Luisa Prochnik
Com a voz de Carmem Miranda distorcida – “Eta, moleque bamba, pega a cabrocha, pisca o olho e cai no samba” – a marchinha “Moleque Indigesto”, em que ela canta com Lamartine Babo, de 1933, como num passe de mágica, tem seu refrão repetido, mas, agora, com o áudio restaurado. Mágica? Nada disso. Trabalho, muito trabalho, e boa parte dele manual, que exige escuta apurada, sensibilidade e cultura musical. Sérgio Lima Nascimento, autor da restauração dessa e de tantas outras músicas, reúne todas essas características – e é reconhecido por isso. Fundador e dono da La Macchina del Tempo, uma loja, mas também um estúdio, com acústica apropriada e bem equipada, Sérgio passeia entre histórias, vinis, CDs, fitas cassete, DVDs, curiosidades, causos e raridades.
– A única forma de você viajar no tempo é através da arte – afirma o engenheiro de áudio ao responder o motivo da escolha do nome.
E, sim, estar na Macchina del Tempo é uma baita viagem ao passado. Os vinis – carro-chefe de venda da loja, carregam, junto a suas capas estilizadas, mais gêneros musicais que um leigo poderia identificar. Para estar na loja, no entanto, não é qualquer um que ganha espaço na prateleira: há uma curadoria cuidadosa, com discos que vão de R$5,00 a R$30.000,00. O vinil é a música em estado bruto, você quase consegue vê-la, o pianíssimo e o fortíssimo são marcados com tons de cor diferentes, é possível acompanhar o contato da agulha com o disco, resultando em acordes, instrumentos, voz, ritmo.
– Existe o fetiche, né? E muito desse lance da compra do vinil é pelo fetiche. Coisa que o CD, por exemplo, não tem. Porque você não vê o CD tocando, ele fica lá dentro. Eu lembro quando eu era criança, eu falei: ‘Gente, como é que sai som desse troço? A gente bota o disco para rodar e tal e sai o som dali’ – relembra Sérgio, que depois, como uma terapia, lava disco por disco por disco, passando algodão calma e suavemente.
Porém, se tem algo que o tira do sério é chamar sua loja de sebo e referir-se ao material lá dentro como antiguidade. Com a redução drástica na produção de vinil, há, sim, discos de segunda mão. No entanto, o foco do Sérgio é ter material novo, mesmo que em seu conteúdo as músicas nos façam viajar ao passado. Ele possui nas prateleiras CDs e DVDs ainda selados e discos, tudo o que se lance de novidade, está atento para comprar e vender a clientes – ou às vezes ficar para ele mesmo. A indústria fonográfica brasileira vem se reconstruindo, aos poucos e em boa parte com vendas on-line, e já conta com algumas fábricas, que relançam obras antigas e produzem material novo. Demanda não está faltando, só aumentando. A Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), no relatório deste ano, afirma: “as vendas de vinil continuaram a crescer em 2024, 4,6%, marcando o 18º ano consecutivo de crescimento do formato”. A Polysom foi durante alguns anos a única fábrica de vinil da América Latina e, em entrevista ao site TMDQA!, no ano passado, o consultor João Augusto, que apostou nesse mercado em 2009, quando todos partiam para o digital, disse:
– Naquela época, chamavam a gente de maluco. Hoje, quando tentam nos chamar de espertos, digo logo que não, de jeito nenhum: nós somos malucos mesmo.
– Eu começo a perguntar o que a pessoa gosta. Se eu entender o que ela gosta, ela sai daqui sem roupa – diverte-se Sérgio, que, ao fazer atendimento individualizado, oferece músicos e bandas que conversam com o gosto do cliente, este, geralmente, outro apaixonado por música e, muitas vezes, colecionador de discos.
La Macchina del Tempo abriu suas portas em 2000, na época, alavancada pelo crescimento do DVD, entre outros formatos. A sacada de Sérgio na época foi desenhar o projeto da loja já com paredes acústicas, a princípio, para poder mostrar ao cliente o que ele está comprando com qualidade. