“O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” Talvez esta seja a frase mais lembrada quando se trata do livro ‘Os Sertões’, obra-prima escrita por Euclides da Cunha (1866-1909) e lançada há exatos 120 anos. O livro, muitas vezes visto como uma epopeia da vida do sertanejo, numa luta diuturna contra as dificuldades impostas pela natureza e enfrentando ainda incompreensão daqueles que formam a elite nacional, é considerado o primeiro livro-reportagem brasileiro, posto que foi escrito como romance de não-ficção.
Euclides da Cunha, um jornalista de formação militar, foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1897 para cobrir a Guerra de Canudos, conflito armado ocorrido em 1896 e 1897 para encerrar a suposta contestação popular ao regime republicano que surgiu no interior da Bahia.
O convite para ser o correspondente de guerra do matutino paulistano foi feito pelo jornalista Júlio de Mesquita (1862-1927), proprietário do jornal. Antes, Euclides da Cunha havia publicado um artigo no periódico, chamado A Nossa Vendeia, no qual traçava um paralelo entre o movimento chefiado pelo líder messiânico Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), mais conhecido como Antônio Conselheiro, no povoado de Belo Monte, terras onde antes havia um arraial chamado Canudos, com o movimento monarquista francês que pretendia derrubar a república, no fim do século 18.
Um texto redigido pela equipe do acervo do jornal O Estado de S. Paulo enfatiza o nascedouro da obra durante os meses em que Cunha atuou na cobertura especial do conflito. “É em Canudos que começa a escrever as primeiras notas de sua obra-prima ‘Os Sertões’, cujas primeiras amostras públicas aparecem no Estado, ainda em 1898, sob o título ‘Excerto de Um Livro Inédito'”, afirma o texto publicado pelo acervo do jornal.
Segundo conta o biógrafo de Cunha, o diplomata, cientista político e historiador Luís Cláudio Villafañe Santos, o jornalista “já saiu de São Paulo [rumo à Bahia] com a intenção de escrever um livro”. “O jornal havia prometido a ele que publicaria um livro, em forma de folhetim. Isso acabou não ocorrendo”, comenta Santos, que no ano passado publicou a obra Euclides da Cunha – Uma Biografia.
PIONEIRISMO NO GÊNERO
Os Sertões seria escrito ao longo de cinco anos, de 1897 a 1902. “E, sim, se pode dizer que foi um pioneiro livro-reportagem porque tem muito de um livro que procura ser mais do que literatura, procura ser um livro de não-ficção. Uma não-ficção literária, um livro de jornalismo literário, para usar a expressão mais correta”, afirma Santos. Nesse sentido, Cunha vestiu a carapuça do jornalista que era. “No livro, está a ideia de que ele estava relatando fatos, ainda que o fizesse de forma literária”, comenta o biógrafo.
Contudo, o interessante é notar que, ao longo do processo de depuração e escrita do livro, a própria visão de Euclides da Cunha sobre a ocorrência histórica parece ter mudado substancialmente. Se durante o conflito, quando ele reportava ao jornal O Estado de S. Paulo, sua visão era “oficialesca”, na obra literária ele se coloca numa postura de denúncia da violência impetrada contra os sertanejos.
Para isso é preciso entender o contexto. Para atuar na cobertura, o jornalista resgatou sua patente militar — era primeiro-tenente, mas havia deixado de exercer — e assim foi que ele atuou e teve os acessos necessários ao trabalho. “O jornal o mandou como jornalista, mas ele também foi a Belo Monte como militar. Levou uniforme, teve ajudante de ordens e uma inserção dentro do comando militar”, aponta Santos. “Depois, a narrativa do livro acabou sendo imensamente diferente da narrativa de suas reportagens publicados ao longo da guerra”, compara o biógrafo. “Antes, ele tinha uma visão pró-exército, oficialista, governista. E isso não se verifica quando ele escreveu o livro, cinco anos depois”.
Para Santos, isso pode ter decorrido por conta da própria mudança de mentalidade da época. Àquela altura, já eram conhecidas as “muitas denúncias de todos os absurdos” cometidos durante as batalhas em Belo Monte. Estudioso da obra de Euclides da Cunha reconhecido internacionalmente, o professor Leopoldo Bernucci, da Universidade da Califórnia em Davis, também concorda com a classificação pioneira de Os Sertões como livro-reportagem. Segundo ele, a obra pode ser definida “como um livro que absorve, como nenhum antes dele, um tipo de discurso que chamamos de reportagem”.
“O discurso jornalístico é um entre tantos outros que compõem esta obra, sendo que o historiográfico é o que predomina, tanto pela intencionalidade do autor que o anuncia nas suas primeiras páginas como pela própria estrutura cronológica e interpretativa dos fatos”, analisa Bernucci, autor de, entre outros, Discurso, Ciência e Controvérsia em Euclides da Cunha. Ele ressalta que as “outras linguagens” que podem ser detectadas no livro são “a da Bíblia, da geologia, da antropologia, da geologia, do folclore, da meteorologia e das práticas militares”.
“O jornal, a partir do século 19, já se comportava como o romance moderno em sua elaboração discursiva. Entravam nele o texto ficcional, o aviso publicitário, as declarações governamentais, comerciais e jurídicas, os relatórios militares, todos justapostos e ocupando um mesmo espaço cultural. Euclides se apropriou da estrutura multifacetada do jornal, fazendo coexistir vários tipos de discurso no seu livro”, contextualiza o professor.
