ECSTASY NO RIO: UMA AVENTURA PIONEIRA 

Alexander Shulgin é o criador da droga

Jan Theophilo

Aqui se consome, aqui se produz, só não se sabe se exporta. Um livro do renomado bioquímico estado-unidense Alexander “Sasha” Shulgin – que fez pelo ecstasy (ou MDMA) o que o professor-guru Timothy Leary fez pelo LSD (vide box) – contou em detalhes sua pouco conhecida vinda ao Brasil. Corria o fim dos anos 1980; a substância ainda não era conhecida por aqui, e sua visita se propunha a divulgá-la. De acordo com o relato, Sacha deu palestra no Hotel Miramar, em Copacabana; participou de experiências em festas de ricaços; amou as churrascarias rodízio e, principalmente, esteve em uma suposta clínica de cirurgia plástica de Niterói, na qual ensinou a um grupo seleto de químicos brasileiros como sintetizar a droga, até hoje combustível de festas e raves.

Tudo isso foi relatado com impressionante riqueza de detalhes em “Tihkal – Triptamines i have known and loved”, publicado no distante ano de 1997 e sobre o qual praticamente jamais se falou no Brasil, apesar da reputação de seu autor no mundo acadêmico. Os nomes dos personagens citados foram propositalmente alterados por Sasha, para embaralhar pistas e evitar eventuais investigações. A história faz parte de um dos capítulos iniciais, quando ele conta que, em meados de 1989, recebeu um telefonema de um suposto empresário brasileiro que se apresentou como Giorgio Taros.

O tal Taros, ou seja lá quem for, estava interessado em marcar um encontro entre o químico e um representante de um grande órgão federal brasileiro, ligado à ciência e a saúde pública. No dia da conversa, os brasileiros o convidaram a viajar até o Rio de Janeiro, onde disseram ter interesse em abrir uma clínica para pesquisas sobre o uso do MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina) em pacientes psicológicos. A dupla prometia até a realização de uma grande campanha de marketing para driblar os eventuais aspectos legais relacionados ao uso da substância, que havia sido proibida apenas cinco anos antes nos Estados Unidos, e ainda era fartamente consumida na Europa – onde as boates que a vendiam distinguiam-se por expor entre as bebidas do balcão as letras em néon XTC (uma corruptela em inglês para ecstasy).

No dia 30 de junho de 1989, segundo o relato de Sasha, ele e sua mulher, Ann, desembarcaram no Rio de Janeiro. Logo foram levados para a “casa de verão” de Giorgio Taros. “Um enclave de ricos, com casas e prédios sendo erguidos a cada quarteirão e aonde se chega após cruzar uma série de pontes”. Aparentemente, referia-se à Barra da Tijuca e sua efervescência imobiliária naquele período. Em sua festa de boas-vindas foi introduzido a um certo “Doutor Roberto”, descrito como “um senhor alto, delgado, muito inteligente, que nos foi apresentado como um dos melhores em sua profissão no Brasil”. Foi o “Doutor Roberto” quem selecionou os 35 participantes do evento, talvez a primeira experiência de terapia coletiva com MDMA no Brasil que tenha tido algum tipo de registro.

Houve uma primeira distribuição da substância: exatos 75 miligramas para cada um. Durante meia hora todos ficaram em silêncio, em estado de meditação. Em seguida, nova rodada. Dessa vez, em doses de 50 miligramas. E foi aí que bateu. Sasha conta que parte dos convidados saiu flanando pelos jardins da casa, outros continuaram meditando, até todos se reunirem novamente. “A casa se tornou uma Babel, com pessoas falando animadamente em quatro idiomas diferentes”, descreveu.

Os dias seguintes foram pura alegria. Sasha relata em seu livro que amou a Churrascaria Porcão; se emocionou “ao ver nos céus, pela primeira vez, o Cruzeiro do Sul”; comprou na Feira Hippie de Ipanema maricas de gnominho feitas de durepox, espécie de cachimbo usado para fumar maconha; e, para ciúmes de Ann, ficou um tanto ouriçado demais quando foi apresentado ao show “Golden Brasil”, na extinta casa noturna Scala, no Leblon. Entendedores, entenderão.

Ainda seguindo a descrição do livro, seu primeiro dia de trabalho formal foi em 3  de julho, quando palestrou sobre suas pesquisas para uma plateia de médicos e psiquiatras na cobertura do Hotel Miramar, em Copacabana. Hoje administrado pela rede Windsor, o hotel não guarda mais registros daquela época. Mas foi durante esse evento que a história ganha ares jamesbondianos e ele teria sido apresentado ao “Doutor Sol”, um químico brasileiro que seria o chefe da equipe que participaria de um workshop marcado para o dia seguinte na clínica do tal “Doutor Roberto”.

Para chegar lá, Schulgin relata que precisou atravessar uma extensa ponte, ligando duas cidades – o que sugere um passeio até Niterói. A clínica do “Doutor Roberto” seria um prédio de três andares, de mármore branco na fachada e sofás de couro negro na recepção. Lá aguardaram o “Doutor Sol” e sua equipe, e em seguida sintetizaram uma farta quantidade da substância. Os bons resultados da experiência foram comemorados no dia seguinte (5/7) durante a festa de aniversário do “Doutor Roberto”.

