GASTRONOMIA: FRIO MARAVILHA! PRATOS PARA AQUECER O SEU INVERNO

Ossobuco com polenta do D'Amici: puro conforto

Bruno Agostini

O inverno, que delícia, me faz lembrar de comidas maravilhosas. Talhadas na paciência, são pratos ancestrais, que levam tempo para serem preparados. Ritual que começa nas marinadas, as vinhas d’alho consagradas que encharcam de sabor carnes que precisam de longos cozimentos. São cortes quase sempre com osso, que exaltam o sabor, como rabada, ossobuco, costela e costelinha, peito e pata. Sem esquecer das paletas de cordeiro, das bochechas, das moelas, das dobradinhas e das coxas de pato.

O frio é um convite para a apreciação de pratos fundos, que nos ajudam no reconforto. Essa crônica é um balaio de lembranças, um desfile de alguns dos pratos de que mais gosto – sobretudo nos meses amenos de maio a setembro, quando o Rio se torna uma cidade ainda mais aprazível, com suas luzes mansas e suas cores alaranjadas que tanto combinam com uma mesa farta, composta de pratos fortes como esses que agora me recordo.

Joelhão do Herr Pfeffer: sob encomenda

É preciso encomendar com pelo menos 24 horas de antecedência o joelhão do Herr Pfeffer. Com cerca de cinco quilos, a peça assa no fogo baixo lentamente, por até oito horas, antes de ser levada à mesa para o ritual de finalização: a carne é regada com cerveja, a escolha dos clientes, antes de voltar ao forno, para ganhar o seu acabamento, ligeiramente caramelizado. É sempre um acontecimento, capaz de saciar a fome de 8 a 12 pessoas.

Língua no missô do Mitsubá: fora do menu

Também é preciso encomendar com antecedência um prato muito especial, no Mitsubá: é a língua cozida no missô, que vem com uma muito forte mostarda japonesa, algo completamente diferente para nós, um sabor potente e profundo, numa carne que se desmancha na boca.

No Antiquarius… Melhor dizendo, nos Gajos d’Ouro, casa que herdou profissionais, receitas e amigos do saudoso português do Leblon, o prato que me desperta os sentimentos mais profundos de alegria é a perna de cordeiro com feijão branco. Meu pai, às vezes, pedia aos domingos em casa, para o nosso deleite em dupla. O arroz, formado pelo caldo do cozimento, úmido e escuro, colorido pelos tons do líquido, é um destaque à parte.

Outro dia, não faz muito tempo, fui numa degustação de vinhos alentejanos no Rancho Português. Para escoltar a garrafa que era a estrela da tarde, o Esporão Private Selection 2016, foi servida uma perna de cordeiro com feijão branco e o arroz puxado no caldo. Estava excelente. Porém, nada se compara ao arroz de cabrito, um dos pratos robustos mais exuberantes que já provei, servido fumegante, direto da panela de cobre, que pode servir até três pessoas. O chouriço português defumado faz toda a diferença nessa antológica degustação.

Canela de cordeiro no Sardinha: com vista para o Pão de Açúcar

Com vista para o Pão de Açúcar, no Sardinha do Botafogo Praia Shopping, vivi uma tarde deliciosa, ao sabor de uma canela de cordeiro, chamada chanfana, assada lentamente no vinho tinto, com o osso se soltando da carne, apontado para cima, como que indicando o céu, para onde essa caçarola de barro nos leva.

Lembro-me logo do Farrapos, em Copacabana, e do Jurubeba, botequim jovem de Botafogo, com suas porções de moela aperitivo, clamando por pimenta e pedaços de pão, para passar o rico molho do cozimento.

Língua a cavalo, na Casa Urich

Então, eu entro através da imaginação no centenário salão da Casa Urich, de 1913, e peço uma língua ao molho Madeira, guarnecida de purê de batata, que vem à cavalo, coroada por dois ovos estalados.

Já imaginou ir no lindo El Gebal, endereço histórico da Saara, e pedir um músculo com trigo à moda da casa, com salada? Pois é, diferente de tudo o que você conhece sobre cozinha libanesa.

Alguns protocolos devem ser seguidos. Por isso, o ossobuco alla milanese do italiano D’Amici, no Leme, sempre me faz feliz quando o peço. Isso porque ele é servido com garfinho fino, para podermos coletar com facilidade o tutano.

