Marcelo Macedo Soares
Na exuberante e turística Região dos Lagos pulsa silenciosamente uma história ancestral de resistência, apagada por séculos de colonização, mas que resiste nas veias de doze comunidades quilombolas que sobrevivem e lutam pela manutenção de seus territórios, memórias e culturas. Essas comunidades não são apenas resquícios do passado: são presença viva, elo com a ancestralidade africana e indígena, e símbolo de luta por justiça histórica.
Baseada nas pesquisas do historiador Jean Pierre de Cristo — especialista em escravidão afro-indígena, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Iguaba Grande e do Coletivo Cultural Olhar da Perifa — é possível conhecer aqui um pouco da saga dos “Doze Quilombos” da Região dos Lagos, de sua origem na antiga Capitania de Cabo Frio, no século XVII, até sua realidade no século XXI.
UMA GEOGRAFIA DE RESISTÊNCIA
Hoje, os doze quilombos reconhecidos — ou em processo de reconhecimento — estão distribuídos entre os municípios de Cabo Frio, Araruama, Arraial do Cabo, São Pedro da Aldeia e Búzios. Apesar da dispersão territorial, suas raízes se entrelaçam num tronco comum: a antiga fazenda de Campos Novos, fundada por jesuítas em 1630, que funcionava como centro de um complexo de fazendas satélites.
A lista das comunidades é composta por: Preto Forro, Maria Romana, São Jacinto, Espírito Santo, Botafogo (em Cabo Frio); Caveira (São Pedro da Aldeia); Rasa, Maria Joaquina, Baía Formosa (Búzios); Sobara e Prodígio (Araruama); e Prainha (Arraial do Cabo). Esta última ainda busca reconhecimento oficial da Fundação Palmares como comunidade quilombola — a única de natureza urbana na região.
QUILOMBO NÃO É APENAS REFÚGIO: É CIVILIZAÇÃO
Como afirma Jean Pierre, o conceito de quilombo vai além da imagem redutora de “esconderijo de negros fugidos”, tão comum nos livros didáticos. Na África central, particularmente entre o antigo Reino do Congo e Angola, os quilombos já existiam como sociedades organizadas, pluriétnicas e com estrutura social e econômica própria, antes mesmo de serem transplantadas e adaptadas ao Brasil colonial.
Na Região dos Lagos, os primeiros registros de quilombos datam do século XVIII. Destacaram-se por sua resistência o Quilombo de Bacaxá, e o de Maria e Joaquim, este último fundado por um casal de líderes fugitivos. Bacaxá tornou-se um dos epicentros da insurgência contra o regime escravista, promovendo saques a fazendas e alforria a cativos. Mas a repressão foi brutal: no século XVIII, o então governador Luiz Vahia Monteiro — conhecido como “Onça” — liderou campanhas militares para aniquilar os “mocambos” rebeldes nos sertões fluminenses.
DO QUILOMBO GUERREIRO AO QUILOMBO CAMPESINO
Com o fim oficial da escravidão, a resistência quilombola se reinventou. Muitas famílias permaneceram nos mesmos espaços territoriais das antigas fazendas, agora como pequenos agricultores. Nasceu, assim, o “quilombo campesino”, que alia a ancestralidade africana ao cultivo da terra e à manutenção de saberes tradicionais. Alguns adquiriram suas terras por compra; outros, por doação. Mas todos mantiveram viva a luta por autonomia e identidade.
Hoje, as comunidades apresentam características culturais diversas, ainda que compartilhem origens comuns. São guardiãs de práticas como a agricultura familiar, o cultivo do aipim para a produção da farinha artesanal, a pesca, a religiosidade afro-brasileira e os saberes orais passados de geração em geração.
MEMÓRIA AMEAÇADA: A LUTA PELO TERRITÓRIO
Apesar da relevância histórica, cultural e social, muitas dessas comunidades vivem à margem da visibilidade pública e do apoio governamental. Algumas sequer possuem acesso adequado à educação, saúde e transporte. O núcleo Zebina de Baía Formosa, por exemplo, só conquistou energia elétrica em 2025, após intensa mobilização judicial.
O que agrava ainda mais esse cenário é a crescente pressão da especulação imobiliária e agrícola. A empresa canavieira AGRISA, conforme denuncia Jean Pierre, tem sufocado comunidades como Sobara, Prodígio e Preto Forro, com avanço sobre seus territórios. Em Baía Formosa, a fragmentação das terras criou quatro núcleos distintos, gerando vulnerabilidade e descontinuidade territorial.
O caso da comunidade da Rasa é emblemático. Na década de 1970, um fazendeiro expulsou várias famílias quilombolas, que se refugiaram no bairro Jardim Esperança, em Cabo Frio, hoje um dos redutos de população negra e pobre da região, afetada pelo êxodo forçado de suas terras tradicionais.
