A GUERREIRA HILDE

Hildegard é filha da estilista Zuzu Angel, que foi assassinada pelos agentes de repressão da Ditadura Militar

Jan Theophilo

Na entrada do apartamento de Hildegard Angel há um enorme livro, elegantemente encapado em couro, com páginas repletas de assinaturas. Parecem aqueles cadernos que você vê em museus onde os monitores pedem que as pessoas lancem as datas de suas visitas. Mas neste caderno especial estão registrados os nomes das dezenas de políticos, empresários, artistas, músicos que estiveram em algum jantar ou encontro promovido por aquela que se tornou uma das mais conhecidas e relevantes colunistas sociais do Brasil. Mais do que talvez um resquício de um passado repleto de festas e badalações, o cartapácio é uma prova vivíssima da importância de uma brasileira que a ditadura militar tentou aniquilar – e, de fato, destruiu sua família – mas que se manteve firme, se tornou vitoriosa e hoje é uma das vozes mais expressivas do pensamento progressista brasileiro.

Hildegard Beatriz Angel Bogossian, ou apenas Hilde,  é filha da estilista Zuzu Angel, que foi assassinada pelos agentes de repressão da Ditadura Militar num acidente de automóvel forjado no bairro de São Conrado, em abril de 1976, e do empresário norte-americano Norman Jones, que veio ao Brasil ajudar a instalação da Facit, uma multinacional sueca presente então em mais de 100 países e que disputava o mercado de eletrônicos para escritórios, como máquinas de escrever e calculadoras. “Mas o negócio dele era o interior do Brasil. Ele adorava dirigir caminhonetes pelas estradas brasileiras e acabou se tornando um importante representante comercial na área alimentícia. Ele brincava dizendo que era o Rei do Alho”, conta Hilde. Com recursos próprios, Norman abriu um orfanato em Matias Barbosa, cidade próxima a Juiz de Fora, que amparou dezenas de crianças. Nas férias escolares, Norman contava com a ajuda do filho Stuart (chamado Tuti, pelos primos mineiros). “Acho que foi ali, trabalhando com papai junto as crianças, que ele despertou para uma visão mais humanitária da vida”, lembra Hilde.

Ainda na infância Hilde decidiu que seria atriz de teatro. Teve aulas com grandes nomes como a triz francesa Henriette Morineau, e foi da primeiríssima turma de Maria Clara Machado, fundadora do Tablado, conhecida escola de teatro do Rio que já formou mais de cinco mil profissionais em artes cênicas de todo o país. “Nós íamos passar os verões em Búzios, e a Maria Clara começou a nos dar aulas primeiro no mar. Depois passamos a ensaiar na casa da (bailarina) Tatiana Leskova, que também tinha casa lá”, lembra ela: “Maria Clara dizia que tínhamos muito talento. E acho que ela estava certa, porque todo mundo que participou daquele grupo chegou a algum lugar”.

Sua estreia nos palcos foi em 1965, aos 15 anos, na peça “As feiticeiras de Salem”, um clássico de Arthur Miller escrita no início da década de 1950 como uma resposta ao macartismo, período no qual o governo estadunidense passou a perseguir pessoas acusadas de comunistas. “Eu era a única menor de idade, as outras meninas como a Djenane Machado e a Marieta Severo já tinham feito 18 anos”, lembra ela. Naquela época, um ano após o Golpe Militar, o Juizado de Menores dava batidas nos camarins dos teatros, checando a idade dos atores e atrizes. “Bastava eles aparecerem na porta do teatro que um produtor saía correndo gritando: esconde a Hilde! Esconde a Hilde!”, diz ela, rindo da situação.

De 1965 a 1976 Hilde esteve no elenco de 11 peças teatrais, tendo sido dirigida por nomes como Ziembinsky, Amir Haddad, Aderbal Filho e José Celso Martinez Correa _ este num espetáculo experimental chamado “Gracias Señor”, que varava madrugadas com duração de até sete horas. Seu currículo inclui ainda atuações em quatro longas metragens e quatro telenovelas, uma delas “Selva de Pedra”, de 1972, a única novela brasileira que conseguiu ter 100% de audiência nacional. Mas a televisão não a conquistou. “O diretor Walter Avancini começou a implicar comigo porque eu tinha o teatro. E naquela época a gente subia ao palco de terça a domingo.  E ainda tinha duas sessões as quintas e quartas”, conta. Foi nessa época que ela começou também a apurar notícias para a coluna da jornalista Nina Chaves, no jornal O Globo. “Eu aproveitava o intervalo das gravações para telefonar para as fontes nos corredores da TV Globo. Tinha uma capacidade de trabalho enorme”.