Da Brambini: ossobuco clássico, com risoto milanês

Perto dali, o Da Brambini me traz grandes recordações da adolescência, quando meu pai fazia eventualmente convite irresistível: “vamos ao Da Brambini comer um ossobuco?”. Vez ou outra tenho essa vontade, e vou até lá matá-la.

Também posso fazer isso na Casa Tua Cucina, na Barra, que levanta a bandeira da cozinha italiana com louvor e distinção. O Alves muitas vezes finaliza o risoto á mesa, fazendo a “mantecatura”, ou seja, emulsificando a manteiga, que dá textura e sabor ao arroz perfumado de açafrão. Porém, ali sempre fico na dúvida: porque não pedir o stinco de cordeiro ao forno, servido com a mais sedosa das polentas? Cruel fazer essa escolha…

Falando em Itália, eu me declaro fã do trabalho do chef Nello Garaventa, do Grado e do Padella. Os dois excelentes. Porém, nesse segundo restaurante é que eu penso constantemente na temporada mais fria do ano. Porque ali encontro uma tripa alla parmegiana clássica, imersa num molho cremoso de tomate e Parmigiano Reggiano de lamber os beiços. Tem polpetta de rabada, com creme de pinoli. Ah, sim, e também servem um pappardelle recheado de ossobuco, e o marubini panna, uma massa fresca recheada com bochecha de vitelo… O bottoni de língua, massa verde fresca, é igualmente fantástica. Mas, nunca deixaria de pedir a panelinha de timo de vitelo, um estarrecedor molho de vinho Marsala, enriquecido com cogumelos endívias e crista de galo (isso mesmo), que dá corpo e estrutura, um banho de colágerno e sabor.     

Vou construindo memórias afetivas, de lugares e sabores. É a costela no bafo do Costela’s na Brasa, que agora está de volta a seu endereço original, numa garagem do Estácio. Comida caseira é isso.

Falando nisso, não posso esquecer do Zinho Bier, em Benfica, templo das carnes, cuja principal referência da cozinha é o costelão no bafo, que se mistura com a cebola tenra para se tornar algo para além do extraordinário. 

Outra referência no assunto é o Pança’s Original, que assa na calçada peças envelopadas no celofane culinário, de costela bovina, e de costelinha suína. É algo digno de nota, e posso até concordar, quando eles mesmos dizem, que se trata da melhor costela do Brasil.

Churrascaria Palace: costelão com seis cortes

Tradição das churrascarias, o costelão é das minhas carnes preferidas em lugares que muito frequento. Na Palace, em Copacabana, eu peço o tuti, o mais delicioso dos seis cortes que tiram da peça. E, no Esplanada Grill, em Ipanema, eu só preciso de farofa para me atracar com o costelão, que chega na tábua de madeira. No Malta Beef Club, famoso pelas carnes maturadas, minha preferida é a costela do dianteiro, especialidade da casa, que vem com quatro ripas de osso para fora, e com uma capa de gordura indecente. Um dos segredos é o tempero com o toque oriental: dizem que tem molho de ostras.

Caldo de mocotó da Portuguesa: só às sextas

O Bar da Portuguesa serve joelho de porco e costelinha suína, ambos assados lentamente, em porção aperitivo ou completa, como prato principal. Porém, o que me pega mesmo, arrancando suspiros, é o caldo de mocotó, o melhor da minha vida inteirinha, que só é servido às sextas.

Na vitrine do bar Gato de Botas, em Vila Isabel, é sempre um sofrimento sem fim, por conta da infinidade de travessas apetitosas. Porém, tenho minhas duas preferidas: a de língua e a de moela, que, cobertas por fatias muito finas de cebola e servidas com pão de padaria qualquer, viram obra-prima: dá vontade de lamber o prato, mas em vez disso, eu passo o miolo que absorve tudo, deixando quase limpa a cerâmica branca. A pimenta aqui eu diria que é essencial.

Os melhores botecos do Rio exploram muito bem essas coisas. No Bar do Momo é difícil não querer pedir “Entre o Torresmo e a Moela”: uma tigela transbordante, com o miúdo servido em molho de vinho tinto, com purê de batata-doce bem cremoso, finalizado com a pele de porco crocante, tomate, cebola roxa e coentro, para dar um frescor. Eita!

Agora eu peço licença: vou para a cozinha terminar de fazer uma fabada asturiana, com chorizo espanhol, morcilla da Pirineus e um belo toucinho dos Defumados Trasmontanos. Bom apetite a todos!