CULTURA: LENDAS DA ABADIA DE MONTSERRAT

O Mosteiro de São Bento é o mais antigo do Rio de Janeiro

Jan Theophilo

Maledicentes de plantão, certamente estrangeiros, costumam dizer que carioca, daqueles da gema, nunca pisaram no Cristo Redentor ou no Pão de Açúcar. Há muito de verdade nesse axioma. Mas o mais grave é que tanto gringos, cariocas ou simpatizantes não costumam dar muita bola para o legado histórico de uma cidade que foi, no século XIX, capital de um dos maiores impérios do mundo: o português, ó gajo.  E esse desdém se reflete no pouco conhecimento de verdadeiros tesouros coloniais do Rio de Janeiro. Um dos mais gritantes deles se refere à Abadia de Nossa Senhora de Montserrat, mais conhecida como Mosteiro de São Bento, que reúne uma coleção imensa de curiosidades que vão além da esplêndida arquitetura colonial e das missas em canto gregoriano, todo domingo, as 9h30.

“Com o passar dos anos, o folclore da cidade criou muitas lendas, como passagens secretas, catacumbas, mas nem tudo é verdade”, despista Dom Mauro Maia Fragoso, diretor de patrimônio do mosteiro e consultor do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC). Mas basta conseguir uma autorização para avançar além do altar em direção ao claustro para, logo de cara, se deparar com uma das primeiras maravilhas “secretas” do São Bento. uma imagem de Jesus Cristo de mais de 3 metros de altura é a única decoração da sacristia onde os monges guardam seus aparatos de missa. É nada mais, nada menos, que o primeiro Jesus Cristo pintado nas Américas. Uma verdadeira obra-prima, de 1690, considerada o canto do cisne de frei Ricardo do Pilar, que concluiu a obra poucos meses antes de morrer. Ao expor as cicatrizes de Cristo, a gravura lembra a importância da devoção em nome de um bem comum.

Passada a sacristia, chega-se ao claustro, onde estão enterrados os principais abades do mosteiro e reitores do colégio — para quem usou uniforme azul e cinza nos últimos 50 anos, é lá que repousa o inesquecível reitor Dom Lourenço de Almeida Prado, o amável Dom Tadeu e um personagem curioso da história carioca: dom Antônio do Desterro Malheiros, a quem é atribuída a primeira escritura do que viria a ser a ensolarada Zona Sul carioca.

Segundo registros oficiais, dom Antônio vinha de Angola para assumir a diocese do Rio quando seu navio enfrentou uma forte tempestade ao tentar entrar na Baía de Guanabara. Em meio a borrasca, o religioso avistou a igrejinha construída por pescadores no Posto 6 de Copacabana, e prometeu para Nossa Senhora que caso se salvasse, faria melhorias na construção. Salvo do desastre eminente, quando assumiu a arquidiocese, cumpriu a promessa. A partir deste momento e com a intervenção financeira, a igreja e os terrenos adjacentes passaram a pertencer a Mitra Arquidiocesana. E, assim, nascia oficialmente o bairro que hoje conhecemos como Copacabana. “A primeira publicação impressa no Brasil foi justamente o relato do feito dele, na década de 1740”, conta dom Mauro.

Um lance de escada à frente, chega-se à Capela das Relíquias, um pequeno aposento que reúne mais de 100 relicários, ou seja, algo que se destine a guardar imagens de santos, mesmo as menores falanges ou ossos de personalidades de grande relevância para a Igreja Católica ou mesmo alguns santificados — em especial para a Ordem dos Beneditinos. “Já teve jornalista que veio aqui, não entendeu nada e descreveu o espaço como a “capela dos relógios”, lembra dom Mauro aos risos referindo-se às douradas molduras de cada um dos relicários. “Aqui não tem colorjet, todas as relíquias são decoradas com folhas de ouro”, brinca dom Mauro.

Um lance de escadas depois chega-se a mais um dos tesouros — a Biblioteca Central do Mosteiro. Era lá que um certo José Bonifácio de Andrada e Silva, que passou a História como o “Patriarca da Independência”, se recolhia para seus estudos. “Na verdade, nossos itens mais preciosos, como tratados de teologia dos séculos XIII e XIV, estão hoje guardados no cofre da Arquidiocese”, despista novamente o bibliotecário dom João Evangelista. Mesmo assim a biblioteca guarda preciosidades. Entre elas, a talvez menor bíblia do mundo, de apenas meio centímetro de espessura.  “Ela foi comprada em Berlim, logo após a Segunda Guerra, por um frade que depois a trouxe para o Rio de Janeiro”, conta dom João.

Além da minúscula bíblia, a biblioteca guarda raridades como as primeiras edições dos escritos do Padre Antônio Vieira e um Atlas de 1693, no qual é possível ver com clareza as regiões do Brasil e até um ritual indígena de canibalismo. Muitos itens estão disponíveis para os pesquisadores e/ou curiosos, como uma biografia de Lorenzo de Medici, o “Magnífico”, personagem fundamental do Renascimento Italiano. “Era um dos livros de cabeceira de Dom João VI quando este viveu no Rio”, conta dom João. Além deste, há várias antífonas, partituras de canto gregoriano decoradas por iluminaras que tangenciam o estado da arte.

