NEGROSMUROS: ARTE URBANA LEMBRA OS ESCRAVIZADOS

O painel de Conceição Evaristo

Caroline Rocha

O Rio de Janeiro, um dia capital imperial do Brasil, carrega a cicatriz de ter abrigado o maior porto escravagista do mundo: o Cais do Valongo. Pouco mais de um século após a abolição, no mesmo estado em que foram martirizados mais de quatro milhões de negros e negras, um projeto de arte urbana luta para reverter as tentativas racistas de apagamento e estampa nos muros da cidade a riqueza e a memória ancestral daqueles que a ergueram.

Os mais de 70 painéis distribuídos por todo o Rio de Janeiro são uma iniciativa do NegroMuro, projeto que atua no mapeamento da memória negra através da arte urbana. João Cândido, Elza Soares, Abdias Nascimento, Machado de Assis, Manuel Congo e Clementina de Jesus são apenas alguns dos homenageados que, embora essenciais para a história do Brasil, seguem desconhecidos por grande parte da população.

Contra este apagamento, o trabalho artístico desenvolvido pelo muralista Cazé e pelo produtor e pesquisador Pedro Rajão transforma grandes muros públicos em retratos e biografias de personagens históricos.

A ideia surgiu despretensiosamente em 2018, de um desejo de reverter o sentimento de não enxergar a si mesmo e seu território. “Eu sempre estranhei o fato de nunca ouvir falar nada sobre o lugar onde eu morava no jornal, na televisão, na cultura popular… a não ser quando era para cobrir um tiroteio no Jacarezinho. Ao mesmo tempo, sempre tive muita curiosidade com a história dos bairros e com a contribuição negra e ameríndia”, contou Rajão, morador do Cachambi, Zona Norte do Rio.

Os mais de 70 painéis distribuídos por todo o Rio de Janeiro são uma iniciativa do NegroMuro

O ponto de partida foi uma pintura em rolo do ativista dos direitos humanos, pan-africanista e músico nigeriano Fela Kuti – que é protagonista do documentário ‘ANIKULAPO’, desenvolvido por Rajão. “A gente não tinha nenhuma pretensão de virar um projeto de cartografia, até porque era quando tinha tempo, quando sobrava uma tinta, quando tinha um muro fácil de pintar… O projeto começa nas brechas e depois vai crescendo e se espalhando pela cidade”, explica o pesquisador.

Após quase oito anos, a dupla desenvolveu 73 murais pelo estado, permitindo aos fluminenses e turistas conhecer a história do Rio através de circuitos pelas pinturas. Uma das rotas mais interessantes do projeto, o tour pelo Centro tem início na casa de Chiquinha Gonzaga na antiga ‘Rua Mata Cavalos’, hoje Riachuelo. Em seguida, passamos pela Academia Negra de Filosofia, depois por Marielle Franco, Mãe Beata e Leo Santana. O ponto final é no Espaço Cultural Luiz Gama, que homenageia o abolicionista tanto no nome como nos muros.

Ao todo, são nove opções de circuitos. Na Zona Sul, área mais branca da capital, a negritude é representada por nomes como Djavan, Beatriz Nascimento e Paulinho da Viola. Na Grande Tijuca, baluartes do Salgueiro, Alcione e Martinho da Vila colorem os muros. Há ainda opções de circuitos pela Pequena África, Madureira, Grande Méier, Zona da Leopoldina e na Baixada Fluminense.

Os impactos das intervenções urbanas vão desde reconhecimentos de órgãos públicos, como a concessão do Diploma Abdias do Nascimento pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e a medalha Dona Ivone Lara, até a utilização dos painéis para aulas ao ar livre e ilustração de livros didáticos em todo o Brasil.

“Temos premiações que nos envaidecem, mas o prêmio maior é receber o retorno de alguém que não é necessariamente antenado nas artes e nas discussões acadêmicas, mas que está genuinamente feliz e impactado com o que estamos fazendo”, conta Rajão.

Para o pesquisador, o projeto é um combustível para aguçar a curiosidade das pessoas sobre a história do território onde moram e transitam e um motivador de reconhecimento da contribuição africana para a construção braçal e intelectual do Rio de Janeiro e do Brasil. “Não é só o corpo negro em lugares onde se espera que o negro esteja, como na arte ou no esporte. A gente [os negros] também é f**** nesses campos, mas temos psiquiatras notáveis, filósofos notáveis, engenheiros, médicos, professores, escritores, arquitetos, cientistas… Todos os campos em que a negritude ousou pisar, ela foi brilhante.”

Detalhe do muro em homenagem a João Cândido

UM PEQUENO ROTEIRO

JOÃO CÂNDIDO
Em novembro de 1910, o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, o “Baiano”, foi condenado a receber 250 chibatadas no encouraçado Minas Gerais. O que seria apenas mais uma tortura pública foi, na verdade, o estopim para a revolta calculadamente organizada por ao menos 2 anos pelos marinheiros liderados por João Candido. O evento é retratado na primeira cena do muro em homenagem à Revolta da Chibata, um dos episódios históricos mais impactantes do Brasil.

ABDIAS DO NASCIMENTO
Abdias trabalhou na política, na sociedade civil e em diversos campos culturais – teatro, literatura, artes plásticas, pesquisa e pensamento. Considerado um dos maiores expoentes da cultura negra e dos direitos humanos no Brasil e no mundo, foi oficialmente indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 2010. Fundou entidades pioneiras como o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Museu da Arte Negra (MAN) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Foi um idealizador do Memorial Zumbi e do Movimento Negro Unificado (MNU) e atuou em movimentos nacionais e internacionais como a Frente Negra Brasileira, a Negritude e o Pan-Africanismo.

MÃE BEATA
Mãe de quatro filhos biológicos e de milhares de filhos que acolheu tanto em seu terreiro de candomblé Ilê Omiojuarô, que funciona há mais de 30 anos em Nova Iguaçu e por quer que passasse, ela nasceu Beatriz Moreira Costa, em 1931, no Recôncavo Baiano.  Num mundo que ofereceu a ela, suas filhas e seus filhos tanto o racismo quanto a intolerância, Mãe Beata fez um convite à paz. Seu ativismo lhe rendeu prêmios e a levou para conferências internacionais sobre direitos humanos.