiago atua, de um lado, como dínamo a impulsionar a conscientização dos moradores em direção a direitos básicos de saúde, educação e cultura. Em sentido oposto, dialoga com o andar de cima, mostrando a necessidade de se desenvolver ações e projetos privados de cobertura social ampla, com base na potencialidade econômica das comunidades. Não por acaso, tornou-se embaixador da Ambev e da marca Reserva, além de conselheiro do Nubank.

Com trânsito em dois mundos – desiguais e profundamente antagônicos – ele tenta reduzir diferenças através dessa aproximação. “Mesmo morando no mesmo beco, não sou meu vizinho de parede – e também não sou aquela pessoa chique do endereço de luxo. Hoje faço reuniões com gente que vive com 5 mil reais por ano e também com empresários e banqueiros. Mas não me deixo iludir por uma realidade diferente da minha”, assegura ele, que viajou por 14 países em nome de sua causa.

Das comunidades desassistidas à academia, a Rio Já busca outros exemplos de atuação efetiva na transformação sócio cultural da cidade. Pelo contraste das origens seria absolutamente improvável a interseção de trajetórias tão distintas. Mas não o é. Há algo em comum entre o ativista Raull Santiago, do Complexo do Alemão, e o médico Paulo Niemeyer Filho – recentemente eleito para a Academia Brasileira de Letras. Dedicam-se igualmente a causas públicas enobrecedoras; mostram-se comprometidos com o desenvolvimento humano dos cariocas. Cada um a seu modo, com seus instrumentos e suas potencialidades. Ambos, com inegável pendor solidário em suas ações.

Há forte simbolismo na presença de Niemeyer na ABL no momento em que ciência está sob ataque de forças negacionistas extremamente estridentes e reacionárias. “É a vitória da ciência, é a importância da ciência. E isso já aconteceu no passado, quando houve a revolta da vacina, outro momento muito grave, e Oswaldo Cruz foi consagrado e eleito para a academia”, relembra o acadêmico, 24º médico a participar da história da ABL.

A luta contra o negacionismo fez gigante um outro personagem desta edição. À frente da OAB, o advogado Felipe Santa Cruz enfrentou com destemor as forças do atraso da sociedade brasileira. No verbo e nos autos, contestou com desassombro as ameaças ao estado democrático de direito promovidas pelo grupo político do atual presidente. Em defesa de princípios democráticos, fez-se alvo de agressões vis e ameaças.  Confrontado, armou-se com o escudo simbólico da instituição que presidia – uma espécie de carapaça democrática –  e pôs-se a enfrentar os bárbaros que colocavam em risco a estabilidade institucional do País. Hoje, pleiteia disputar o Governo do Rio com o mesmo vigor e entusiasmo.

Arrumar a casa, ou seja criar condições objetivas para que programas e ideias sejam aplicáveis e exequíveis, é sua primeira proposta. Quer implantar ainda o ensino de tempo de integral, com valorização dos professores, priorizado os que lecionam ciências exatas, sobretudo matemática. Crítico da atual política de segurança – “é de extermínio”, diz – ele também discorda da exagerada intromissão do STF na regulação das ações policiais nas comunidades.  Com o apoio do prefeito Eduardo Paes e enormes potencialidades individuais, tem capacidade de crescimento, tornando-se a novidade do pleito.

No quadrilátero mais charmoso do Rio, confluência da Dias Ferreira com a Aristides Espíndola, surge uma badalada tasca portuguesa – o Henriqueta, nome também da matriarca da família Henriques, responsável pelo negócio. Sujeito ativo do empreendedorismo gastronômico no Rio e em Niterói, o chef Alexandre, seu filho, é outro personagem desta edição.

É dele o mérito de fazer o negócio firmar-se como o melhor endereço da culinária lusitana na região. Uma história que começou há mais de 60 anos no centro de Niterói, onde os Henriques montaram a Pensão Europa, uma casa simples, acolhedora, no melhor estilo das pensões portuguesas. O cardápio era simples, mas executado com esmero: carne assada, dobradinha, jardineira e bacalhau à Gomes de Sá. O sucesso foi inevitável e o negócio se expandiu com a Gruta Santa Antônio, na Ponta da Areia, endereço há  décadas de referência na gastronomia lusitana.

Com origem, estilo e atuação absolutamente distintas, Raull, Paulo, Felipe e Alexandre são a perfeita tradução

 da gente carioca cujo trabalho ajuda a construir a alma do Rio – perscrutada com competência e desvelo por nossos repórteres nesta edição.