RIO CAPITAL HONORÁRIA DO BRASIL: POR QUE NÃO?

O prefeito acha inclusive que Niterói poderia reivindicar o título de capital honorária do Estado do Rio - Fotos de Custódio Coimbra

Lucila Soares

Com um textão em seu perfil no X, o prefeito Eduardo Paes lançou a ideia. Um título sucinto – “Rio: Capital Honorária do Brasil” – e uma justificativa em versos de “Saudade da Guanabara”, de Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro: “Brasil, sua cara ainda é o Rio de Janeiro/Três por quatro e a foto e o seu corpo inteiro/Precisa se regenerar.” Na sequência, um balanço dos prejuízos que a transferência da capital para Brasília trouxe ao Rio e um resumo da virada da cidade que ele governa pela quarta vez. Poderia ser um factoide, termo que se tornou popular nos governos do ex-prefeito Cesar Maia, sob cuja batuta Paes iniciou sua carreira política, aos 23 anos.

Acontece que, assim como seu ex-guru, Paes é bom de marketing, gosta de causar, mas não costuma brincar quando lança uma ideia. O textão tem como base um estudo de 61 páginas, com dados históricos, números e exemplos internacionais. O documento sugere medidas tomadas por decreto que podem mitigar os danos provocados pela transferência da capital, em 1960, e pela fusão da Guanabara com o Estado do Rio, mas principalmente podem reforçar o bom momento da cidade, que se firmou como capital brasileira dos grandes eventos. O recado público foi enviado, estrategicamente, quatro dias antes do encontro dos prefeitos eleitos em 2024 com o presidente Lula, realizado entre 11 e 13 de fevereiro.

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Cristo Redentor, símbolo de uma Cidade Maravilhosa – Fotos de Custódio Coimbra

O que não falta ao Rio de Janeiro é título. O mais famoso é o de “Cidade Maravilhosa”, nome da marchinha-hino lançada em 1934. O mais importante é o de Patrimônio Mundial como Paisagem Cultural Urbana, concedido pela Unesco em 2012, um reconhecimento inédito no mundo, que valoriza a harmonia entre paisagem natural e ocupação humana. Até o ano que vem, o Rio é a Capital Mundial do Livro, escolha que pela primeira vez recai sobre uma cidade de língua portuguesa. Na prática, já é a capital brasileira dos grandes eventos culturais, empresariais e diplomáticos. E o prefeito ainda quer fazer da cidade a Capital da Inteligência Artificial (ou da Inovação) na América do Sul.

O Rio também poderia ser chamado de capital das cidades sustentáveis. Foi a primeira e única cidade do Sul Global a presidir o C-40, rede de cem prefeitos de todo o mundo unidos para enfrentar a crise climática. Ou do audiovisual (desbancou Paris em número de diárias de filmagem de produções nacionais e internacionais), do esporte (foi a primeira cidade da América do Sul a sediar uma olimpíada) ou da arquitetura brasileira (abriga um conjunto arquitetônico representativo do Brasil Colônia, do Império e da República). Além de, claro, capital do samba.

As praias são o quintal dos cariocas – Fotos de Custódio Coimbra

São títulos que retratam a vocação do Rio para o que os estudiosos chamam de “capitalidade”, um conceito do italiano Giulio Argan, historiador e um dos principais críticos de arte do século XX. Argan cunhou o termo “cidade-capital” para designar cidades onde a política, a cultura, a produção intelectual e simbólica e a memória se interligam. Por esse motivo, elas se tornam símbolos do que um país considera ter de mais belo, inspirador e promissor.

Essas cidades podem ser ou não a capital administrativa. Roma, de onde Argan foi prefeito nos anos 1970, acumula as duas funções, assim como Paris e Londres. Já a cidade símbolo dos Estados Unidos é Nova York, não Washington. No Brasil, ninguém duvida: esse papel é do Rio, mesmo 65 anos depois da transferência da capital para Brasília.