O Mosteiro de São Bento é o mais antigo do Rio de Janeiro, fundado em 1590 em pleno centro da cidade por monges vindos da Bahia. Pelo hábito dos beneditinos de se manterem em clausura, o local é chamado de mosteiro em vez de convento. Os primeiros monges vieram de Portugal e eram oito no total. Mas dois dos que estavam na comitiva eram brasileiros: frei João Porcalho e frei João Ferraz, que nasceram em Ilhéus, na Bahia.  “Nossa comunidade vem se mantendo, mas tem decrescido. Quando entrei para o seminário, nos anos 90, eram 50 monges. Hoje, se for contar, não chegamos a 20. E isto porque um está em estado vegetativo há mais de 12 anos, e outros três ou quatro não saem da enfermaria. Então, de fato, é uma situação”, lamenta dom Marcos.

Outra das maiores riquezas da igreja do mosteiro é seu órgão, construído originalmente em 1773 e que teve seu exterior revestido em ouro em 1798. “Antes você tinha monges organeiros, aqueles que cuidam exclusivamente da excelência do instrumento, e monge organistas, aqueles que efetivamente manejam os instrumentos durante as missas”, conta o mestre-organeiro Joaquim Marcel, que desde 1976 se dedica exclusivamente à manutenção do órgão da igreja do São Bento. “Hoje só conheço um organeiro no Brasil, no Rio Grande do Sul. Até mesmo na Europa esta atividade está em declínio. A maioria das grandes fabricantes já fechou as portas. Hoje, acho que só a Walker, que reformou nosso órgão em 1976, continua em atividade”, lamenta. “Existe até uma história curiosa. Em 1777, um organeiro da Walker veio ao Rio restaurar nosso órgão. Mas, no caminho, tempestades fizeram com que ele perdesse vários dos tubos que seriam trocados. A solução temporária foi trocá-los por tubos de bambu”, conta Joaquim. A boa e velha abadia de Montserrat é uma caudalosa fonte de histórias e estórias sobre o Rio de Janeiro e as intercorrências que a Igreja Católica atravessou nos últimos séculos. Cabe hoje e sempre aos curiosos e pesquisadores mergulharem nessas águas.

APENAS O MELHOR COLÉGIO DO BRASIL

Sem sombra de dúvida uma das maiores contribuições do Mosteiro de São Bento a muy leal e honrada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, é o colégio que leva seu nome. Fundado em 1858, foi durante muitas e muitas décadas o colégio de excelência da elite carioca — antes do advento das escolas bilíngues internacionais. Ele foi considerado tantas vezes o melhor colégio do Brasil que os jornais paulistanos, por pura birra, mudaram a publicação anual do ranking das melhores escolas brasileiras para uma classificação que só representava as escolas daquela estranha cidade ao sul do Brasil. Funcionando em regime semi-interno, ele é o último colégio do país exclusivo para meninos.

Uma regra famosa nas antigas redações de jornais é evitar o chamado “name dropping”, um recurso no qual, quando o jornalista não tem muito o que dizer, preenche seu texto com uma enxurrada de nomes importantes para, supostamente, dar maior relevância à reportagem. Mas o caso do São Bento é tão fabuloso que é impossível fugir desta prática. Passaram pelos bancos do colégio, entre muitos outros, nomes como o de Pixinguinha, Noel Rosa, Villa Lobos, Lamartine Babo, Paulo Francis, Benjamin Constant, o craque Heleno de Freitas e entre alguns ilustres mais contemporâneos, os atores Guilherme Fontes e Hélio de La Peña, e os jornalistas José Trajano e Márcio Freitas.

Analista do Banco Central, o economista Emir Farias estudou no São Bento entre os anos de 1970 e 1980, guarda calorosas recordações dos tempos em que vestiu o tradicional uniforme azul e cinza, mas diz que jamais cogitou pôr seus dois filhos lá. “Tem uma questão de disciplina que acho muito rigorosa para os dias de hoje. Vivíamos situações surreais. Acho que no fim dos anos 1970 o colégio instalou uma academia de musculação como não havia igual na cidade. Só que o único praticante era um monge chamado Dom Plácido, que além de puxar ferro, gostava de jogar bola conosco. E era muito engraçado vê-lo dando arrancadas, segurando a batina acima dos joelhos no ‘Campão’”. O nome se refere a um terreno de terra batida onde, durante décadas, parte da jovem elite carioca praticou o rude esporte bretão. Hoje, o velho “Campão” está padrão FIFA, com grama artificial e tudo mais.

Um passeio pelos pátios do colégio entre os intervalos das aulas mostra bem a excelência do ensino. Há aqueles que aproveitam para jogar bola ou trocar figurinhas, mas não é raro encontrar alunos disputando quem fez mais pontos numa prova de física ou química, um astral meio Harvard guanabarino. O sommelier Juarez Fernandes lembra de outro episódio de seus tempos de estudante. “As salas de aulas tinham um sistema de alto-falantes. E um dia, dom Lourenço (reitor do colégio por mais de 50 anos), anunciou com voz solene: ‘Queridos alunos, nosso Santo Padre, Paulo VI, acaba de falecer. Todos estão convocados para uma missa na igreja e guardaremos três dias de luto sem aulas’. O pessoal explodiu em comemoração pelo feriado inesperado”, lembra Juarez. “Um mês depois Dom Lourenço veio com o mesmo comunicado, informando a morte de João Paulo I, e foi mais uma vez uma festa entre os alunos. Meses depois do início do pontificado de João Paulo II, você encontrava gente reclamando no pátio: essa droga de papa não serve nem para morrer!”