HERDEIRAS EMPODERADAS DE CIATA

Por Aydano André Motta

Sem a determinação, a sensatez e a coragem das mulheres, escola de samba nem existiria. Começa por Hilária Batista de Almeida, Tia Ciata, a mãe de santo e cozinheira baiana, lutadora maior contra a opressão que marginalizava o ritmo dos tambores, arte dos escravizados. Na efervescente Praça Onze da segunda metade do século 19, ela abriu a casa aos sambistas, e os protegeu da polícia dos brancos, iniciando a saga que deu nas escolas.

Século e meio se passou no reino machista chamado Brasil, para a atitude da filha do Recôncavo (de Santo Amaro), ganhar nome: empoderamento feminino. Ela adoraria conhecer as sucessoras, que honram sua biografia e hoje se espalham pelas escolas, ensinando aos marmanjos como a banda deve tocar. Legítimas herdeiras de Ciata.

“Sou empoderada, sim. Faço o que quero e busco realizar meus sonhos com meus próprios passos, sem precisar de ajuda masculina”, assume, sem rodeios nem meias palavras, Bellinha Delfin, 24 anos, musa da campeã Viradouro, um dos símbolos do estilo de Carnaval da escola de Niterói.

Passista profissional e professora de dança, ela não se descola da luta contra a hiperssexualização das mulheres negras (e do samba), mas não negocia o cabelo natural e a escolha das roupas, por exemplo. “As meninas hoje estão se posicionando e o respeito aumenta. Antes, havia um padrão estético quase obrigatório”, explica ela, referindo-se ao cabelão liso e artificial e ao corpão do clichê “exportação”. Magra, Bellinha ostenta opulento – e natural – cabelo black.

E, claro, mora na trincheira antirracista. Criança criada pela mãe e pela avó na Ladeira dos Guararapes, Bellinha sonhava ser bailarina clássica e entrou para a escola de dança do Theatro Municipal. Era a única negra. “Não me sentia incentivada a continuar”, relembra. “O que me encantou no samba foi o acolhimento. Encontrei gente como eu“.

Ela começou por um projeto de percussão na sua comunidade, paralelamente ao atletismo, que praticava apaixonadamente. Em 2014, foi à quadra da São Clemente tentar ser ritmista, mas a dança prevaleceu e entrou na ala de passistas. Ficou até 2018, quando se transferiu para o Salgueiro e, no ano seguinte, começou a virar estrela da festa – conquistou o cobiçado Estandarte de Ouro.

Em 2020, Bellinha levantou a avenida representando Elza Soares jovem na comissão de frente da Mocidade Independente. Depois, seguiu seu plano – a Viradouro, para trabalhar com o coordenador dos passistas, Valci Pelé, lendário dançarino do Carnaval. Hoje, se divide entre a escola, o Delfin Ateliê, especializado em roupas para a folia, na qual é estilista e modelo, e os workshops de dança, que pavimentaram viagens a França, Portugal, Reino Unido, Polônia, Suécia, Espanha, Nigéria, Argentina e Uruguai. “Os gringos treinam o ano inteiro”, conta ela que, na fase aguda da pandemia, pagou os boletos da casa onde vive com o marido, Luiz Otávio (ritmista da União da Ilha), dando aulas por videoconferência. Porque independência é seu enredo da vida.

Para consumar seu plano, Carol Santos precisou ser ainda mais desbravadora até quebrar o protetorado masculino das baterias em seu ponto mais valioso, o surdo de terceira. Instrumento chave da ala (“a cozinha”, como ela define), enfeitiçou a moça ainda nos tempos da torcida Independente, do São Paulo, em 2011. “Surdo é o amor da minha vida”, resume ela, que depois passou à escola de samba criada pela organizada e desfilou oito anos no Sambódromo da capital, também pela Unidos de Vila Maria.

Mas o projeto mirava o principal Carnaval do país. Em 2017, Carol, assistente contábil, dedicou as férias em janeiro a ensaiar para conseguir lugar na orquestra da sua escola de coração no Rio – a União da Ilha. Mulher e paulistana, querendo tocar surdo numa tradicional bateria carioca! Para se preparar, ensaiava sozinha em casa, com áudios do ensaio técnico da escola. Quando se mudou para o Rio, começou a frequentar os ensaios da tricolor insulana, até ser convidada a tocar surdo por um amigo.

