COMPORTAMENTO: A BRUXA TÁ SOLTA EM NOVA IGUAÇU

O Tear das Feiticeiras funciona em uma simpática casa

Luisa Prochnik

Pés na grama formam uma roda, um círculo mágico. Mãos esticadas para frente recebem a energia da natureza, ao mesmo tempo em que a devolvem e compartilham com todos. Juntos, formam um só. No meio do círculo protetor, em frente a uma mesa com velas, símbolos e imagens, preparada para o evento, estão duas sacerdotisas. Vestidas de roxo, coordenam a sessão devocional à deusa Hekate, chamada de o rito de Seus Fogos Sagrados, celebrado sempre, e internacionalmente, na primeira lua cheia. Esse ritual acontece no jardim de uma casa simpática localizada no centro do município de Nova Iguaçu, estado do Rio de Janeiro, chamada de Tear das Feiticeiras, sendo elas Syrinx Sycorax, Bárbara, e Atiye Vivá, Danielle. As práticas tradicionais levam os visitantes, tanto os bruxos e bruxas experientes quanto participantes de primeira viagem, da Baixada Fluminense à Tessália, região grega conhecida por, antigamente, ter sido a moradia de mulheres feiticeiras poderosas, que cultuavam deusas como Hekate, vista como uma figura poderosa e protetora.

– Hekate é uma deusa que, na verdade, ainda não tem um consenso sobre de onde ela surgiu – inicia a explicação Atiye Vivá, co-fundadora do Tear, estudiosa do uso de ervas e enteógenos para magias.

– De tão antiga que ela é – adiciona Syrinx Sycorax, também co-fundadora do Tear e sacerdotisa da Tradição Mistérios de Tessália, em simbiose tão profunda com sua parceira que uma completa a outra em um diálogo afinado, em uma só voz.

– Mas, em algum momento, Hekate apareceu, vamos dizer assim, foi integrada ao panteão grego. Então, a gente diz que ela é uma deusa grega de muitos epítetos,  centenas. A senhora dos caminhos, deusa da vida, da morte, do renascimento, deusa das encruzilhadas, uma deusa que estava sempre nesse limiar entre a vida e a morte, que rege os partos, que cuida das crianças, protetora das mulheres – conclui Atiye Vivá.

O ritual continua.

Todas as  pessoas do círculo giram sincronicamente seus corpos para cada ponto cardeal, em um momento de saudação às deusas e às forças da natureza. O hino de Hekate é entoado e o tambor começa a tocar. Todos fecham os olhos enquanto, no ritmo das batidas, a voz da sacerdotisa Atiye guia uma ida imaginária a uma caverna, que se  torna  cada vez mais fechada e desafiadora. Ela descreve uma escada, por onde todos devem descer. Ao fim, encontra-se uma fogueira, representando o fogo da tocha de Hekate.

– É desse fogo, dessa tocha, que vem a fagulha divina, o fogo primordial, que deu a vida a todo o universo. É com esse fogo que ela ilumina os nossos caminhos no dia a dia. É com esse fogo que ela bane o mal e nos purifica. É com esse fogo que ela nos dá vitalidade, a força do ativo, a força do fazer a força do renascimento da transformação – Syrinx Sycorax relaciona a experiência ao sagrado.

– Na Grécia, ela se transformou nessa deusa da magia, do oculto, do submundo. Mas ela é muito mais do que isso. Em determinado momento, na antiguidade, ela foi a grande mãe, que é esse arquétipo dessa deusa central. Muitas pessoas não conseguem ver ela dessa forma por conta desse aspecto sombrio, que é o mais conhecido dela, ligado à feitiçaria. Mas, para a gente, ela é esse grande útero primordial, que a gente entende que criou tudo e que, no final, nós também retornaremos a ele – enfatiza Atiye Vivá,  que dá sequência ao ritual, narrando o  caminho que deve continuar a ser percorrido.

Todos seguem em sintonia, de olhos  fechados, elencando para si mesmos do que  devem se despir, o que não faz bem seguir carregando em sua jornada. Já de olhos abertos, dois pequenos caldeirões com fogo dentro aguardam o ex-círculo, agora transformado em fila.

O primeiro caldeirão, do banimento, onde, após mentalizar com força do que se quer livrar, joga-se tudo no fogo, ardendo em chamas reais. O segundo caldeirão recarrega a energia, já  que, simbolicamente,  o fogo dentro dele ocupa o espaço vazio deixado por tudo que ficou para trás, e, assim, permite reinícios.

Bem-vindos ao

Tear das Feiticeiras

Mal é possível observar os detalhes do templo à noite, à luz de velas. Mas, de dia, revela-se uma casa verde, com todas as fases da lua representadas sobre a porta de entrada. Dentro, é preenchida por altares, homenagens a deuses e deusas, quadros, estantes repletas de livros sobre bruxaria, potes e mais potes de ervas. Os  rituais, apesar de serem, muitas vezes, realizados à noite, encontram  também na energia do sol uma fonte potente de conexão de bruxos e bruxas à mãe natureza.

