JULHO: O MÊS DO SANTO MALANDRO

Caroline Rocha

É impossível caminhar pelas vielas da Lapa sem cruzar com seu Zé. Seja nos grafites das paredes, nos adesivos colados nas portas dos cortiços ou na imagem de 1,80 metro que figura imponente no topo do santuário erguido no final da Ladeira de Santa Teresa, logo abaixo dos Arcos. O Santuário Nacional de Zé Pelintra, que além de polo religioso é monumento representativo da cultura da cidade, atrai cerca de duas mil pessoas a cada fim de semana. A assiduidade está registrada nas manchas escuras de fuligem na parede, vestígios das velas acesas pelos devotos do santo malandro.

A relação entre a Lapa e a malandragem remonta ao século XIX, quando a boemia iniciava no bairro do Estácio e terminava pela manhã nos Arcos. Foi nesse cenário que a manifestação espiritual de seu Zé migrou de Pernambuco para o Rio de Janeiro, encontrando ícones da malandragem como Miguel Camisa Preta — também homenageado no santuário, Edgar do Estácio, Meia Noite, Cardozinho da Saúde e Joãozinho da Lapa.

Malandro encantado

Zé Pelintra é uma entidade tradicional do Catimbó Jurema, culto híbrido surgido no Nordeste a partir do encontro entre espiritualidades indígenas, africanas e europeias, e que, posteriormente, foi incorporado à Umbanda. No Rio, seu Zé figura como o arquétipo do malandro, representado pelo terno branco, sapato bicolor, gravata vermelha e chapéu panamá.

Batizado como José de Aguiar Santana, ele nasceu em Pernambuco no século XVI e jamais pisou na Cidade Maravilhosa, segundo especialistas. Quem esteve na cidade foi sua manifestação espiritual, por meio do médium José Gomes da Silva, que ao aqui chegar encontrou a cultura da malandragem já estabelecida.

Longe dos estigmas que a associam à criminalidade, a malandragem era — e ainda é — um movimento organizado de resistência, defesa e revolução que surgiu como resposta à violência do pós-abolição da escravatura, especialmente às perseguições impostas pela política radical de reforma urbana do prefeito Pereira Passos.

“O prefeito começou a perseguir os pretos, e eles reagiram com o que sabiam: a capoeira, chamada à época de jogo de pernada por ser jogada com navalha no pé”, explica Fábio Feliciano, vice-presidente e diretor cultural do Santuário. “Quando Zé Pelintra chega ao Rio como José Gomes da Silva, se infiltra nessa malta de capoeiristas e revoluciona a malandragem, que nada mais é que um movimento de resistência do povo preto, assim como o samba, o jongo e tantos outros.” Segundo o vice-presidente, além de protetor dos mais pobres, Zé também possuía dons mediúnicos da Jurema Sagrada e promovia curas espirituais na Lapa.

Fábio, hoje com 45 anos, teve sua primeira manifestação de Zé Pelintra em 1995. Filho de mãe de santo, iniciou o contato com a espiritualidade ainda criança. Atualmente, concilia a profissão de contador com o voluntariado no santuário e as palestras que ministra sobre o santo malandro. “Faço esse trabalho com Seu Zé não só espiritual, mas também cultural. O que me levou a isso foi o preconceito contra essa energia, que é muito mal explicada. Em 1995, as pessoas não tinham muito conhecimento e achavam que ela iria me levar para a marginalidade. Eu era criança e não entendia, mas com o tempo fui vendo que só me trazia coisas boas e isso me incentivou a estudar”, afirmou Fábio, que acumula 20 anos de pesquisa na área.

Origem do Santuário

O Santuário Nacional de Zé Pelintra surgiu de forma espontânea há mais de quatro décadas. Segundo um dos mitos que envolvem a entidade, seu Zé teria desaparecido no fim da Ladeira de Santa Teresa. Desde então, os devotos começaram a acender velas em busca de proteção, inspiração e orientação espiritual. A história ganhou um novo capítulo em 2020, quando um casal fez um pedido ao malandro. Em troca do desejo realizado, doariam uma imagem de Zé Pelintra para ser colocada naquele ponto.

Em julho do mesmo ano, poucos meses após a doação, o espaço foi pichado com ameaças de “vou marretar” e “vai cair” – ataques que antecederam a depredação da imagem. A partir daí, nos moldes do movimento da malandragem, a comunidade preta se uniu. Da resistência nasceu a associação religiosa voluntária e sem fins lucrativos Santuário Nacional de Zé Pelintra.

