COMPORTAMENTO: OS NÔMADES DIGITAIS INVADEM O RIO

Cropped view of person hands typing on laptop computer

Luisa Prochnik

Quando humanos viviam apenas da caça e da coleta, e não da agricultura, mudavam-se frequentemente, em busca de lugares com abundância de comida. Com o passar do tempo, tudo ficou diferente. Pessoas criaram laços com a terra, nasceram cidades, nações, fábricas, escritórios, profissões. Passou mais tempo. Dá-se boas-vindas à internet, ao trabalho remoto e a um novo grupo de pessoas itinerantes, sem raízes: os nômades digitais (NDs).

Diferentemente dos nômades de antigamente, os NDs não buscam comida. A fome é de conhecimento e de uma vida com foco no lazer. Os nômades digitais misturam o conceito de férias e trabalho, sempre acompanhados de seus laptops, mas sem perder um bom programa na cidade onde vivem. Sendo esta cidade o Rio de Janeiro, a maior parte dos NDs que ouvimos cita a combinação entre natureza e meio urbano como o motivo de estarem por aqui. Acordar, dar um mergulho na praia, ou uma caminhada na Floresta da Tijuca, ou uma corrida na orla da Lagoa. E, sem perder muito tempo, já se posicionar em frente ao computador para trabalhar e, claro, programar a boa de logo mais.

O município do Rio de Janeiro, por meio da Riotur, lançou o programa Rio Nômades Digitais, fazendo da cidade o primeiro polo atrativo deste tipo de conceito de vida da América do Sul. Em seguida, a atividade foi regulamentada, com visto especial para os interessados em morar no Rio e exercerem suas profissões de forma remota para empresas de outros países. Mas boa parte desses profissionais opta por visto de turista, de duração de três meses, por serem tão fluidos que não imaginam ficar muito tempo em lugar algum. Ou escolhem o visto de estudante, dedicando-se a aprender, em muitos casos, a língua portuguesa, enquanto trabalham para suas empresas e curtem a vida em solo carioca.

Em busca de nômades digitais, de origens e propostas diversas, chega-se a um ponto de encontro. Um café de estilo australiano. Ouve-se uma música mais alta que um som ambiente, porém mais baixa que em uma balada. Para se sentar, mesas mais tradicionais, sofás mais despojados, paredes coloridas e todos, ou quase todos, acompanhados de notebooks. A maior parte dos clientes não é formada por brasileiros. Clientes? O dono do ‘Aussie Coffee’, Daniel Hobbs, um australiano que mora no Brasil desde 2009, chama todos ali presentes de família.

Daniel não é um nômade digital. Ele veio morar no Brasil em 2009 e exercer sua profissão em solo nacional. Engenheiro e apaixonado pelo Rio, abriu o seu café em 2017. Daniel cita a complexidade e diversidade cultural brasileira como um grande atrativo para ele querer se tornar cidadão permanente. Além de valorizar o seu estilo de vida, aproveitando as belezas naturais do Rio, morando perto do trabalho – o que na Austrália é incomum, já que a estrutura das cidades é diferente, com pessoas morando nos subúrbios e tendo que se deslocar por ao menos uma hora até chegar ao escritório – o que lhe permite, segundo o próprio, ter uma qualidade de vida melhor que Jeff Bezos, fundador e dono da Amazon. Afirmação seguida de uma risada. Ele nos conta que os frequentadores do café são principalmente norte-americanos, franceses, alemães, holandeses e australianos e, basicamente, estão aqui para trabalhar e se divertir, não necessariamente nesta ordem.

Daniel me apresenta um búlgaro chamado Zahari, 35 anos. Encantado pelo Rio de Janeiro que via pela TV, visitou algumas vezes a cidade antes de se mudar para cá, em setembro do ano passado. Ele estuda português, trabalha com marketing digital – profissão comum entre os nômades do século XXI – e surfa no Arpoador. Não tem planos de ir embora, no momento, mas não disse também que pretende ficar. Ele apenas “está”. Hoje. Zahari aprendeu português rapidamente, inclusive as gírias, mas opta por falar em inglês na entrevista. Ele observa que cariocas de diferentes áreas da cidade falam diferentes ‘dialetos’. E ele curte todos os tipos, hospedando-se na Zona Sul, mas frequentando o Centro para as baladas, regadas a funk, hip hop e dance music. Também acha graça que os cariocas costumam andar em bando, enquanto na Europa é comum sair sozinho, inclusive para clubes noturnos. E que apesar de ser extremamente fácil, segundo palavras do próprio Zahari, conhecer pessoas novas, com beijo e tudo, criar vínculo não é tão simples.

Outra frequentadora do espaço está sentada no sofá acompanhada de um café com leite e um sorriso de sexta-feira. Karalea, 31 anos, veio ao Rio pela primeira vez há dez anos, como estudante universitária, e passou seis meses na cidade. Ela nasceu na Philadelphia, EUA, mas, hoje, tanto sua cidade natal quanto o Rio de Janeiro são considerados pela profissional de marketing digital como suas casas.

