Jan Theophilo
‘Não é apenas habitação, mas um modo de vida moderno”, saudava o Diário de Notícias em meados de maio de 1950. “Uma obra monumental que se integra à paisagem carioca”, disse o Jornal do Brasil. “O primeiro conjunto residencial moderno do Distrito Federal” afirmou por sua vez o Correio da Manhã sobre a inauguração de um dos maiores clássicos da arquitetura brasileira: o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, em São Cristóvão, mais conhecido como Pedregulho, projetado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy para abrigar servidores do então Distrito Federal.
O Pedregulho logo ficou famoso por seu bloco curvo e monumental, que acompanha o desenho do terreno como se fosse uma serpente de concreto pousada no morro, uma solução ousada para a época, e ainda hoje, completamente diferente do padrão de habitação popular.. O desenho privilegia rampas, pilotis, brises e circulação coletiva, um repertório que Reidy já vinha testando e que fez do Pedregulho um dos exemplos mais citados do modernismo social brasileiro. Além dos apartamentos, o projeto incluía uma escola com piscina, decorada por painéis de Portinari, lavanderia coletiva, mercado e jardins assinados por Burle Marx.
Nos anos seguintes, o Pedregulho bombou internacionalmente. Além das inovações arquitetônicas para melhor uso de luz e ventilação, foi resultado de ideias que, no Brasil daquela época ainda eram raríssimas: criar um bairro dentro de um edifício. “Ele representou um momento em que o Estado brasileiro realmente tentou mostrar que habitação social não precisava ser feia nem barata no pior sentido do termo, criando moradias de qualidade, com projeto arquitetônico de alto nível”, diz o historiador Dilson Gomes.
“Semana passada veio um ônibus de estudantes de arquitetura da Coréia do Sul. Mas toda semana vem gringo aqui. Acho que recebemos todo dia pelo menos três ônibus de visitantes”, conta Nilson da Silva, diretor da Associação de Moradores do Pedregulho. Essa maravilha de cenário logo se tornou locação para novelas, filmes e blockbusters, como Cidade de Deus (1998), “Velozes e Furiosos 5: Operação Rio” (onde é o esconderijo dos personagens de Vin Diesel e Paulo Walker) e do aclamado “A vida invisível (2019). Mas a impressão que fica nesses visitantes certamente não é das melhores.
No mormaço da manhã da Guanabara na sexta-feira, dia 14 de novembro, quando a equipe de reportagem de Rio Já chegou ao Pedregulho, encontrou um monumento abandonado e entregue à própria sorte. Das 328 unidades originais, 272 estão ocupadas. Os moradores reclamam das infiltrações que se veem por todos os lados e da falta de luz e gás. “A gente mantém isso aqui com a mensalidade da associação de moradores. São R$ 40 por mês, mas acho que 60% das pessoas pagam efetivamente”, conta Sérgio Luiz, presidente da Associação de Moradores. Ou seja, cerca de R$ 6.500 mensais para uma área construída de nove mil metros quadrados. Uma grana equivalente a dois meses de taxa de condomínio de um único morador da Delfim Moreira.
“Nós fomos abandonados em nível municipal, estadual e federal”, reclama Sérgio. Em 2015 a Secretaria de Habitação e a Companhia Estadual de Habitação (Cehab), investiram em valores de época R$ 46 milhões em obras de restauração do Pedregulho dentro do programa “De Cara Nova”. Foram feitas intervenções estruturais nos pilares e vigas, recuperação de pisos e coberturas, restauração de elementos de fachada (inclusive a restauração de brises soleis e a fabricação de novos cobogós), tudo com o cuidado de recuperar a aparência modernista original. A cereja do bolo era a modernização das redes elétrica, hidrossanitária e o fornecimento de gás.
“Só que nunca ligaram nada”, diz Nilson, revoltado, mostrando a central elétrica desligada, e as tubulações de gás que não conectam coisa alguma e nem relógio instalado tem. “Aqui todo mundo se vira na base do botijão de gás e do chuveiro elétrico”, conta ele. Os jardins de Burle Max viraram um matagal, e a escola com os painéis de Portinari hoje não atende mais exclusivamente às crianças do Pedregulho. Foi adicionada à rede municipal de educação. No calorão daquela manhã de novembro, os moradores ainda por cima estavam sem água. “A bomba estourou e não temos R$ 2 mil para fazer o conserto”, lamentava-se Sérgio.
