A SALVAÇÃO DA COBAL

Mantêm-se vivos 34 negócios no Humaitá, mas já foram 59

Lucila Soares

Em 1987, um grupo de amigos, todos moradores de Botafogo, resolveu organizar um bloco de Carnaval para sair no dia 7 de setembro. A intenção era fazer um contraponto debochado à parada militar, que acontecia com toda a pompa no governo Sarney, o primeiro presidente civil depois do golpe de 1964. O local escolhido para a concentração foi a Cobal de Botafogo, onde a turma se encontrava regularmente, nos primórdios de um movimento que transformaria o hortomercado em um grande e movimentado polo gastronômico e cultural a partir de meados dos anos 1990. O bloco chamou-se “De Segunda” porque, naquele ano, o Dia da Independência caiu numa segunda-feira, e adotou o nome em definitivo porque sábado e domingo já eram dias de desfile de outros blocos. Em 1988, o desfile foi na segunda de Carnaval, e assim foi até 2023, quando foi dada a última volta no quarteirão.

Nesses 35 anos, a Cobal resistiu bravamente a planos econômicos e mudanças na estrutura do governo federal, à qual está subordinada. Em 1990, a Companhia Brasileira de Alimentação foi extinta pelo governo Collor e substituída pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), atualmente vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. A sigla Cobal virou o nome dos hortomercados do Humaitá e de seu irmão do Leblon. Na esteira dessas mudanças, houve inúmeras crises e promessas de solução. O movimento mais recente é uma verba de pouco mais de R$ 4 milhões, destinada prioritariamente a reparos nos dois grandes telhados dos mercados. Antes dessa obra, foi realizada uma reforma nos banheiros comuns, uma reivindicação antiga de empresários e frequentadores. O ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, esteve na Cobal do Humaitá e disse que o governo federal tem compromisso com a revitalização dos dois espaços como mercados de pequenos comerciantes e agricultores e espaço cultural.

São boas boa notícias, porém insuficientes para aplacar as angústias dos empresários que têm seus negócios ali. Os dois mercados enfrentam problemas de infraestrutura, manutenção e questões contratuais envolvidas em um emaranhado de brigas judiciais, que resultaram no fechamento de muitas lojas. No Leblon, foi pendurada uma faixa na grade para avisar que o local está aberto, com poucas lojas e alguns boxes de hortifrutigranjeiros. No Humaitá, o movimento ainda resiste, apesar dos muitos boxes e restaurantes fechados e da precária manutenção, que por vezes é bancada pelos empresários. A Conab, proprietária de toda a área, informou que está em andamento um edital de licitação dos espaços vazios, com previsão de lançamento em junho deste ano. 

Os dois mercados ocupam grandes terrenos, em áreas nobres. São dez mil metros quadrados no Humaitá, entre os dois principais eixos viários do bairro. No Leblon, são 6.400 metros quadrados, encravados na área de maior renda do Rio. O tombamento do Humaitá pelo estado e pelo município e do Leblon pelo município afastou o  medo de empresários e moradores dos dois bairros de ver subir em seu lugar um shopping center, um condomínio residencial ou qualquer outro grande empreendimento. É uma situação que permite projetos de longo prazo e protege não só as duas unidades da Cobal mas os dois bairros. Em Botafogo, o processo de tombamento levou em conta o prêmio concedido ao hortomercado em 1972 pelo Instituto de Arquitetos do Brasil e a importância da área como pulmão de um bairro carente de praças e outros equipamentos de lazer. O arquiteto e urbanista Carlos Fernando Andrade, com larga experiência em patrimônio público, lembra que é enorme o peso de qualquer ocupação de uma área desse porte. “É algo que pode reestruturar ou destruir o bairro.

HUMAITÁ RESISTE BRAVAMENTE, PELO ESFORÇO DOS COMERCIANTES

Com todos os problemas, mantêm-se vivos – alguns até rentáveis – 34 negócios no Humaitá (já foram 59). Aníbal Patrício, português, dono do Espírito do Vinho, dobrou em 2012 o tamanho de sua loja, aberta em 2002.  Ali, oferece mais de mil rótulos dos principais países produtores e sugere os vinhos que compõem as cartas de alguns dos melhores restaurantes do Rio. O casal Nilma e Marcos Gélio, ela mineira, ele carioca, abriu o Joaquina em 2007. Nesse período, a dupla inaugurou uma filial no Leme e o número de empregados passou de 50 para 190, juntando os dois restaurantes. Só no Humaitá, são nove mil clientes por mês. Do outro lado da Cobal, o Pizza Park vende mensalmente 12 mil pizzas e dez mil litros de chope, com pico de movimento nos fins de tarde de sexta-feira, quando é tomada pelas famílias que encerram ali a semana, depois de buscar os filhos nas escolas vizinhas. O Empório Farinha Pura, gigante de mil metros quadrados, foi inaugurado em 1985 como uma pequena padaria e hoje comercializa mais de dez mil itens, tem um espaço gourmet no segundo andar e abriu um concorrido restaurante a quilo.

Imagine-se como seria a Cobal com um projeto inspirado em mercados que fazem sucesso mundo afora, como o São Miguel, em Madri, e o da Bastilha, em Paris. Em uma das viagens que fez a Portugal, há 15 anos, Aníbal Patricio trouxe fotos e planta do Mercado da Ribeira, que funciona em um prédio revitalizado e faz parte obrigatória do roteiro turístico de Lisboa. Além da grande área dedicada à degustação, há espaços destinados a atividades culturais e oficinas de culinária. Não conseguiu que sua ideia tomasse corpo. Mas continua torcendo por um projeto que permita à Cobal realizar todo seu potencial, com participação ativa dos empresários na administração, inclusive na realização de melhorias em áreas comuns com valor a ser abatido do aluguel.

A torcida não é só dele. Genival Santana Dos Santos, o Gil da Cobal, saiu de Iaçu, na Bahia, para o Rio e começou a trabalhar como entregador em 1997. Hoje, dono de um box, uma peixaria e do sushi que leva seu nome, sonha em ver a Cobal cheia de lojas, com todos os espaços ocupados e contratos regularizados. Mario Duarte Pereira, português de Vizeu, começou a trabalhar ali em 1979, em uma floricultura recém-inaugurada. Quase meio século depois, Pereira tem duas lojas médias de flores e plantas, uma delas tocada por sua filha, a outra comandada por ele, em dupla com Fátima, sua esposa. Atualmente com 78 anos, é econômico ao comentar sobre as obras que vão começar. Mas não perde a esperança.

“Vamos ver se sai mesmo, já houve muitos planos aqui. Mas… quem sabe? Sempre há uma primeira vez!”