– Eu passo pelo menos três meses em cada uma dessas cidades. O resto do ano viajo para outros lugares.

Atualmente, trabalha 25 horas por semana, de forma totalmente remota, e curte aproveitar o seu tempo de folga com muita atividade física ao ar livre e noites de reggaeton, funk e pop. Ela confirma que os cariocas são amigáveis, abertos a um bom papo e muito relacionáveis, inclusive nas trocas de beijos. De escola e família católicas, principalmente no Carnaval ela diz ter ficado impressionada como os beijos casuais são comuns por aqui. Mas criar vínculo, mesmo de amizade, já é bem mais difícil. Ela tem muitas pessoas queridas que moram no Rio, mas a maioria não é carioca, pelo menos não ‘carioca da gema’, que nasceu e sempre viveu por aqui. Principalmente os mais ricos, segundo ela. Esses são os mais fechados a novas amizades. Em relação à língua, Karalea é fluente no português, mas cita alguns sons como desafiadores aos estrangeiros, como o “ão”, o “erre” mais arrastado, como o “rrã”. Na rotina, teve que se adaptar a uma forma mais analógica de cuidar do seu próprio apartamento. Nos EUA, tudo vai para a máquina de lavar e secar e nunca tinha visto um lixo de prédio como no Rio, onde se abre um vão para jogar os sacos. Ao ser perguntada sobre a mania de o carioca estar sempre atrasado, ela ri e diz que essa parte é fácil: ela também nunca chega no horário marcado.

Rahat chegou ao Rio poucos dias antes do Carnaval deste ano, mas já está bem adaptado aos atrasos típicos dos cariocas – com a diferença de que se preocupa em avisar. Rahat me manda mensagem avisando da demora de dez minutos e respondo que esse tempo, para cariocas, nem é considerado atraso. Depois, durante a entrevista, ele elogia minha pontualidade, quando confesso que, se não estivesse a trabalho, entraria no banho na hora que deveria sair de casa. O papo com Rahat flui. Ele nasceu em Bangladesh, mas com um ano, já que a mãe trabalhava na ONU, se mudou e morou em diversos países pela Ásia até completar 15 e se mudar com a família para os EUA.

– Eu tenho sido um estrangeiro a minha vida inteira. Não conheço o sentimento de ‘me sentir em casa’. O que me faz me sentir em casa são as pessoas ao meu lado. Seja família ou seja através de amigos criados por onde eu passo. Por outro lado, quando de fato começo a me sentir em casa, sinto que preciso viajar, ou nunca mais vou embora.

Normalmente, Rahat fica no máximo um mês em cada cidade em que vive. Com o Rio de Janeiro, a ideia era exatamente essa: curtir o carnaval, ficar mais umas duas semanas e partir para Buenos Aires, na Argentina, só que ele ficou bem mais. Praias lindas, programas ótimos, mas Rahat acredita serem as pessoas as principais responsáveis por ter permanecido aqui mais tempo que o previsto. Amigáveis, calorosas, com papo fluido e mais natural que em outros países. Além disso, ele ficou muito bem impressionado com a estrutura urbana do Rio e de São Paulo ao comparar com países latino-americanos e mesmo com diversas cidades dos EUA.

– Em geral, é muito fácil relaxar ao lado dos cariocas, eles são muito divertidos, muito fáceis de conversa, sempre rindo. Dispostos sempre a fazer os programas que são sugeridos. Sempre otimistas. Para mim, normalmente é fácil fazer amigos, mas aqui é tudo ainda mais natural. O meu conflito é que se eu não vou ficar, não deveria fazer amigos locais. Porque, quando tiver que partir, será mais difícil. Então, ao mesmo tempo que para mim é fácil fazer amigos, eu tendo a ficar mais com estrangeiros porque será menos doloroso partir.

Tudo no Rio de Janeiro, pelo visto, saiu um pouco fora do planejado para Rahat. Ele namorou uma carioca e fala dela com carinho, apesar de o relacionamento ter terminado com a aproximação do fim do seu visto de turista. Rahat precisa viajar, conhecer o mundo é uma prioridade. Mas leva do Rio algumas lembranças peculiares, como a obsessão dos cariocas com limpeza e higiene pessoal. Não basta tomar dois banhos por dia, a namorada tomava três. Escovar os dentes repetidas vezes e levar fio dental ao restaurante. Além disso, assim como outros NDs, Rahat observa que beijar, para o brasileiro, tem outro significado. Nos EUA, o beijo já indica uma sintonia. Por aqui, não beijar logo é prova de que deu errado. Rahat descobriu isso ao beijar apenas no fim de um primeiro encontro, quando a pessoa revelou que achava que ele não tinha gostado dela, para seu espanto.