A LUTA INVISÍVEL PELO RECONHECIMENTO
A ausência de políticas públicas voltadas para essas comunidades contribui para um cenário de apagamento. Escolas nos territórios quilombolas, muitas vezes, não abordam a história e a cultura afro-brasileira. Professores despreparados ou desinformados perpetuam o desconhecimento. Reconhecer a existência dessas comunidades é essencial para a construção de uma identidade afro-brasileira autêntica.
A oralidade é outro pilar central da preservação da memória, ainda que, por vezes, invisibilizada pelo saber acadêmico hegemônico. No Morro da Cabocla, por exemplo, a comunidade da Prainha resiste desde o século XVII. Era o único espaço onde negros podiam viver em Arraial do Cabo, impedidos de circular por outras praias. A tradição oral guarda esses relatos, muitas vezes mais vivos do que os registros escritos.
AMERIFRICANIDADE E CONTINUIDADE
Para compreender a relevância dos quilombos, é preciso olhar com olhos de pertencimento. A pensadora Lélia Gonzalez, ao propor o conceito de amefricanidade, convida à valorização da cultura negra nas Américas como um processo histórico de reinvenção e resistência. E é isso que as comunidades quilombolas da Região dos Lagos representam: o elo entre passado, presente e futuro.
Como aponta o historiador Jean Pierre de Cristo, manter viva a memória dos doze quilombos é mais que uma necessidade histórica — é uma urgência social. É garantir que o apagamento não vença a resistência. Que as novas gerações, sejam elas quilombolas ou não, conheçam a história negra da região e se reconheçam nela.
No Brasil, onde o racismo estrutural tenta apagar narrativas negras, os quilombos são faróis. A Região dos Lagos não é apenas destino turístico. É território sagrado de luta. Os doze quilombos que ali permanecem, mesmo diante de tanta pressão, carregam em seus corpos e culturas uma das histórias mais profundas da formação do Brasil. Cabe a nós — como sociedade, como imprensa, como educadores e cidadãos — dar visibilidade, apoio e voz a essa luta.
A SOBREVIVENCIA SE IMPÕE
Apesar das dificuldades históricas e da precariedade de políticas públicas, os quilombos da Região dos Lagos seguem vivos, pulsantes e cada vez mais visíveis — e organizados. Jean Pierre de Cristo revela o cotidiano dessas comunidades, seus desafios, conquistas e a profunda herança cultural que preservam, de geração em geração.
“A perpetuação da memória por meio da prática cotidiana, onde os Griots, os mais velhos, são os guardiões do saber”, explica o pesquisador. Desde 2022, o Governo Federal intensificou políticas públicas voltadas aos quilombolas. Pierre cita a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola, mas alerta: no nível municipal, os buracos são grandes. O transporte público é precário, dificultando o acesso aos centros urbanos, e o sistema de saúde não alcança adequadamente essas áreas. O Estado atua por meio da ACQUILERJ – Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro –, entidade com mais de 20 anos de história. Sob a liderança de Bia Nunes, quilombola e ativista, a associação se tornou uma ponte crucial entre os quilombos e as instâncias de poder.
CULTURA PULSANTE E ABERTA AO PÚBLICO
As atividades culturais têm sido importantes vitrines das comunidades. Em Baía Formosa, oficinas de arte encantam visitantes; no quilombo da Fazenda Espírito Santo, a líder Regina Severino organiza encontros culinários que misturam afeto, história e resistência.
As comunidades têm recebido desde estudantes do ensino fundamental até pesquisadores universitários interessados em conhecer a história contada pelos próprios protagonistas.
“O saber ancestral é compartilhado com todos, em um processo educativo e afetivo que fortalece a identidade e a autonomia desses povos”, destaca Pierre.
ORGANIZAÇÃO E TRADIÇÃO
A estrutura organizacional dos quilombos se baseia em dois pilares: o saber dos mais velhos e a liderança das mulheres. As Griots têm papel central, como detentoras do conhecimento e orientadoras das novas gerações. Ao lado delas, líderes comunitários — em sua maioria mulheres — articulam ações com os governos e representam os interesses coletivos da comunidade.
Cada quilombo cultiva tradições próprias. Há comunidades em que a ciranda ou a contação de histórias são o centro da vida cultural. Em outras, como em Preto Forro, o futebol de domingo é mais que lazer: é resistência histórica, um símbolo de unidade e de enfrentamento aos grileiros. “A cultura quilombola é plural, viva e deve ser valorizada por seu papel social, cultural e histórico no Brasil”, afirma Pierre.
DOCUMENTÁRIO
Está em produção um documentário inédito sobre os doze quilombos da Região dos Lagos. Intitulado “Os Doze Quilombos”, o filme é realizado com apoio do Edital Paulo Gustavo, com direção-executiva de Thammy Carvalho e roteiro baseado nas pesquisas de Pierre de Cristo.
O objetivo do documentário é apresentar, sob a perspectiva dos próprios quilombolas, as histórias, tradições e lutas de cada comunidade. “Queremos que o audiovisual seja uma ferramenta de reconhecimento dessas comunidades. Que as pessoas reflitam sobre seus aspectos sociais, culturais e econômicos”, diz Pierre.