Três semanas antes daquele Carnaval, conseguiu oportunidade no sonhado surdo de terceira. “Enchia o saco do Ciça”, ri Carol, referindo-se a um dos mais festejados mestres de bateria, hoje campeão na Viradouro. Até o dia de ouvir a “melhor frase” da vida dela: “Minha filha, manda o número do seu pezinho”, determinou o maestro, com sua voz característica. Era a senha de que iria desfilar.

Carol estreou na Sapucaí no lugar planejado – e hoje tem a companhia de duas parceiras (Patrícia e Tamara) no instrumento. Acabou? Nunca: “Tocamos melhor do que muitos homens, e mesmo assim temos de provar todo o tempo que somos capazes de estar ali”, ela desenha o clássico cenário do privilégio masculino.

Para seguir na luta, Carol fundou o “Mulheres no Ritmo”, movimento que, nas redes sociais, documenta outras ritmistas, como incentivo à presença de mais mulheres nas baterias. “Para firmar a ideia de que podemos estar onde quisermos”, recita, no ritmo preciso do empoderamento.

Está longe de ser batalha fácil. No Grupo Especial (elite do samba carioca), diretores de Carnaval são todos homens. Há apenas uma presidente mulher – Kátia Drummond, da Imperatriz – e duas carnavalescas – a multicampeã Rosa Magalhães, de novo na verde e branco de Ramos, e Márcia Lage, parceira do marido, Renato Lage, na Portela. Exceções que confirmam a regra pesada do machismo.

Só aumenta o valor da façanha de Wic Tavares, 25 anos, agora cantora da Unidos da Tijuca ao lado do pai, Wantuir. Nem pense em nepotismo: ela conquistou o lugar ao conduzir o samba vencedor na disputa da escola, com a mãe, Rosinele, e a madrinha, Cecília (as duas integram o carro de som da São Clemente). Ex-porta-bandeira, baianinha e passista, Wic acumulou experiência no microfone, acompanhando astros como Neguinho da Beija-Flor, Wander Pires, Zé Paulo, Leonardo Bessa e Diego Nicolau. Enfim, virou protagonista.

“As pessoas precisam entender que na história do samba a mulher é dominante. O machismo tem que acabar”, sustenta ela, que não se intimida de se apresentar ao lado de Wantuir, um dos mais experientes intérpretes da atualidade.

Wic tem inspirações de estilos variados: Beyoncé, Teresa Cristina, Pitty e Anitta. Encara a estreia como missão de representar as mulheres e honrar a memória das pioneiras no canto carnavalesco. Antes dela, Dona Ivone Lara, Elza Soares, Alcione, Eliana de Lima e Grazzi Brasil exerceram a função. “Estou aqui graças a elas”, agradece a jovem cantora, que mora em Caxias com os pais e planeja seguir carreira além das fronteiras carnavalescas.

Bellinha, Carol, Wic e as outras integram-se à batalha na qual Lucinha Nobre está desde 1989, ano de sua estreia na Mocidade Independente como segunda porta-bandeira, aos 13 anos. Nascida na classe média, de personalidade forte, nunca se deixou subjugar – empoderada desde que isso tudo aqui era mato. “Nunca abaixei a cabeça para ninguém”, ratifica, constatando os avanços. “Vejo as meninas lutando por seus direitos, reivindicando condições de trabalho”, aponta, destacando que é reconhecida pelas novatas.

“Lá em casa, quem mandava era minha mãe”, ela arrisca a explicação. Dona de cinco Estandartes de Ouro, passou por Unidos da Tijuca e Inocentes de Belford Roxo, antes de chegar à Portela, sua escola hoje. Emblema na arte de carregar o pavilhão, Lucinha se orgulha de ter sido “a rebelde, diferentona” e avalia como “bacana” o momento atual. “O respeito é inegociável”, decreta.

Tia Ciata, lá da eternidade dos bambas, referenda com alegria.