Durante a conversa, Rahat também se mostra impressionado como a língua portuguesa, no Brasil, além dos fonemas diferentes, já citados por outros estrangeiros nesta reportagem, é dependente do contexto, com uma mesma palavra podendo ser usada para múltiplos significados. Talvez por isso, filosofa Rahat, seja tão comum brasileiros optarem por se comunicar por áudio em vez de texto nas mensagens de celular. O que para ele e os amigos estrangeiros é muito curioso:

– Se mandam tantos áudios, não seria melhor ligar logo?

O mundo digital dos nômades contemporâneos não está apenas no trabalho, mas também no lazer. Os encontros presenciais entre eles muito frequentes, organizam-se através de uma grande comunidade de Whatsapp. A norte-americana Janeesa Hollingshead é uma das administradoras e grande agitadora social e cultural entre os nômades digitais, sempre propondo programas. Mais que isso, Janeesa contribui para que todos, sejam os turistas casuais ou aqueles que pretendem morar temporariamente por aqui, tenham uma vida mais confortável no Rio de Janeiro, com guias, sugestões de programas, documentos que auxiliam nas burocracias do dia-a-dia e grupos voltados para temas diversos, desde um geralzão até outros, como um focado em trilhas, ou na gastronomia local e também em encontros para jogos de tabuleiro. Janeesa trabalha remotamente para uma empresa norte-americana de recrutamento, tem um espaço em coworking e um propósito: não quer apenas aproveitar o que a cultura local tem de bom, mas contribuir para construir uma cidade melhor. Ela dá aulas de inglês numa comunidade e está sempre atenta para ajudar os NDs em todas as situações. E, claro, se divertir muito com eles pela cidade, sendo sua paixão por feiras ao ar livre, como a que acontece todos os domingos na Glória.

– Cidade linda, muitas opções de caminhada, Floresta da Tijuca. Tem praias, ilhas, tudo dentro da cidade. Tem tudo que se gosta aqui. As pessoas são amigáveis, divertidas, animadas, gostam de encontrar. Eu ainda estou aprendendo português e todos são muito gentis comigo.

Mas a diferença de língua causa algumas confusões de interpretação. Muitas engraçadas, como ao não conseguir falar o “ão” ao pedir um pão para a avó do ex-namorado, acabou verbalizando uma maneira informal de se chamar o órgão sexual masculino, o que causou espanto na senhora e uma risada do seu companheiro. Em um restaurante, ao compreender que o “ão”, sempre ele, significa algo grande, pediu um “caixão” em vez de uma “caixa grande” com determinada comida. Mais motivo de risada dos amigos que, segundo Janeessa se divertem em ensinar para ela gírias e palavrões. Já a diferença cultural que mais chama a atenção da norte-americana está nos brasileiros serem muito próximos a suas famílias. Quando nos EUA, jovens costumam sair de casa, no Rio os familiares tendem a caminhar juntos e a morar sob o mesmo teto por muito mais tempo.

Esta também é a visão de Maria Victoria, Vicky, uma argentina que já morou na França e se estabeleceu com sua família em Londres. O interesse pelo Brasil veio através da grande comunidade de brasileiros que mora na Inglaterra. Inclusive, um ex-namorado, com quem conheceu mais sobre música e aprendeu a falar o português. Atualmente, ela namora um carioca e mora com ele e a família num apartamento, no bairro do Flamengo. Vicky acha o máximo como existe entre os cariocas uma sensação maior de relaxamento diante da vida, e não o estilo estressante que, segundo ela, faz parte da rotina dos londrinos. Vicky trabalha com marketing digital em tempo integral, e segue o horário de Londres. Diferentemente dos outros NDs entrevistados, Vicky está cansada, alega muito trabalho, e certa confusão momentânea: voltar ou não para Londres. Sente falta da família e dos amigos, mas, ao mesmo tempo, ao ir para a Inglaterra, sentirá falta do namorado e do estilo de vida no Rio de Janeiro.

– Eu nunca me sinto em casa, porque eu já viajei tanto, já morei em tantos países diferentes. Eu acho que pertenço a lugar algum. Se eu voltar a Londres agora, eu não acho que sentiria mais lá como meu lugar.

Dizem que, muitas vezes, para valorizar o que se tem, vale ouvir opiniões de terceiros: é o caso quando nômades digitais relatam suas experiências na cidade. De fato, ouvir o que esses estrangeiros pensam sobre a gente e sobre o lugar onde moramos contribui para se ter um outro olhar sobre o Rio de Janeiro. Não é sobre ignorar os problemas que existem, e são muitos, mas ao ouvir o quanto eles admiram nossa cidade, o quanto a exploram e a aproveitam e como conhecem lugares e programas dos mais diversos – muitos, inclusive, ignorados por quem vive aqui – faz qualquer morador sentir aquele orgulho de ser carioca.