PRAIA DO FLAMENGO: DO BREJÃO AO CARIBREJO

Praia do Flamengo já começa a sentir os reflexos das melhorias no sistema de esgotamento sanitário e desponta com força para ser o novo point do verão carioca

Jan Theophilo

Imagine a cena. As ondas do Flamengo beijando a praia que ficava coladinha na Marquês de Abrantes. Jangadeiros se lançando nas águas em suas pequenas embarcações, enquanto pescadores puxavam suas redes bem ali nas areias escaldantes. Isso quando não havia competições de remo, esporte que no início do século passado despertava as multidões e lotava a faixa de areia de espectadores. Crianças brincavam tranquilamente, sem medo do alheio, com o máximo das tecnologias lúdicas da época, como cata-ventos, pipas e bolhas de sabão. Até que veio o progresso, no caso em questão mais conhecido como Aterro do Flamengo.

O que, como quase todo carioca e simpatizante sabe, inicialmente seria apenas uma via expressa para conectar o Centro à Zona Sul, e se tornou um dos maiores parques urbanos do mundo. Por obra e graça do governador Carlos Lacerda e da visão de Lota Macedo Soares, uma área de 1,2 milhão de m² construída sobre aterros sucessivos e com direito ao requinte do paisagismo de Burle Marx, mudou o panorama carioca. O Aterro do Flamengo adicionou uma larga faixa de terra entre a avenida e o mar, com mais de 300 metros, e na sequência um conjunto de fatores tornou a praia imprópria para o banho.

Para o professor e pesquisador de história do Rio Dilson Gomes não é justo culpar exclusivamente a construção do Aterro pelas décadas de decadência da Praia do Flamengo. “A construção, usando material de desmonte do morro do Castelo, entre outros, criou uma orla reta e um quebra-mar que piorou drasticamente a circulação das águas e, na prática, uma lagoa de água parada”, diz ele. Sem sua renovação natural, a praia virou um ambiente propício para a estagnação e acumulação de poluentes. “Mas paralelamente a cidade se expandiu, se industrializou, e rios e canais que deságuam na Baía de Guanabara viraram caminhos para esgoto doméstico e industrial não tratado. Com a água parada criada pelo Aterro, essa poluição se concentrou na enseada do Flamengo”, explica Dilson.

 O Aterro foi inaugurado oficialmente em 1965. E nas muitas décadas seguintes raros eram os frequentadores do grandioso parque que se aventuravam a dar um tchibum nas águas poluídas. “Tenho meu ponto aqui há mais de 30 anos. Muitas vezes vi a praia cheia, mas a grande maioria das pessoas procuravam os chuveirinhos dos postos ou das quadras de vôlei para aliviar o calor”, conta Francisco da Silva, dono do Quiosque do Gilson. “A água era muito escura. Lembro claramente que havia três grandes línguas negras de esgoto que desaguavam aqui”, diz ele. Assim, logo a praia ganhou o apelido gaiato: “Brejão”.

Só que no país onde tudo parece construção e já é ruína, um swell trouxe notícias que muita gente levou um tempo para acreditar. O Brejão voltou a ter águas cristalinas e já ganhou até novo apelido: “Caribrejo”. Mas isso não caiu do céu. A melhora na balneabilidade é resultado direto de um conjunto de ações de saneamento realizadas pela Águas do Rio desde o início de sua atuação, em 2021.  Nesse período, a concessionária investiu intensamente na recuperação do sistema de esgotamento sanitário na Zona Sul, que inclui a recuperação de estruturas, implantações de equipamentos, manutenções constantes e ações de fiscalização. Com isso, 127 milhões de litros de esgoto deixaram de cair na Baía de Guanabara todos os dias.

O Aterro foi inaugurado oficialmente em 1965

De acordo com nota da empresa, “um dos grandes marcos foi a limpeza completa do Interceptor Oceânico, um túnel com 9 km de extensão e 5,5 metros de diâmetro, responsável por captar grande parte do esgoto da região e conduzi-lo ao Emissário Submarino de Ipanema”. Em nada menos que absurdos 54 anos, o coletor nunca havia sido limpo! Foram retiradas três mil toneladas de resíduos em um ano de operação intensiva, e hoje ele opera a plena capacidade.

Ainda segundo as Águas do Rio: “com a redução dos níveis de extravasamento e desvio do rio Carioca – que há décadas recebe contribuição de esgoto ao longo do percurso –, ao sistema de interceptação, a praia começou a sentir os efeitos da despoluição. Além disso, a implantação de uma nova estação elevatória de esgoto na Praça do Índio, no Flamengo, garante que aproximadamente 200 mil litros de esgoto por dia deixem de ir para a Baía de Guanabara. Isso significa que cerca de 22 milhões de litros de água contaminada deixem de cair na praia do Flamengo, todos os dias”. E não demorou para o povo perceber as mudanças.

“Pesco aqui com meus amigos há mais de 15 anos. Muitas vezes a maré não esteve para peixe. Mas hoje vir pescar aqui é almoço certo”, festeja o comerciário e pescador Paulo Santos de Souza. “Aqui bate muito carapicu e corvina. Mas a gente sente que a água está melhorando, porque hoje já vê tartarugas com muita frequência, o que não acontecia antes”, conta. E não só as cascudas que voltaram a frequentar o pedaço. “Semana passada estava aqui praticando canoa havaiana quando meu grupo foi cercado por um cardume de golfinhos. Foi uma das sensações mais incríveis da minha vida”, conta a bancária Tayana Machado.  Ficamos agora na torcida pela volta das baleias.