Nina Chaves foi a criadora e primeira editora do caderno Ela do Globo – hoje uma revista dominical.  O caderno contava com uma coluna social cujo conceito era de introduzir um estilo de colunismo nos moldes do praticado pela jornalista estado-unidense Louella Parsons, pioneira sobre fofocas de celebridades, além de reportagens sobre moda e entrevistas. Nina revolucionou o jornalismo feminino a partir de meados dos anos 1960 criando expressões como dondoca e bambú florido (bonito por fora e oco por dentro). O caderno tinha até uma coluna gay chamada “Os rapazes da banda”.

Foi num encontro casual em um cabelereiro que Zuzu Angel pediu a Nina Chaves um emprego para a filha. “Minha mãe estava danada porque eu tinha feito um monte de cursos de interpretação, voz, corpo e depois tinha posto um anúncio num jornal norte-americano procurando um emprego de babá”, lembra Hilde. “Mas não era exatamente isso. Eu de fato pus um anúncio no Brazil Herald dizendo que queria ser preceptora de crianças filhas de diplomatas. Eu achava que preceptora era um nome tão chique, mas preceptora e babá são exatamente a mesma coisa”, conta.

“A Nina foi a maior colunista social do Brasil. Ela fazia uma coluna toda setorizada. Eu cuidava da parte social e a Sylvia de Castro de uma coisa mais hard. Diziam que eu era a única jornalista que ficava vermelha, tinha uma timidez enorme, falava baixinho. Imagina, fazer coluna social com vergonha”, conta Hilde. Um belo dia Nina viajou para a França com o futuro marido e deixou a coluna a cargo de Hilde. “Só que não me deixavam assinar e eu não entendia porque não podia assinar”, diz.

Sob a nova administração, a coluna manteve o sucesso. Nina passou a Hilde toda sua lista de fontes. “E comecei a fazer a coluna como se fosse ela. E fazendo teatro e TV ao mesmo tempo. Eu tinha um poder de produção muito alto”, conta. Outros colunistas do jornal perceberam o talento da então jovem atriz e Hilde começou a colaborar com outras colunas notórias do jornal como Swann, Zona Franca até que finalmente pode assinar seu nome em uma coluna sobre televisão aos domingos. Foi quando surgiu o primeiro revés.

Evandro Carlos de Andrade, diretor de redação do Globo por 24 anos (um recorde no jornalismo brasileiro) a chamou dizendo que circulava uma história segundo a qual o ator Jardel Filho pagava Hilde um “por fora” para ganhar destaque na coluna. “Fiquei chocada. Eu achava que tinha sido chamada para ganhar um aumento. Disse ao Evandro que o Jardel Filho era o maior ator do Brasil e não precisava desse tipo de artifício. Fiquei tão zangada que pedi demissão”, conta. Mas ela não ficou fora da imprensa muito tempo. Poucas semanas depois o jornalista Ary de Carvalho, posteriormente dono do jornal O Dia e, na época, editor-chefe da Última Hora a convidou para ter uma coluna no famoso jornal fundado por Samuel Wainer.

Hilde ficou três anos na Última Hora. Lá participou da cobertura de um crime famoso da crônica policial carioca: o Caso Lou, a história de uma mulher e seu marido que atraíam ex-namorados dela e os assassinavam na então distante praia da Barra da Tijuca. “Eu consegui fazer uma grande entrevista com ela. Tinha uma carinha inocente, a casa cheia de bichinhos de pelúcia. A repercussão foi tão grande que tempos depois entrei em uma banca de jornal e vi que tinham transformado minha reportagem numa edição especial chamada “O Caso Lou”, lembra.

Enquanto Hilde fazia seu nome na concorrência, no Globo vários jornalistas quebravam a cabeça para tocar a coluna criada por Nina Chaves sem sucesso. “Tentaram com o Nelson Motta, com a Scarlet Moon, com a Lúcia Sweet, mas ninguém acertava a mão. A Nina, que fazia uma coluna chamada Crônicas de Paris foi chamada de volta. Mas ela brigou com o Evandro, que um dia interceptou um bilhete que Nina mandara para Roberto Marinho curto e grosso: ou Evandro ou eu”, conta.

Segundo Hilde, Roberto Marinho disse a Evandro que se ele conseguisse alguém capaz de substituir Nina Chaves, ele continuaria no comando da redação. “Fomos almoçar e eu disse que aceitava voltar se pudesse assinar a coluna. Mas ele disse que o dr Roberto não aceitava isso e já tinha até pensado num pseudônimo que tive de usar por um tempo: Perla Sigaud”, diz ela. “Eu era muito ingênua. A coluna tinha poder, eu falava com ministros, com mulher de presidente. Hoje, olhando para trás, entendo que só não me mataram porque eu era colunista social do Globo”, afirma.

