UM MUSEU DE GRANDES NOVIDADES EM VASSOURAS

A antiga Santa Casa de Misericórdia está voltando à vida

Jan Theophilo

Em Vassouras, capital sentimental do Vale do Café e lar de sobrados imperiais que assistiram de camarote VIP a boa parte da História do Brasil acontecer, um casarão do século XIX, a antiga Santa Casa de Misericórdia está voltando à vida. Onde outrora se tratavam partos difíceis e casos de cólera ou febre amarela, agora haverá um museu que se dedicará a tratar outro mal: a amnésia histórica. E não estamos falando de um equipamento qualquer, mas de algo tão imponente que, segundo quem viu o projeto, não ficaria deslocado em qualquer capital europeia.

O prédio, que já salvou vidas e depois abrigou velhices esquecidas, sobreviveu a um incêndio e a mais de uma década de ruína. Agora, passará a exibir, com recursos tecnológicos e narrativa crítica, as glórias e misérias do Vale do Café, um conjunto de 16 municípios que inclui Vassouras e que foi o dínamo econômico do Brasil durante boa parte do século XIX, responsável por nada menos do que 75% do café consumido no planeta. Entre um holograma de Manuel Congo e um painel sobre Eufrásia Teixeira Leite, o visitante poderá se perguntar se está no interior fluminense ou num museu europeu. 

“O museu é de identidade. É para resgatar a importância dos negros na nossa região, os imigrantes escravizados; para respeitar os índios, os povos da primeira nação na nossa região; para aqueles que vieram aqui fazer a riqueza do café no século XIX e ao mesmo tempo tecer essa síntese da sociedade brasileira: nós somos mestiços. E temos de ter orgulho disso. Essa é a nossa força”, diz o empresário Ronaldo Cezar Coelho, fundador do Instituto Vassouras Café – entidade dedicada à preservação da memória do Vale do Café – que tirou o escorpião do bolso para bancar a recuperação do imóvel, em um investimento estimado até agora em mais de R$ 50 milhões. O tombamento do conjunto urbano de Vassouras pelo Iphan garantiu que o prédio ainda faça parte da paisagem protegida. Mas foi apenas com a compra pelo Instituto Vassouras Cultural, em 2017, que o imóvel começou a trilhar o caminho da recuperação. Entre a ruína e a promessa de um museu internacional, passaram-se mais de dez anos, um incêndio e milhões investidos em restauro. 

Na virada do mês será apresentado ao grande público o resultado das obras de restauro, financiadas sem um tostão de dinheiro público. A ‘Rio Já’ esteve no local e pôde conferir que a obra está muito adiantada. O trabalho foi meticuloso: em algumas das paredes, por exemplo, foram abertas uma espécie de janela para que o visitante possa conferir, debaixo de todo o puro sumo da engenharia de preservação, como são as paredes originais do imóvel.

Entre os muitos convidados para a apresentação do novo museu, está o presidente do STF, Luiz Roberto Barroso, cria da terra, não como uma merecida deferência ao Supremo, mas como mostra da pujança de Vassouras na história. Uma cidade que,  mesmo sem ter uma única faculdade de Direito, emplacou quatro nomes ao longo da trajetória da Suprema Corte. 

“Esse museu vai fazer história e ressuscitar fatos que ficaram no esquecimento, vai ser um divisor de águas para o município,” diz a prefeita de Vassouras, Rosi Silva: “Acho que vamos atrair turistas não só do estado e do Brasil, mas do mundo inteiro”, empolga-se.  Segundo ela, a Prefeitura já está conversando com a rede hoteleira, bares, restaurantes e taxistas para atender ao novo fluxo de turistas que deve vir graças ao museu. 

“Vamos investir para que este turista seja bem recebido, e para que a população abrace este museu em toda a grandeza que ele tem”, diz Rosi Silva.

Fundada em 1853, a Santa Casa de Misericórdia de Vassouras foi fruto da generosidade, com notas de conveniência política e social, de figuras como o Barão do Tinguá, que viam na caridade um complemento elegante para a fortuna do café. O hospital funcionou até 1910, quando cedeu lugar ao Asilo Barão do Amparo, abrigando idosos em um prédio que já fora símbolo de prestígio.  A decadência veio com tudo no século XX, acompanhando a queda da economia cafeeira. O imóvel foi interditado em 2007 e, para piorar, sofreu um incêndio curioso. Tudo porque não existe um consenso oficial sobre quando ele de fato aconteceu. Dependendo da fonte consultada, seja ela a imprensa local ou sites de órgãos públicos, uns dizem que foi em 2008, outros em 2011. Seja qual for a data, o resultado foi o mesmo: conseguiu piorar décadas de abandono e degradação visível.