– A gente tinha essa ideia de ter um espaço, mas a gente não se conhecia – conta Syrinx que, assim como Atiye, nasceu em Nova Iguaçu, e  despertou para a bruxaria na adolescência, por meio de revistas e livros em era pré-internet. Mas ambas só se  conheceram mesmo adultas, momento em que a sacerdotisa se emociona ao lembrar.

– São muitas coisas em comum, né? A questão de como a gente entendia essa espiritualidade,  os mesmos deuses que nós cultuamos – concorda Atiye Vivá.

O Tear  das Feiticeiras completa três anos em 2025 e, todo mês, homenageia uma deusa, com devoção principal à deusa Hekate, além de quatro deuses selecionados entre vários: Chronos, Hélios, Dionísio e Apolo. A presença masculina, dos bruxos ou apenas interessados, é bem-vinda.

– Não existe uma bruxaria, eram práticas que estavam disseminadas pela Europa inteira por parte da Ásia. Não existe uma religião antiga, isso estava pulverizado pelos povos, pelas culturas. Então, cada cultura vai ter a sua deusa principal. Mas o que tem em comum: a figura do feminino central. E existe a sua contraparte, que é o masculino. Ah, ele está num patamar menor? Não. Mas, geralmente, nas religiões patriarcais, a gente fala que Deus criou tudo. Mas, para a gente, é a deusa – define  Atiye  Vivá.

– A bruxaria é você ter consciência do seu poder e de você manipular as energias ao seu redor para que aquelas energias façam o seu desejo. Então, a mulher que tem o conhecimento, a mulher que tem a sabedoria, ela incomoda. A mulher que não se submete, ela incomoda. E a bruxa é essa figura, né? – conta Syrinx, que busca desenvolver em  suas pesquisas relação entre mulheres, bruxas e política 

– Na Grécia antiga, as mulheres que manuseavam as ervas já eram marginalizadas. Era crime. Elas sabiam como abortar, sabiam como curar, mas também sabiam como matar. Então, a mulher que tem o conhecimento, ela incomoda.

– O estudo do oculto sempre existiu, mas em determinado momento ali da história a mulher se tornou a bruxa, essa personagem maléfica. E o mago, o homem que estuda o oculto, ele é o mago. Ele é um sábio, né? Ele é aquele homem que sabe todos os  segredos – questiona Atiye Vivá em relação às contradições de como são definidos sábios quando são mulheres e quando são homens.

Casa Adriana:

apoio às mulheres

A proposta do Tear  das Feiticeiras é  ter as portas abertas a todos, menos quando há os cursos pagos e rituais apenas para os  já  iniciados. Mas o calendário é feito cuidadosamente e,  na  maior parte, gratuitamente, para que as pessoas venham quando quiserem, experimentem, voltem e permaneçam se quiserem e, assim, a bruxaria seja desmistificada como algo atrelado a forças do mal.

– Prosperidade, saúde, abertura de caminho, finalização de ciclo, porque são esses temas que as pessoas procuram mais. E, aí, a gente faz esses rituais abertos, totalmente gratuitos – conta Syrinx Sycorax.

Mas não é apenas o lado espiritual que recebe cuidados no templo, espaço entendido e concebido pelas suas fundadoras também como ferramenta de transformação  do  entorno, uma comunidade em boa parte carente, na Baixada Fluminense. E, foi assim que, além do Tear, mas no mesmo lugar, surge a Casa  Adriana, que nasce com outro nome por medo de que o preconceito em relação à bruxaria afastasse mulheres que precisam de ajuda.

– Tudo que a gente pode fazer, a gente vai fazendo espiritualmente e materialmente também. Porque a gente faz atendimento. Quando a gente sabe que a pessoa está passando por algum problema financeiro da invulnerabilidade, ajudamos. E quando você está em vulnerabilidade, você não tem cabeça para tratar a espiritualidade. Você está tentando sobreviver – reforça Atiye

O evento dedicado à  deusa Hekate pedia que os visitantes trouxessem leite em pó, todas as latas já com destino certo: uma avó que acabou herdando seis netos de filhos que sumiram pelo mundo.

Mulheres que passam por algum tipo de vulnerabilidade encontram na Casa Adriana e no Tear das Feiticeiras um ponto de apoio, material, espiritual e afetivo. Se ainda não é possível criar um registro e ofertar uma contribuição  regular para  essas mulheres, não falta vontade em ajudar da  forma que  for  possível.

– A gente já atendeu ali mulheres que já sofreram agressões físicas dos ex -parceiros. Mulheres que precisam buscar a prostituição para um sustento. Então, a gente ajuda com a cesta básica. A gente tem uma rede de apoio de advogados que dão orientações de forma totalmente gratuita – explica Syrix.

A conexão entre as duas sacerdotisas, entre Bárbara e Danielle, aparece no mundo da magia, da religião e devoção à deusa Hekate, nas bruxarias, nas práticas místicas e tradições Tessalônicas, mas, também, no que é o mais humano dos sentimentos: o afeto.