Balão dá o recado em dia de manifestação – Fotos de Custódio Coimbra

A cidade não sentiu de imediato os efeitos dessa mudança. As principais representações diplomáticas estrangeiras continuaram no Rio por alguns anos, assim como muitas repartições púbicas. Com a criação da Guanabara, da qual tornou-se a capital, o Rio passou a ser uma cidade-estado, dotada de orçamento suficiente para o governador Carlos Lacerda fazer uma gestão ousada, que mudou a paisagem carioca. Em seu discurso de posse, o governador foi claro sobre os planos ambiciosos que trazia e que poderiam dar lastro a uma futura candidatura à presidência da República:

 “Entre todas as unidades que formam a indissolúvel nação, o estado da Guanabara é dos mais responsáveis e, sem dúvida, o mais preparado para influir na condução geral do país.”

Copacabana Palace, inaugurado em 1923: símbolo de uma era – Fotos de Custódio Coimbra

Sua obra mais visível é o Parque do Flamengo, idealizado por Lota Macedo Soares, arquiteta e urbanista autodidata, amiga e braço direito de Lacerda. A área, de 1,2 milhão de metros quadrados, é o maior aterro do mundo, e pelo projeto original seria ocupada apenas por vias expressas de ligação entre Copacabana e o Centro da cidade. Lota conseguiu carta branca e convidou o paisagista Roberto Burle Marx para projetar o parque, até hoje uma das mais importantes e democráticas áreas de lazer da cidade. Lacerda construiu a estação de tratamento de água do Guandu, o principal investimento entre muitos feitos no saneamento básico, e os dois túneis que ligam a zona Sul à zona Norte da cidade – Santa Bárbara e Rebouças, este último inaugurado já no governo seguinte, de Francisco Negrão de Lima.

Ao longo do governo Lacerda, persistia o clima de prosperidade e otimismo instaurado por Juscelino Kubitschek, que prometeu crescimento de 50 anos em 5 e governou ao som dos primeiros acordes da bossa nova, sob as lentes dos primeiros filmes do Cinema Novo e ainda comemorou a primeira vitória em uma Copa do Mundo – a de 1958, na Suécia.

Alô torcida do Flamengo: “Aquele abraço!” – Fotos de Custódio Coimbra

No início dos anos 1960, continuou a florescer na cidade a arquitetura modernista, que já deixara sua marca em obras como o Ministério de Educação e Cultura, com projeto de um grupo de jovens arquitetos integrado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer, sob coordenação do franco-suíço Le Corbusier. O grande destaque do período Lacerda é o Museu de Arte Moderna, projeto de Affonso Eduardo Reidy, na ponta do Aterro do Flamengo, próximo ao Aeroporto Santos Dumont, ícone modernista da primeira leva, ainda nos anos 1930, saído da prancheta dos irmãos Marcelo e Milton Roberto. 

Em 1964, o golpe militar mudou o rumo dos ventos. JK e Lacerda foram cassados e a mudança das instituições federais para Brasília foi acelerada, assim como a das embaixadas. A cidade, que entre 1930 e 1960 parecia ter “assinado um pacto com a eterna prosperidade”, nas palavras do economista Carlos Lessa, entrou em um longo processo de decadência. A fusão da Guanabara com o Estado do Rio, em 1975, resultou na perda dos fundos constitucionais que custeavam boa parte das despesas da cidade. Entre 1970 e 2011, de acordo com dados do IBGE, a participação do Rio no PIB nacional caiu de 12% para 5,05%. Em 2021, dado mais recente disponível no IBGE, o peso da economia do Rio no PIB do país é de pouco menos de 4%. 