Encaminhamos sete perguntas sobre a situação do Pedregulho à Companhia Estadual de Habitação, e recebemos como resposta uma nota fria e lacônica: “Os serviços contratados foram divididos em duas fases e ambas foram concluídas. Importante reforçar que todas as intervenções respeitaram as diretrizes de patrimônio histórico estabelecidas pela Prefeitura do Rio, uma vez que se trata de um conjunto tombado pelo município”. Porque fizeram as obras e não ligaram nada, nem um pio.
“Aqui ao lado tinha um imenso gramado em uma área da Cedae. Tinha parquinho para as crianças, Papai Noel descendo de helicóptero no Natal e a gente ainda podia assistir aos treinos de times como o Vasco e o São Cristóvão”, conta Solange Lisboa, uma das mais antigas e queridas moradoras do Pedregulho, filha do primeiro presidente da associação de moradores. “Era um tapete”, suspira Nilson. “Muitas vezes o Vasco ou o São Cristóvão mandavam os juniores treinar aqui. Então muitos craques devem ter começado carreira aqui no campo do Pedregulho”, diz ele.
E, de fato, ao menos uma estrela local brilhou. Certo dia, o time infantil do Vasco precisava de mais meninos para compor dois times e chamaram alguns garotos que moravam no Pedregulho. Um deles vingou. Os mais jovens certamente não vão lembrar, mas anos 1970 e 1980 ele faria sucesso como o veloz ponta-esquerda Mario Tilico, que atuou pelo Cruzeiro e São Paulo no início da “Era Telê”. Foi dele o famoso “Gol Espírita”, um dos mais emblemáticos da história são-paulina. Um chute improvável, que desafiou as leis da física e entrou para a história do clube. Hoje o gramado do Pedregulho não gera mais craques ou amadores. Um assassinato controverso no local levou ao fechamento do espaço. Sobre esse episódio ninguém gosta de falar.
O Pedregulho tem apartamentos de quarto e sala, dois quartos e, os mais sofisticados, duplex de dois quartos. Estes estão à venda na faixa dos R$ 150 mil. “Todo mundo vem aqui, acha lindo, mas morar mesmo ninguém quer”, conta a moradora Mônica Moura, dona de um dos duplex. “Se alguém aparecer aqui agora com R$ 70 mil eu fecho negócio”, diz ela. Só que, neste caso, o problema não é nem o estado precário de conservação do Conjunto ou a manutenção do apartamento da Mônica, que é até uma graça, mas de falta de escrituras de posse.
“A gente vive num limbo judicial”, diz o presidente da Associação de Moradores. Como o projeto nasceu como habitação funcional, os apartamentos nunca foram entregues com títulos de propriedade. De lá para cá fizeram uma nova capital, houve uma Ditadura Militar e fundiram o estado da Guanabara ao do Rio de Janeiro. Assim, o que já não era simples, virou uma odisseia. A titulação formal nesses casos depende de processos de regularização fundiária e de políticas específicas de regularização urbana previstas em Lei, além de articulação entre Estado, Prefeitura, Judiciário e cartórios. Já viu, né? Em resumo: não se trata apenas de algum governo “esquecer” de entregar escrituras, mas de um quadro legal e burocrático chatérrimo que exige ações específicas para transformar as moradias em propriedades registradas.
E antes que você pergunte, sim, o Pedregulho e o Minhocão da Gávea têm parentesco arquitetônico e de autoria. Ambos os conjuntos foram projetados por Affonso Reidy e partilham a mesma linguagem formal: grandes volumes curvilíneos, ênfase em circulação coletiva e a ideia de agrupar serviços ao redor da moradia. “O Pedregulho não foi um caso isolado. O governo sonhava com uma série de conjuntos habitacionais modernos, inspirados nas Unités d’Habitation de Le Corbusier”, conta o historiador Dilson Gomes. A ideia era espalhar pelo menos uma dúzia de projetos semelhantes pela cidade. Mas, como sempre, o entusiasmo inicial esbarrou na burocracia e na falta de recursos
Assim o Pedregulho é, ao mesmo tempo, uma promessa modernista e um paciente exemplar das idiossincrasias da administração pública. Pensado como modelo de habitação social, virou ícone arquitetônico, sofreu abandono, foi semi-restaurado a peso de ouro e continua sem resolver a questão da propriedade dos apartamentos. É a prova de que, no Brasil, até os melhores sonhos de concreto podem ter pés de barro.








