Marcelo Macedo Soares
Com a devida autorização dos editores, o texto que se segue é uma demonstração afetuosa de nepotismo. Mas é por uma boa causa. Afinal, não é todo dia que um dos cartões postais do Rio de Janeiro completa 60 anos. Mais raro ainda seria imaginar que há seis décadas, o sonho de construir um grande parque no Flamengo seria posto em prática por uma mulher, que ainda por cima era autodidata e homossexual, em plena ditadura militar: Lota Macedo Soares, um dos nomes mais importante da arquitetura, prima distante deste autor.
No próximo dia 17 de outubro, o Aterro do Flamengo, um dos maiores símbolos do Rio de Janeiro, completa 60 anos. Mais do que um parque, ele representa a ousadia e o pioneirismo de Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, a Lota, uma arquiteta autodidata e visionária que transformou uma faixa de entulho à beira-mar em um dos espaços públicos mais emblemáticos da cidade.
O projeto, considerado uma das maiores intervenções urbanísticas do da história do país, consagrou Lota como protagonista de uma obra que conciliou natureza, lazer e arquitetura em pleno coração do Rio. À frente de uma equipe formada por nomes como Affonso Reidy, Roberto Burle Marx e Jorge Machado Moreira, Lota encarnou o espírito de vanguarda de uma geração que acreditava na cidade como espaço coletivo e democrático.
Nascida em Paris em 1910, filha do jornalista José Eduardo de Macedo Soares, que fundou o Diário Carioca, e de Adélia de Carvalho Costallat, Lota cresceu cercada pela elite intelectual e artística. Ao chegar ao Brasil, em 1928, rompeu convenções: apaixonada por carros de corrida, trajes masculinos e debates de vanguarda, construiu uma trajetória marcada pela ousadia.
Sua primeira grande obra, a Casa da Samambaia, em Petrópolis, projetada em parceria com Sergio Bernardes, foi premiada na Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo em 1951. A casa, com estrutura metálica arrojada, chamou atenção de Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, que a convidou para liderar o projeto que mudaria a paisagem carioca.
De uma varanda com vista para os entulhos acumulados na orla, Lota sugeriu a Lacerda a criação de um parque monumental. Com energia e liderança, ela tirou do papel o desenho urbano de Affonso Reidy e mobilizou alguns dos maiores talentos do país. Burle Marx assinou o paisagismo, Luiz de Mello Filho atuou na botânica, e Bertha Leitchic integrou a engenharia.
A proposta de Lota não se limitava ao embelezamento. Influenciada por autores como Jane Jacobs, defendia que o Aterro fosse um espaço de lazer e convivência para os pedestres, resistindo à lógica das cidades já dominadas pelos automóveis. Em 1964, publicou um artigo na Revista de Engenharia do Estado da Guanabara no qual criticava a urbanização mecanizada e defendia um espaço público humano e inclusivo: “põe as necessidades do homem diante das reivindicações da máquina, ousa oferecer ao pedestre […] o seu quinhão de sossego e lazer”, escreveu.
A trajetória de Lota revela o pioneirismo de uma mulher que ousou assumir papéis de liderança em um campo ainda dominado por homens, articulando política, arte e urbanismo em um projeto monumental. Seu trabalho consolidou o direito à cidade, antecipando debates que continuam atuais sobre mobilidade, preservação ambiental e inclusão social.
Seis décadas depois, o Aterro do Flamengo é mais do que um cartão-postal: é um testemunho da visão de uma arquiteta autodidata que acreditou no poder transformador do espaço público e deixou sua marca definitiva na história do Rio.
A história de amor entre a poetisa americana Elizabeth Bishop e a Lota de Macedo Soares é uma das mais fascinantes da literatura e da história cultural do Brasil. Em um contexto turbulento dos anos 50 e 60, as duas mulheres não apenas assumiram sua homossexualidade com surpreendente naturalidade, mas também desafiaram as convenções de suas épocas. A premiada biografia Flores raras e banalíssimas de Carmen L. Oliveira reconta essa trajetória, explorando não apenas o relacionamento amoroso entre as duas, mas também os desafios enfrentados por elas em um Brasil em transformação. O livro deu origem ao filme de mesmo nome, lançado em 2013 com Glória Pires interpretando Lota.
Gloria, conhecida por marcar gerações na televisão com papéis em novelas como “Vale Tudo” e “Memorial de Maria Moura”, encarou no cinema um dos maiores desafios de sua carreira: interpretar Lota de Macedo Soares no filme dirigido por Bruno Barreto. A atriz deu vida à arquiteta e urbanista.
No longa, que se destacou o Festival de Berlim, Gloria se distanciou das mocinhas e vilãs que a consagraram na TV para mergulhar em um drama histórico que mistura amor, política e preconceito.
“Ela foi muito criticada por não ter formação acadêmica formal e por ser amiga íntima do governador Carlos Lacerda. Além disso, sua homossexualidade a colocou em posição de isolamento em uma época em que gays podiam ser presos ou internados”, relembrou a atriz em entrevista na época.
Mais do que um romance, Flores Raras joga luz sobre a importância da obra de Lota. A narrativa expõe o triângulo amoroso formado por Lota, Elizabeth (interpretada por Miranda Otto) e Mary (Tracy Middendorf), com cenas íntimas filmadas de forma delicada, mas que ainda assim geraram polêmica no Brasil conservador da época de lançamento.