Marcelo Macedo Soares
No coração de São Pedro da Aldeia, na Região dos Lagos, está um dos mais impressionantes monumentos da criatividade popular brasileira: a Casa da Flor, uma obra de arte viva feita de cacos, restos e poesia. Idealizada e construída por Gabriel Joaquim dos Santos — pedreiro, filho de ex-escravizados, homem negro e autodidata —, a casa é símbolo de resistência, beleza e inventividade, atraindo estudiosos, turistas e artistas que se encantam com sua estética única.
A construção começou em 1912, mas foi a partir de 1923 que a transformação verdadeiramente começou, quando Gabriel teve um sonho que o inspirou a decorar a casa com materiais descartados: cerâmicas quebradas, tampas de garrafa, faróis de automóveis, conchas, lâmpadas queimadas e outros itens considerados imprestáveis passaram a compor painéis, colunas, cachos de uva, flores e arabescos que revestem toda a estrutura. Era o nascimento de uma arquitetura espontânea, orgânica e surrealista — um universo particular brotando do lixo e da terra.
A obra não se limitava a um impulso estético. Era uma filosofia de vida. Gabriel acreditava na beleza oculta das coisas. Em vez de desperdiçar, ele transformava. Em vez de esquecer, ele reimaginava. Cada fragmento fixado na parede da casa carrega histórias e afetos. Durante mais de 70 anos, até sua morte em 1985, o artista construiu, decorou e reinventou o espaço, tornando-o um reflexo de sua alma e de sua relação com o mundo.
A singularidade da Casa da Flor levou à criação, em 1987, da Sociedade de Amigos da Casa da Flor, hoje chamada de Instituto Cultural Casa da Flor, que atua como guardião do legado de Seu Gabriel. A entidade sem fins lucrativos trabalha na preservação física da casa e na divulgação de sua importância artística e cultural. O reconhecimento oficial veio com os tombamento pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelo INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), consolidando seu status como patrimônio da cultura brasileira.
A Casa da Flor também conquistou seu espaço no debate acadêmico e nas artes visuais. A professora e pesquisadora Amélia Zaluar, que conviveu com Gabriel durante seus últimos oito anos de vida, produziu uma monografia sensível e detalhada, intitulada “A Casa da Flor – Tudo caquinho transformado em beleza”. Sua obra é referência para quem deseja entender a profundidade e o impacto do trabalho do artista aldeense.
Comparações com nomes como Ferdinand Cheval, autor do Palácio Ideal na França, e Antoni Gaudí, mestre do modernismo catalão, ajudam a situar a Casa da Flor em um contexto internacional da chamada arquitetura fantástica — embora Seu Gabriel jamais tenha saído do Brasil, nem conhecido os nomes com os quais hoje é comparado. Ele fazia por instinto, por fé e por amor.
Hoje, a Casa da Flor é mais do que uma atração turística: é um símbolo da arte que nasce da escassez, da força da cultura afro-brasileira e da sensibilidade que transforma resíduos em eternidade. Visitar esse espaço é mergulhar na imaginação de um homem que enxergou beleza onde ninguém via — e deixou como herança um dos maiores monumentos da criatividade popular do Brasil.
HISTÓRIA
Erguida com barro, madeira roliça e uma imaginação sem limites, a Casa da Flor é um dos mais autênticos exemplos da arquitetura espontânea no Brasil. A casa, inicialmente modesta, começou a se transformar profundamente em 1923. Naquele ano, inspirado por um sonho, Gabriel iniciou uma longa jornada de enfeitar sua morada com materiais inusitados, recolhidos no lixo e nas margens da lagoa: pedaços de azulejo, telhas, conchas, búzios, faróis de carros, cacos de vidro, pedaços de cerâmica, restos industriais. Segundo o próprio artista, eram “coisinhas de nada” — mas em suas mãos, se tornaram flores, cachos de uva, folhas e figuras fantásticas fixadas nas paredes, muros e móveis.
Com a morte de Gabriel em 1985, a preservação da casa se tornou um desafio. Graças a recursos públicos e projetos culturais, a Casa da Flor foi restaurada e hoje é mantida com apoio de editais e incentivos à cultura. A conservação cotidiana do espaço ficou a cargo de seu sobrinho, que atua como tutor do imóvel, cuidando não só da estrutura, mas também do acolhimento aos visitantes que chegam ao local movidos pela curiosidade e pelo encanto.
A visita à Casa da Flor é uma experiência sensorial. Logo na entrada, uma pequena escadaria revestida por pedras e decorada com flores feitas de louça quebrada convida o público a mergulhar no universo de Gabriel. Cada detalhe é único — não há dois mosaicos iguais. Um corredor externo cercado por um muro artesanal conduz ao primeiro espaço de convivência, com um banco decorado por figuras abstratas e simbólicas: carrancas, flores, folhas e outros elementos do imaginário popular.
O interior da casa, construída em formato de “T”, reserva ainda mais surpresas. Com três ambientes distintos, as paredes, o chão e o teto estão cobertos de pequenos fragmentos artísticos. É difícil, até para os olhos mais atentos, absorver todos os detalhes em uma única visita. Tudo ali respira a visão de um homem simples que, com lirismo e ousadia, transformou cacos em poesia.
Mais que um ponto turístico, a Casa da Flor é um manifesto silencioso contra o desperdício e um testemunho da força criativa dos povos marginalizados. Tombada como patrimônio cultural, ela segue viva, florescendo em meio às lembranças e à resistência cultural de um Brasil profundo, colorido e muitas vezes invisível.