“Porém, diferentemente do que ocorre no jornal, as várias linguagens de Os Sertões acham-se organicamente articuladas. Tanto é assim que, pelo fato de os diversos tipos de discurso estarem tão imbricados nessa obra, torna-se praticamente impossível precisar onde termina a linguagem jornalística e onde tem início a linguagem historiográfica, por exemplo”, completa. Para Bernucci, “a dívida” que Euclides da Cunha tinha com os jornais da época era enorme, seja porque ele os utilizou como fonte de pesquisa, seja porque ele próprio atuou em diversos. “[Foi] um grande colaborador em conhecidos periódicos, como O Estado de S. Paulo, e os cariocas Jornal do Commercio, Kosmos, O Paiz”, enumera. ” “Os Sertões nasceu nas próprias reportagens que o então ‘correspondente de guerra especial’ do jornal O Estado de S. Paulo enviava àquela publicação, bem como nos telegramas que cobriram pormenorizadamente os dois últimos meses do conflito”, acrescenta o publicitário e pesquisador independente Felipe Rissato, co-autor, ao lado de Bernucci, do livro À Margem da História – Euclides da Cunha.
De acordo com levantamento realizado por ele, a cobertura de Cunha constou de 31 edições do jornal — o jornalista teria enviado 64 telegramas à redação com seus relatos. “Ele não era o único repórter de campo nas operações, assim como não foi o único a publicar um livro a respeito da Guerra de Canudos”, ressalta Rissato. “Mas o jovem ex-militar, reformado no ano anterior, em 1896, tinha posição de destaque mesmo em outras folhas, que reproduziam suas reportagens. Além disso, apesar de seu livro aparecer somente em 1902, cinco anos após a guerra, quando fundiu as reportagens, os telegramas e as anotações imprescindíveis que fizera na caderneta que levava consigo para o livro, Euclides manteve na narrativa recursos jornalísticos, como a objetividade mesmo em descrições detalhadas”.
“O pioneirismo da obra se dá por ser uma novidade para a época em relação à forma como foi escrita, pois mistura elementos jornalísticos e literários”, diz a especialista em dramaturgia Ana Sampaio Machado, professora de ética em comunicação na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Ao descrever detalhadamente a paisagem, as pessoas e os fatos sem romancear, prezando pela organização, se encaixa no gênero jornalístico, porém não pode ser classificado como tal, por sua extensão, pela escolha do vocabulário incomum e pelo estilo de escrita”.
SUCESSO REPENTINO
Oficialmente não há uma data exata do lançamento da primeira edição de Os Sertões, mas Rissato aponta para a alta possibilidade de o livro ter saído do prelo em 2 de dezembro de 1902. “A data exata é incerta, mas ficou como sendo ‘oficial’ a data da dedicatória mais antiga, 2 de dezembro, encontrada em um exemplar oferecido ao cunhado de Euclides, Octaviano”, afirma o pesquisador. “No dia 3, já aparecia a primeira crítica, de José Verissimo, no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro”.
O sucesso foi retumbante. Segundo o material publicado pelo acervo do Estadão, o livro foi “recebido com entusiasmo pelos críticos literários da época e a prime ira edição se esgotou em algumas semanas”. No ano seguinte, Euclides da Cunha foi eleito como membro da Academia Brasileira de Letras. Ele também foi convidado a integrar e tomou posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Costuma se dizer que ele foi dormir desconhecido e acordou famoso. E isso é parcialmente verdade”, comenta o biógrafo Santos. Para o biógrafo, esse sucesso incrível surpreendeu a todos, inclusive ao próprio autor.
Não demorou muito para o livro ser alçado ao panteão dos clássicos da língua portuguesa. “Há vários fatores que contribuem para que seja considerado uma obra canônica da literatura nacional”, explica Bernucci. “Poderíamos enumerar alguns desses pontos dizendo o seguinte: um clássico é aquele livro que não somente se lê, mas que é relido em distintas épocas, consideração que faz ressaltar nele seu caráter imperecível e sua característica de artefato cultural duradouro, como as grandes pinturas. Outro fator: os clássicos trazem as marcas das leituras que precedem as nossas. Assim, não poderíamos deixar de encontrar em ‘Os Sertões’ os traços de muitos outros livros parecidos na cultura ocidental.
Ele ressalta ainda que o livro, ao longo dos 120 anos de sua trajetória, “vem se impondo também como obra que impactou outras culturalmente importantes”. “Isto é, como livro fundamental e fundador na tradição dos debates sobre a nossa nacionalidade”, aponta. Para o professor, o livro ainda “atinge uma dimensão universal para que possa ser chamado de clássico”. “O livro toca os nossos corações tanto pelas descrições e narrações dos fatos geograficamente localizados quanto por aquelas que, desbordando da esfera local, passam ao mundo dos sentimentos universais, como por exemplo o da solidariedade que todos devemos ter uns com os outros como povo de uma mesma nação”, diz. “A Guerra de Canudos representou o contrário desta noção, porque se configurou como uma verdadeira guerra civil, em que como é típico, indivíduos de um mesmo país lutam uns contra os outros, irmãos contra irmãos destruindo-se”, comenta Bernucci.
“A obra de Euclides, por não ser unicamente jornalística, nem mesmo unicamente literária, recebendo de há muito o caráter de ‘inclassificável’, reúne estudos de geologia, etnografia, sociologia, antropologia e uma série de ciências, que permitiram ao autor, no ano seguinte à sua publicação, o ingresso na Academia Brasileira de Letras e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, colocando-o em posição de destaque da nossa intelectualidade em todos os tempos”.
Com informações da BBC News