Alguns anos antes seu irmão Stuart havia começado a militar no MR-8, uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro que fazia a luta armada contra a Ditadura Militar. Em 1971 Stuart foi preso por membros da Aeronáutica e levado para a base aérea do Galeão, onde foi barbaramente torturado e espancado, vindo a morrer em consequência dos maus tratos. Stuart foi amarrado a um carro e arrastado por todo o pátio do quartel. Entre risos e chacotas feitas pelos militares, ele era obrigado a colocar a boca no escapamento do veículo aspirando os gases tóxicos. Após ser desamarrado, Stuart foi abandonado no chão, com o corpo totalmente esfolado, onde seguiu clamando por água noite adentro até falecer. Dois anos depois, sua mulher, Sônia Morais Jones, militante como ele, também foi torturada e morta pelos militares.

“Stuart era cinco anos mais velho do que eu. E isso nessa fase e naquela época era muita coisa. Eu achava que ele era um adulto. Quando eu tinha 18 anos ele já tinha entrado na clandestinidade. Mas nunca abriu o jogo conosco. Eles até faziam reuniões lá em casa e a gente nem fazia ideia de que eram reuniões do MR-8″, conta Hilde. A partir daí Zuzu entraria em uma guerra contra o regime pela recuperação do corpo de seu filho, envolvendo os Estados Unidos, país de Norman, então seu ex-marido, e pai de Stuart. Como estilista, ela criou uma coleção estampada com manchas vermelhas, pássaros engaiolados e motivos bélicos.

Nos cinco anos seguintes Zuzu Angel travou uma luta heroica para localizar o corpo do filho. Fez desfiles-protesto que ganhavam manchetes em jornais de todo o mundo – um deles no Consulado Brasileiro de Nova York, que foi pego de surpresa pela temática do evento. Ganhou apoio de celebridades internacionais como Joan Crawford, Liza Minelli e Kim Novak. “Um dia eu estava na redação e o encarregado do telex, o Adir, irmão do conhecido fotógrafo Acyr Méra,  me disse: foge porque todos os jornais e agências de notícias estão falando da sua mãe. Foge porque vão te prender”, lembra ela. Mas ela não fugiu.

A busca de Zuzu pelas explicações, pelos culpados e pelo corpo do filho só terminou com sua morte, na madrugada de 14 de abril de 1976, quando seu carro foi abalroado por outro veículo na estrada Lagoa-Barra, chocou-se contra a mureta de proteção, capotando e caindo de uma altura de cinco metros, matando-a instantaneamente. “Eu era a filha mais apegada a ela e vivia intensamente aquelas questões. Ela tinha muita coragem. Não se intimidava”, conta Hilde: “Eu só fui saber que eu era seguida pelo DOPS quando o Fernando Moraes foi escrever a biografia do Paulo Coelho, um grande amigo meu. Depois do teatro nós sempre saíamos pelo circuito de bares do Leblon. O Fernando pediu acesso aos documentos do DOPS para saber o que eles pensavam sobre o Paulo Coelho e aí descobriu que quem era vigiada não era ele, era eu”.

“Havia tanto medo, tanto temor, eu mal sabia que aquele emprego era minha tábua de salvação. Porque até então eu fazia teatro de vanguarda, trabalhei até com o Grupo Oficina. Quando mamãe morreu, percebi que tinha de abandonar o teatro, porque me expor daquela maneira havia se tornado muito arriscado”, diz. Ela continuou no Globo até 1988, quando foi demitida pela primeira vez. “A Ruth Marinho, segunda mulher do dr Roberto, descobriu que estavam fazendo um estratagema para trazer a Nina Chaves de volta. E para isso estavam espalhando várias calúnias a meu respeito e sobre meu marido. Foi uma coisa tão pesada e bem orquestrada que acabei sendo mandada embora e voltei para a Última Hora”, conta.

Só que o estratagema não rendeu o resultado esperado. Nina havia passado tanto tempo morando fora que perdera o timing das mudanças do Rio de Janeiro – e boa parte de suas antigas fontes. “E eu no pique total! Tinha 40 anos, ia a sete, oito eventos por dia. Depois que a Lily se casou com o Roberto Marinho, já no início dos anos 1990, ela me ligou dizendo “olha, eu não tenho nada com isso. É coisa do Roberto. Ele pediu pra perguntar se o Evandro pode ligar para você.  Aí voltei, assinando nome, com tudo. Porque tinha acabado a Ditadura e até então a irmã do Stuart Jones, filha da Zuzu Angel e cunhada da Sônia Jones não podia assinar uma coluna de repercussão”.