O jornalismo local que acompanhou o tema trouxe números comparativos: enquanto anos anteriores traziam grande parte das amostras como impróprias, 2025 apresentou semanas e meses com mais de 70–90% de amostras dentro dos padrões em alguns períodos, chegando, em relatos de setembro/outubro, a episódios de 100% de amostras próprias em janelas temporais específicas. Importante: os boletins são semanais e ponto a ponto, então a condição pode variar com chuvas, manutenção de interceptores e eventos excepcionais.  

Além da Concessionária, a Prefeitura também deu sua colaboração para a retomada da Praia do Flamengo

E se dentro d’água as coisas estão mais cristalinas, nas areias as mudanças são cintilantes. “Meu faturamento aumentou em pelo menos 60% no último ano. Eu antes encomendava 60 sacos de gelo para o fim de semana. Hoje são pelo menos 200”, conta Deyverson Pereira, dono do Quiosque do Caribrejo. Com a chegada de novos frequentadores, surgiram demandas mais sofisticadas. “Muita gente de Copacabana tem me contado que prefere agora vir pra cá. Antes eu vendia só cerveja e caipirinha. Agora temos no cardápio Mojito, Gin Tônica e te garanto que meu Aperol Spritz é melhor do que em qualquer quiosque do Leblon”, afirma confiante. Chora Manoel Carlos.

Além da Concessionária, a Prefeitura também deu sua colaboração para a retomada da Praia do Flamengo. Um “Choque de Ordem” reorganizou quiosques, determinou pontos para os grupos de stand up paddle e canoas havaianas, e retirou toda as bandeiras (fossem de clubes de futebol, partidos políticos ou movimentos sociais), muitas gastas pela maresia, e que contribuíam para dar à praia aquele ar de mafuá mal frequentado. E curiosamente, provando que o tempo é o senhor da razão, o Aterro do Flamengo acabou se tornando, como dizia o colunista Ibrahim Sued, aquele famoso plus a mais para quem vai curtir o fim de semana ou um dia de folga no pedaço.

“Isso não existe em nenhuma outra praia mais badalada da Zona Sul. Você tem as árvores, ciclovias, quadras para praticar quase todo o tipo de esporte e tudo isso com o pé na areia”, diz a moradora de Laranjeiras Adriana Chichiaro, triatleta que trocou os treinos de natação no Posto 6, em Copacabana, pelo mar mais pertinho de casa. “Outro fator importante a favor do Flamengo é a segurança e conservação. Nunca houve um arrastão por aqui ou algo parecido”, garante ela. A Águas do Rio mantém ainda uma atuação contínua de fiscalização, identificando e corrigindo ligações clandestinas de esgoto em rios, canais e no sistema de drenagem urbana.

Por óbvio, embora comece a receber migrantes de outras praias, a maioria do público frequentador do Caribrejo mora nas regiões da Glória, Catete ou Centro. Gente que rala, vai à praia quando pode e deixa o Flamengo muitas vezes sem aquele aglomerado de gente que leva os invejosos daquela estranha cidade cinza ao Sul do Brasil a achar que cariocas e simpatizantes são todos vagabundos. Só que o Flamengo é muito mais do que uma praia onde você vê que o barquinho vai enquanto à tardinha cai. Ele é tão democrático que uma parte considerada, vá lá, “não muito frequentável”, deu origem a um dos projetos sociais mais bacanas das praias cariocas.

Durante muito tempo, ali pela altura do Posto 2, havia um tradicional ponto de concentração da comunidade LGBTQI+, principalmente de transsexuais. As meninas não gostavam de enxeridos preconceituosos que tentavam fotografá-las sem estarem devidamente maquiadas e vestidas. E tome havaiana voando nos xeretas. Até que no ano passado surgiu o AquaTrans, projeto do professor de educação física Marcelo Silva: “Sou negro e transmasculino. Eu e meus amigos tínhamos dificuldade em frequentar as praiais mais, digamos, badaladas, devido a constante vigilância da cisgeneridade, que é responsável por causar disforias e inseguranças em corpos dissidentes do gênero e da sexualidade”.

  E até do outro lado da baía a turma de Niterói não precisa mais se contentar em ficar apenas olhando. De acordo com o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), nos últimos anos, todas as praias de Niterói apresentaram melhora nos índices de balneabilidade, principalmente as praias de Icaraí, Boa Viagem e Flechas, as três na Baía de Guanabara. Em 2025, essas praias permaneceram mais da metade do ano próprias para banho, sendo a Praia de Boa Viagem 62% própria, seguida por Flechas, com 59%, e Icaraí, com 58%. A empolgação é tanta que a mais famosa praia da cidade também já ganhou apelido: agora é o Icaraíbe.

Assim, no palco onde o progresso parecia ter enterrado a poesia das ondas, a Praia do Flamengo renasce com águas cristalinas. O “Brejão” virou “Caribrejo”, os golfinhos já ensaiam coreografias espetaculares, e se continuar assim, não vai demorar a aparecer influencer vendendo o pacote “Flamengo Beach Experience” com direito a mergulhar com tartarugas, ver golfinhos de perto e provar drinks gourmet. A Guanabara não se rende.