Nas conclusões de seu relato, Shulgin diz que o grupo de químicos foi rapidamente desmembrado. Ele lamentou que a tal clínica insinuada pelos brasileiros nunca saiu do papel e admite suas suspeitas de que tenha sido usado por um grupo que estava menos interessado nas capacidades terapêuticas do ecstasy do que em suas potencialidades financeiras. No fim das contas, resta a dúvida: haveria algum fundo de verdade no relato de Alexander Shulgin? Ou seria algo como o que aconteceu com o cartunista belga Hergé, que escreveu seu “Tintim na África”, sem jamais ter pisado no continente – e acabou se metendo numa encrenca danada. Sasha morreu em 2014, tendo descoberto mais de 230 medicamentos obtidos a partir de componentes psicoativos. “Tihkal” está esgotado na maioria dos países, mas ainda é possível encontrá-lo facilmente em sua versão em alemão para o kindle por R$ 50.

ABRINDO AS PORTAS DA PERCEPÇÃO

A extrema-direita brasileira, que já é só choro e ranger de dentes com relação à perspectiva de legalização da maconha para fins medicinais, mal sabe o que já tem por aí. Cada vez mais livros, documentários científicos e até séries no streaming como a instigante “Como Mudar a sua Mente”, baseada no livro homônimo do jornalista estado-unidense Michael Pollan tratam do uso de psicodélicos no campo da saúde. Em sua obra, o autor celebra uma espécie de “Renascimento” da popularização dos estudos envolvendo substâncias como o LSD, Ecstasy, Mescalina ou Psilocibina, entre outras, e afirma que elas são capazes de melhorar a vida de pessoas com distúrbios do campo psicológico _ e até naqueles que se julgam saudáveis.

No livro e na série, Pollan e outros especialistas garantem que as terapias psicodélicas reúnem expressivo potencial para revolucionar os cuidados com saúde mental, em especial, em diagnósticos de stress pós-traumático, depressão, transtorno obsessivo compulsivo ou alcoolismo. E tanto isso não é novidade que já na década de 1930, Bill Wilson, cofundador dos Alcoólicos Anônimos, admitiu que usou psicodélicos para ficar sóbrio. Ele usou extratos de uma planta chamada belladonna para atingir seu objetivo. Naturalmente, ninguém está sugerindo distribuir indiscriminadamente pílulas psicodélicas entre a população assim como se espalha confete num baile de carnaval. Nestes tratamentos, as sessões são feitas em consultórios de clínicas especializadas e com total acompanhamento médico. Algumas substâncias, por exemplo, são aplicadas em micro doses, muitas com um décimo daquilo que é considerado um “potencial recreativo”.

Fato é que a mais de 100 anos diferentes laboratórios farmacêuticos sintetizaram e/ou estudaram as mais variadas substâncias psicodélicas. O MDMA foi patenteado pela gigante Merck em 1912 e simplesmente deixado de lado até Alexander Shulgin redescobri-lo no início dos anos 1960. E a mais popular dessas drogas, o LSD, foi sintetizada em 1943 pelo químico suíço Albert Hoffman, que trabalhava para a Sandóz (outro titã do setor) pesquisando um remédio para mulheres em situação de pós-parto. Só que um belo dia chegaram os anos 1960, quando essas substâncias deixaram os laboratórios para influenciar radicalmente na contracultura que se apresentava à ocasião. E o responsável por isso tem nome e sobrenome: Timothy Leary.

Professor de psicologia por 15 anos na prestigiada Universidade Harvard, Leary desenvolveu estudos sobre o LSD entre 1960 e 1962, quando foi expulso da instituição. O episódio causou controvérsia, e segundo artigo da revista The Nation, aquela foi a primeira vez em que a sociedade americana tomou algum conhecimento sobre o que eram os psicodélicos. Profeta para alguns, demônio para outros, se meteu em inúmeras confusões e foi preso 36 vezes por sua militância. Em 1969 foi candidato nas eleições para governador da Califórnia contra um certo Ronald Reagan. Ele pediu então a um amigo chamado John Lennon que este compusesse seu jingle de campanha. O resultado foi “Come Together”, que Leary (acredite) detestou por enxergar uma gozação de cunho sexual do colega no verso “over me”. Eram tempos diferentes. A canção acabou abrindo o excepcional álbum Abbey Road.

“Todos já ouvimos coisas absolutamente assustadoras sobre os psicodélicos. Que eles embaralham seus cromossomos, fazem você enlouquecer, pular de prédios, tudo muito assustador”, diz Michael Pollan em “Como mudar sua mente”: “resolvi então pesquisar os reais efeitos dessas substâncias e fiquei muito impressionado com o que descobri. Se para alguns a mescalina, o LSD ou o MDMA são “drogas do mal”, a verdade é exatamente o oposto. Muitas pessoas podem se beneficiar do uso correto dessas substâncias”. Com a palavra agora, a ciência.