Segundo o vice-presidente, nos últimos anos a incidência de ataques ao espaço físico reduziu. “Nós transformamos o Santuário em um ponto turístico, onde temos feira, atividades culturais, musicais… que inibem um pouco atos de intolerância religiosa, mas ela não está totalmente vencida. Às vezes, sofremos alguns ataques pelas redes sociais”, denuncia.

Em janeiro de 2022, o Santuário foi tombado Patrimônio Cultural Carioca. Oito meses depois, a Câmara do Rio aprovou a Lei nº 7.549/2022, que institui o Dia Municipal do Zé Pelintra. Desde então, todo 07 de julho a Ladeira de Santa Teresa recebe uma programação recheada de atividades culturais, musicais e litúrgicas, além da tradicional procissão que pinta as ruas da Lapa de vermelho e branco. Em 2024, foram três dias de festa que reuniram cerca de nove mil pessoas.

Neste ano, as comemorações terão início no dia 5, com uma tradicional gira de malandros. No dia seguinte, 6, será a vez da roda de samba e da entrega de honrarias. Para encerrar, no dia 7, haverá roda de conversa, atabaques, osé dos santos e mesa de petiscos para malandragem.

“Muitas pessoas se identificam com Zé Pelintra pela alegria que ele transmite, mesmo diante das adversidades da vida. Ele é o grande defensor, o advogado dos mais pobres, dos menos favorecidos, dos oprimidos. Pessoas injustiçadas, vítimas de algum tipo de intolerância, de preconceito religioso, racial, econômico e social vêm pedir força ao santo malandro”, esclarece Fábio.

Malandro é quem sabe lidar com as adversidades com criatividade, rapidez e jogo de cintura. É aquele que ajuda quem precisa, mesmo por caminhos não convencionais. Malandro tem a esperteza, a ginga, a sagacidade. Parafraseando a cantiga de capoeira: “Me diga, quem é brasileiro e não tem um pouco de malandro?”

O atual prefeito da cidade do Rio, Eduardo Paes, é frequentemente associado à figura do malandro por um apetrecho muito presente em sua cabeça, em especial no Carnaval: o chapéu panamá. Apesar de Paes se declarar católico, o acessório levou Marcelo Crivella, que tentava a reeleição, a associá-lo pejorativamente à entidade Zé Pelintra no debate da TV Globo em 2020: “Eduardo dava R$ 70 milhões para o Carnaval porque queria desfilar, ia lá com o chapeuzinho do Zé Pelintra. Saia na capa do jornal, queria autopromoção, por isso pegava dinheiro das pessoas para se promover….”

A declaração gerou duras críticas a Crivella e Paes classificou o adversário como “o prefeito do preconceito” em entrevista na véspera das eleições. As acusações inflamaram um movimento simbólico de eleitores de Eduardo Paes, que foram às urnas de chapéu panamá. Entre eles, a cantora Alcione que publicou uma foto com o acessório: “Saindo para votar em Eduardo Paes e homenageando Seu Zé Pelintra!”.

No discurso da vitória de Paes, aliados do prefeito eleito se enfileiraram ao seu lado usando o chapéu.“Agora nós vamos ter uma Prefeitura aberta a todas orientações, a todas as cores, a todos os credos”, disse ele. (CR)

PAES TRANSFORMOU O QUE ERA INSULTO EM IDENTIDADE

O atual prefeito da cidade do Rio, Eduardo Paes, é frequentemente associado à figura do malandro por um apetrecho muito presente em sua cabeça, em especial no Carnaval: o chapéu panamá. Apesar de Paes se declarar católico, o acessório levou Marcelo Crivella, que tentava a reeleição, a associá-lo pejorativamente à entidade Zé Pelintra no debate da TV Globo em 2020: “Eduardo dava R$ 70 milhões para o Carnaval porque queria desfilar, ia lá com o chapeuzinho do Zé Pelintra. Saia na capa do jornal, queria autopromoção, por isso pegava dinheiro das pessoas para se promover….”

A declaração gerou duras críticas a Crivella e Paes classificou o adversário como “o prefeito do preconceito” em entrevista na véspera das eleições. As acusações inflamaram um movimento simbólico de eleitores de Eduardo Paes, que foram às urnas de chapéu panamá. Entre eles, a cantora Alcione que publicou uma foto com o acessório: “Saindo para votar em Eduardo Paes e homenageando Seu Zé Pelintra!”.

No discurso da vitória de Paes, aliados do prefeito eleito se enfileiraram ao seu lado usando o chapéu.“Agora nós vamos ter uma Prefeitura aberta a todas orientações, a todas as cores, a todos os credos”, disse ele.