BURLE MARX AINDA VIVE NO RIO

O Sítio Roberto Burle Marx foi tombado em 1985

Lucila Soares

Roberto Burle Marx (1908-1994) fez cerca de 3.000 jardins em 20 países, descobriu mais de 50 espécies de plantas (das quais 31 levam seu nome) e criou, no Brasil do século XX, um paisagismo tropical, livre das amarras dos parques europeus. No Rio de Janeiro, onde passou a maior parte da vida, sua obra é parte integrante da paisagem. São de sua lavra projetos icônicos – como o Parque do Flamengo e o calçadão de Copacabana – e outros que são complementos fundamentais do que se fez de melhor na arquitetura moderna. Caso do MEC, recém-reinaugurado, ou do conjunto do Parque Guinle, em Laranjeiras. É, com toda justiça, considerado o mais importante paisagista brasileiro e um dos maiores do mundo.

Mas foi muito mais. Foi um pesquisador incansável da flora tropical, pioneiro na defesa da preservação ambiental, arquiteto, decorador, artista plástico, joalheiro. Esse talento multifacetado levou seu amigo Lucio Costa (1902-1998), arquiteto e urbanista responsável pelo Plano Piloto de Brasília, a defini-lo como “renascentista”:

“Roberto Burle Marx é um caso singular. Em plena era espacial e atômica, a pessoa dele e o seu mundo, conquanto falem linguagem contemporânea, confinam com a Renascença. A sua vida é permanente processo de pesquisa e criação. A obra do botânico, do jardineiro, do paisagista se alimenta da obra do artista plástico, do desenhista, do pintor, e vice-versa, num contínuo vaivém.” 

Tem mais: cenários e figurinos de teatro, estampas em tecidos que viravam toalhas de mesa ou cortes de fazenda, para usar a nomenclatura de sua geração, que dava de presente para amigas fazerem vestidos exclusivíssimos. Era um homem que amava, além da natureza, a boa mesa, a música, os amigos, que recebia regularmente para almoços e festas. E deixou para o Rio de Janeiro um sítio aberto ao público, que reúne todas essas definições em uma área de 405 mil metros quadrados em Barra de Guaratiba, na zona Oeste.

Chamado de gênio renascentista pelo arquiteto Lúcio Costa, Burle Marx espalhou jardins pelo mundo e fez de sua moradia em Pedra de Guartiba um museu a céu aberto – de sua própria obra e de dezenas de culturas brasileiras e estrangeiras.

O paisagista doou a propriedade ao Iphan

Perfeita tradução – O Sítio Roberto Burle Marx foi tombado em 1985, mesmo ano em que o paisagista doou a área ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e considerado Patrimônio Mundial da Unesco em 2021, exatamente por ser um fiel retrato de seu criador. Evidentemente, o valor científico da coleção botânica de 3.500 espécies de plantas tropicais e subtropicais foi o que mais pesou nos dois processos.  Mas ambos consideraram fundamental a preservação do conjunto, pelo grande valor cultural da arquitetura, das coleções de arte moderna, cuzquenha, pré-colombiana, sacra e popular brasileira, de conjuntos curiosos como o de conchas e o de cristais e do ambiente onde Burle Marx viveu por quase meio século.

Em 1949, a compra do sítio, então chamado Santo Antônio da Bica, foi feita por Burle Marx e seu irmão Guilherme Siegfried para abrigar a coleção botânica do paisagista, que já não cabia na área a ela destinada na chácara do Leme, onde a família morava. No novo espaço, seria possível também testar novas associações de plantas e cultivar mudas. A casa que já existia foi sucessivamente ampliada e reformada, e a capela de Santo Antônio da Bica, do século XVIII, foi restaurada e mantida aberta para a comunidade de Guaratiba. Outras seis construções foram acrescentadas ao conjunto, em um movimento descrito assim na documentação encaminhada à Unesco: “O Sítio Santo Antônio da Bica não responde, portanto, a um projeto paisagístico ou arquitetônico, mas a um projeto de vida.”

Esse projeto de vida está inteiro à disposição dos visitantes – foram pouco mais de 20 mil em 2024, sempre guiados por jovens monitores muito bem treinados e entusiasmados, a maioria egressa do Ciep Roberto Burle Marx, em Guaratiba. Durante cerca de 90 minutos, passeia-se pelos marcos da história desse personagem original. A primeira parada é no sombral Margaret Mee, que merece um parêntese. Sombral é um viveiro coberto por um ripado regulável, de forma a controlar a exposição das plantas à luz, algo essencial ao acompanhamento da adaptação de espécies exóticas transplantadas para o sítio. E a inglesa Margaret Mee (1909-1988) foi uma grande artista botânica que se especializou em retratar a flora amazônica, o que a aproximou de Burle Marx, tornando-os grandes amigos. No total, o sítio tem 12 mil metros quadrados de viveiros. São dois. O segundo é dedicado a Graziela Barroso, primeira mulher a fazer concurso como naturalista para o Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

O passeio prossegue por caminhos sinuosos, como são os jardins de Burle Marx. Vistos de cima, parecem quadros. Ele próprio comparava seu trabalho ao dos pintores, considerando o terreno natural como tela e os elementos da natureza como materiais para a composição plástica. Na escala humana, andar por eles permite descortinar ângulos e luzes diferentes de cada paisagem. O encanto com a natureza mistura-se a cenários cheios de histórias, que permitem viajar no tempo e imaginando como foi rica e divertida a vida ali. Todas as construções estão abertas à visitação.