A nova passagem pelo Globo durou mais ou menos uma década. Segundo Hilde, ela enfrentou resistências de parte da Redação, liderada por um famoso colunista conhecido por liderar uma patota. “Era um complô misterioso. Havia uma vontade de não ter mais aquela colunista poderosa no jornal. Ainda vou escrever um livro de memórias contando em detalhes essas histórias”, antecipa ela: “O João Roberto foi muito correto comigo. E eu não tenho nada contra eles. Tenho contra esse meio de campo que em nome do seu enriquecimento pessoal, do seu protagonismo, de sua mediocridade, precisava apagar as pessoas que tinham talento”. No mesmo dia da sua demissão, o empresário Nelson Tanure a convidou para fazer a coluna no Jornal do Brasil.

“Fui muito feliz nos sete anos em que trabalhei no JB, pude criar o caderno H, que eu sonhava muito em fazer. Quando o JB fechou, a Record me chamou e mantive um site no portal R7”, conta ela. Em 1993 ela criou o Instituto Zuzu Angel, entidade sem fins lucrativos dedicada à promoção e à capacitação da moda no Rio de Janeiro, tendo como objetivo principal lembrar a luta de seu irmão e de sua mãe. Hoje mantém um blog próprio, onde escreve sobre a sociedade carioca e a política nacional e é uma das mais prestigiadas colunistas do portal Brasil247. Uma vida, enfim, digna de uma boa série em algum serviço de streaming, que possa contá-la em todos os seus detalhes mais sombrios. Para que nunca nos esqueçamos das barbaridades da Ditadura. E para que ela nunca mais se repita.

“Acho que o Trump não vai fazer exatamente as coisas que ele está dizendo, não”

“O BOLSONARISMO É O CUPIM DO MUNDO”

O colunismo social acabou?

Com certeza, e com a coluna social acabando, acabou também a noite, os grandes ateliês, as dicas de comportamento. Se você quiser saber o restaurante do momento, referências da moda, bastidores tem que ir pra Internet onde existem todos os tipos de impulsionamentos. Você não tem mais aquelas pessoas que eram referenciais. Que tinham credibilidade e tempo de estrada.

O Rio vive mergulhado em crises políticas. Como você vê essa situação?

 As perspectivas do Rio não são boas. E não é só por essas pessoas que estão aí. Temos bons nomes. Gosto muito do deputado Pedro Paulo, por exemplo. É uma pessoa muito agradável, preparada, e com uma cabeça muito boa para finanças. Mas o futuro não é muito promissor, pela questão do Meio Ambiente e das milícias. A questão ambiental é preocupante, porque as águas estão subindo. E as milícias porque dominaram não só a cidade como todo o estado.

 Como você avalia Eduardo Paes na Prefeitura?

 Acho que ele faz um bom trabalho, conhece muito a burocracia da Prefeitura e a alma da cidade. Embora alguns duvidem, acho que ele será mesmo candidato a governador no ano que vem. Todo mundo sabe que ele sonha em ser presidente da República, mas para isso ele precisa antes ter a experiência de ser governador.

Você está otimista em relação ao futuro do Brasil?

Eu acho que o Brasil está numa quadra complicada, mas com as relações internacionais estabelecidas pelo Lula, o Brics principalmente, vão segurar o Brasil. Acho que o Trump não vai fazer exatamente as coisas que ele está dizendo, não. Ele está blefando. Jogador de pôquer, sabe. Blefando como blefou com o Canadá, com o Canal do Panamá, com a Groenlândia.

Você acha que a carreira política de Jair Bolsonaro está com os dias contados?

Os Bolsonaros bateram o último prego no caixão deles com essa história das taxações dos Estados Unidos contra o Brasil. Acho um absurdo o espaço que dão, para o Flávio e o Eduardo Bolsonaro fazerem chantagens e ameaças. Abrir espaço na imprensa para essa turma mentir, sem questionamentos, é o fim da picada. Eu escrevi sobre isso e tive uma repercussão imensa: mais de nove milhões de visualizações em um post.

Qual sua opinião sobre as eleições presidenciais do ano que vem?

Em 2026 vou fazer campanha pra valer pela reeleição presidente Lula. A gente não pode deixar a extrema direita vencer. Eles são o cupim do mundo. Se a extrema-direita vencer, não só no Brasil, vai ser o horror do horror. Dois terços das pessoas que morreram na pandemia não teriam morrido aqui no Brasil. Morreram porque foram estimuladas a abrir comércio, fazer aglomeração, motociata. E até hoje Bolsonaro não fez uma autocrítica do que provocou.