Futevôlei na praia: sol e mar como moldura -Fotos de Custódio Coimbra

Em sua postagem no X, o prefeito Eduardo Paes fala da vitalidade da sociedade e da criatividade do povo carioca como responsáveis pela virada – ou reinvenção, como prefere – do Rio. A população do Rio é vista desde antes do tempo em que Walt Disney criou o Zé Carioca, nos anos 1940, como alegre, simpática, acolhedora. É uma imagem que não casa com os índices de violência da cidade. Estes, por sua vez, não combinam com o balanço dos megaeventos tradicionais, como Carnaval e Réveillon, nos quais as ocorrências mais frequentes  são roubo de celular.

Megashows como o de Lady Gaga, que levou mais de dois milhões de pessoas à Praia de Copacabana, também acontecem em um ambiente de paz. O que permite dizer que o jeito de ser do carioca é patrimônio imaterial da cidade tanto quanto – ou até mais – do que a bossa-nova, a Banda de Ipanema, as festas para Iemanjá, o Cacique de Ramos ou o futevôlei. Esse jeito de ser é elemento determinante para que o Rio seja considerado como destino gay friendly por revistas especializadas, como a Passport Magazine.

Papa Francisco, durante a Jornada Mundial da Juventude, em 2013 – Fotos de Custódio Coimbra

Esse mesmo ambiente contribui para a realização de grandes eventos empresariais, como a Web Summit, que reuniu este ano 34.550 pessoas de 43 países e fechou acordo com a Prefeitura para realizar pelo menos mais cinco edições até 2030. O ROG-o maior evento de petróleo e gás da América Latina, levou 80 mil pessoas ao Boulevard Olímpico em 2024 para debater a transição energética.

Outra marca da cidade é o “jeitinho carioca”, que pode ser sinônimo de malandragem ou de criatividade e capacidade de inovação. O nome para essa segunda opção é soft power, ou a influência exercida por um lugar que atrai por suas ideias, culturas, valores, patrimônios e estilo de vida. As atividades econômicas que compõem o soft power estão agregadas sob o guarda-chuva da Indústria Criativa, uma das molas propulsoras da virada do Rio. O setor reúne atividades como audiovisual, música, moda, design, arquitetura e mídia, facilmente identificáveis como criativas. E também inovação tecnológica, uma tradição da cidade onde nasceu a Fundação Oswaldo Cruz, a primeira instituição de pesquisa científica do Brasil.

Museu do Amanhã: qual é o futuro do Rio? – Fotos de Custódio Coimbra

No plano internacional, a cidade tem tradição antiga de sediar grandes eventos. O primeiro foi a Terceira Conferência Pan-Americana, em 1906. A Exposição Universal de 1922, que comemorou o Centenário da Independência, deixou marcas na paisagem do Centro. A   Academia Brasileira de Letras ocupa o prédio que abrigou o pavilhão da França, o Museu Histórico Nacional, o das Grandes Indústrias, e o Museu da Imagem e do Som o da Administração e do Distrito Federal. Em 1992, a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92) inaugurou uma série de encontros internacionais voltados para o desenvolvimento sustentável. E no ano passado o Rio sediou a reunião do G20, que reúne as maiores economias do mundo.

A resposta ao pedido de tornar o Rio capital honorária pode vir em julho, durante mais um evento internacional importante, a reunião de cúpula dos BRICS, grupo de cooperação internacional que reúne 20 países em desenvolvimento. O prefeito já sugeriu até o local onde se daria a assinatura do decreto: o recém-reformado Palácio Capanema, que reabre como centro cultural vinculado ao Ministério da Cultura.

O Centro vive processo de revitalização – Fotos de Custódio Coimbra

Até lá, Paes trata de reforçar o pedido com recados tranquilizadores aos que podem se preocupar com despesas decorrentes do reconhecimento da capital simbólica. O documento da Prefeitura do Rio deixa claro que a cidade não reivindica recursos do fundo constitucional vinculado à capital, nem pretende brigar por uma “desfusão”. Ao contrário. Rio e Niterói apresentaram candidatura conjunta para sediar os Jogos Panamericanos de 2031. O prefeito acha inclusive que Niterói poderia reivindicar o título de capital honorária do Estado do Rio.

Por que não?

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