A Casa de Roberto é o coração do conjunto. Resultado de várias ampliações, feitas para abrigar coleções sempre crescentes e muitas festas, almoços e jantares, ela ganhou uma varanda decorada com grandes carrancas que encabeçavam os barcos do rio São Francisco, da qual se tem a vista de um jardim com ninfeias. Uma imensa concha de ostra mostra o que a arquiteta e historiadora Claudia Storino, diretora do Sítio, define como “um olhar estético especial”. Atualmente ela enfeita a varanda, mas era usada como saladeira nos almoços e jantares, assim como uma banheira junto à mesa da sala principal de refeições era suporte para arranjos decorativos em ocasiões especiais.

O sitio teve centenas de frequentadores regulares

Testemunha ocular – Jornalista que assina esta reportagem, testemunhei uma dessas ocasiões especiais. Na década de 1970, com pouco mais de 10 anos de idade, fui levada por minha avó, jornalista e amiga de Burle Marx, para um almoço no sítio, provavelmente um aniversário dele, junto com minhas duas irmãs, ambas mais novas. A lembrança que carrego não é lá muito boa. Um calorão, um monte de “gente grande” e um senhor cantando ópera depois do almoço. Essa minha avó, Vera Pacheco Jordão, era crítica de arte, amiga de Burle Marx e de Lotta Macedo Soares, a idealizadora do Parque do Flamengo no governo de Carlos Lacerda. Era péssima motorista, e nos levou para Guaratiba a bordo de um fusquinha que ela chamava de Pimpão. Lá, fomos apresentadas, entre outras tantas pessoas de que não me lembro, a Margaret Mee – que me impressionou com seus imensos olhos azuis e me retribuiu com um sorriso britânico ao meu “nice to meet you”.

Não tenho ideia de que outras pessoas estavam lá na ocasião, quando tampouco tinha noção da importância do senhor que cantava ópera e morava em uma linda casa, muito longe da minha, em Laranjeiras. Com o passar do tempo essa experiência ocupou seu devido lugar em minha memória. A enxurrada de homenagens a Burle Marx, por ocasião de sua morte, em 1994, completou sua figura com muitas referências a figuras relevantes que frequentaram o sítio de Guaratiba, tanto como amigos quanto como visitantes ocasionais. No primeiro grupo, destacam-se figuras como as escritoras Cecilia Meireles e Clarice Lispector, artistas plásticos como Candido Portinari, intelectuais como Mario Pedrosa, que o considerava “o mais completo artista brasileiro”.

O sitio teve centenas de frequentadores regulares. Estavam sempre lá, por exemplo, as escritoras Cecilia Meireles e Clarice Lispector, artistas plásticos como Candido Portinari, e intelectuais como Mario Pedrosa, que o considerava “o mais completo artista brasileiro”.

 O Sítio tornou-se visita obrigatória também para personalidades ligadas ao paisagismo e à moderna arquitetura brasileira. Faz parte desse grupo o lendário Le Corbusier, consultor de Lúcio Costa à frente de uma equipe formada pelos jovens arquitetos Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcelos, Jorge Moreira e Oscar Niemeyer. Nesse tempo, e até sua morte, Burle Marx tornou-se um ícone do talento brasileiro, com obras de sua autoria oferecidas a autoridades internacionais que visitaram o Brasil. Em 1968, a primeira-ministra da Índia, Indira Gandhi, por exemplo, recebeu do então presidente Arthur da Costa e Silva um conjunto de brincos e colar de ouro e turmalinas feito por ele.

Voltar ali mais de 50 anos depois ressignificou, para usar uma palavra em voga, essa experiência infantil. Ao cruzar o grande portão que dá acesso ao sítio, lembrei que havia um piano e que a comida era boa. As duas lembranças foram confirmadas nessa volta. O piano está lá, acompanhado de uma gravação emocionante de Burle Marx falando sobre a importância de sua mãe, a pernambucana Cecilia Burle, em sua formação cultural em geral e musical, em particular. E o gosto dele pela boa mesa está patente na grande mesa de refeições, coberta por uma toalha pintada por ele mesmo, e em receitas que são distribuídas aos visitantes. Uma delas, a de um drinque chamado Pitangolangomangotango, acabou dando nome a um bloco de carnaval. O bloco foi criado em 2024, e é uma espécie de ponche, ou sangria, que leva pitangas maduras, açúcar e vinho tinto.

As demais construções que Burle Marx fez no terreno dividem-se entre as destinadas a seu trabalho e a sua vida social, ambas sempre misturadas. Para pintar, uma loggia, termo arquitetônico que designa uma área coberta e separada do exterior por várias colunas, de forma a permitir a visão da natureza ao redor. Para os amigos, além de vários quartos na casa principal, uma pequena casa de pedra e um salão de festas batizado de cozinha de pedra. E, quase no fim da vida, um ateliê com fachada principal composta com granito proveniente de uma velha construção do centro do Rio de Janeiro.

“O sítio é uma obra de arte feita de muitas facetas diferentes. Como ele era”, diz Claudia Storino.