O Museu Vassouras é, segundo o site oficial de turismo do município, uma “celebração das identidades que formaram o Vale do Café”. Traduzindo do jargão institucional: um espaço que vai misturar tecnologia de ponta com acervos e narrativas históricas sobre indígenas, africanos escravizados e colonizadores europeus. A obra tem assinatura de Maurício Prochnik na arquitetura e foi precedida por um restauro emergencial feito pela Concrejato Engenharia em 2018, para evitar que o prédio desabasse antes de virar atração turística. “A gente não queria apagar o que está lá, nem fazer intervenções que deixem tudo asséptico. O que se quer é o equilíbrio. É um imóvel do século XIX que está sendo dotado de tecnologia do século XXI. Equilibrar esses dois pontos é fundamental”, diz Maurício Prochnik.

O que se sabe é que o equipamento vai oferecer exposições permanentes sobre o ciclo do café e suas contradições sociais. A ideia é apresentar narrativas biográficas com uso de tecnologia imersiva e recursos museográficos contemporâneos de personagens como Eufrásia Teixeira Leite – aristocrata que deixou uma imensa fortuna de herança para a cidade – e Marianna Crioula e Manuel Congo, dois escravizados que organizaram uma rebelião em 1838 e fundaram o primeiro quilombo da região antes de serem esmagados por um certo major do Exército que mais tarde ficaria conhecido como o Duque de Caxias. 

 “Precisamos celebrar a cultura desta região, que no século 19 era a síntese do Brasil mestiço,” diz Ronaldo César Coelho. “O Vale do Café era a cara do Brasil: 70% da população aqui era preta, mas tinha também os fazendeiros que desceram de São João del Rey e os povos originários, que eram os índios puris e os coroados, que ganharam esse nome por causa do formato do seu corte de cabelo. O Brasil não conhece isso”. 

Para os leitores mais jovens, Ronaldo César Coelho não é apenas o irmão do comentarista de arbitragem Arnaldo César Coelho. O ex-banqueiro fez fortuna ao vender o seu Multiplic ao Lloyds Bank nos anos 1990, em uma operação que segundo os jornais da época teria atingido cerca de US$ 600 milhões, dos quais Ronaldo teria ficado com quase metade. Posteriormente ele construiu uma sólida carreira parlamentar com quatro mandatos consecutivos pelo PSDB, num tempo em que havia no país uma civilizada polarização de legendas com o campo da esquerda, liderado pelo PT, baseada em ideias e projetos concretos para melhorar o Brasil, não em golpes frustrados, patetadas e ideias medievais.

“Cheguei aqui há 40 anos num momento de virada na minha vida e adquiri um amor incondicional por esta cidade”, contou Ronaldo, hoje um acionista de peso em empresas como a Vibra, Light e Energisa. Foi quando o empresário comprou a Fazenda São Fernando, uma propriedade cafeeira fundada em 1813 e que ele converteu em seu infinito particular. Nas últimas décadas, ele reconstituiu o bioma da região. Seguindo orientações técnicas da Embrapa, plantou 300.000 árvores nativas da Mata Atlântica na fazenda. E ainda mantém um plantio permanente de 20.000 por ano. Assim, o que antes era uma terra arrasada pelas técnicas predatórias do ciclo do café, agora é o habitat de lobos-guarás, tucanos e jacus.

Diferentemente do que chegou a ser especulado, o novo museu não vai expor obras do acervo do seu mecenas, dono de uma conhecida coleção que inclui Frans Posts, Portinaris, Lygia Clarks, e uma Tarsila do Amaral além de um conjunto de Aleijadinho e outro do Mestre Valentim.  Não se trata, portanto, de “um museu de colecionador”, mas de uma curadoria voltada a resgatar vozes que, no século XIX, dificilmente pisariam as salas de visita das sedes das fazendas. A promessa, portanto, é de um espaço que não se limitará apenas a enfeitar o centro histórico, mas provocar reflexão.

Atrás do museu, foi recuperado também o  memorial que guarda os restos mortais de dois homens: Benjamin Benatar e Morluf Levy, judeus enterrados ali no século XIX que, não podendo ser abrigados no cemitério católico da cidade, por proibição da Igreja, foram acolhidos pela direção da Santa Casa numa tocante demonstração de tolerância de um Brasil ainda primitivo. Em 1992, a Prefeitura de Vassouras transformou o local num Memorial Judaico, com paisagismo de Roberto Burle Marx.  “A história desta região é riquíssima, mas muito esquecida, e quero que mais pessoas conheçam essa parte da nossa história como povo”, diz Ronaldo César Coelho.

O empresário, que como conselheiro do MASP ajudou o museu a levantar os recursos para seu novo prédio, quer que o Museu de Vassouras construa parcerias estratégicas com outras instituições, incluindo exposições cruzadas e empréstimos de acervo. A inauguração do museu vem em meio a uma redescoberta do Vale do Café como um destino turístico cultural e histórico. As fazendas históricas estão sendo convertidas em hotéis, a cultura de cafés especiais está voltando, novos produtores de cachaça estão surgindo, e até o queijo local está sendo premiado mundo afora.  “Vim para ficar quarenta e cinco dias na obra e já estou há seis anos. Me casei aqui, constituí família, criei novas raízes. Acho que isso diz muito sobre como tudo isso aqui é transformador”, diz Thiago Thuler, um dos arquitetos envolvidos no projeto.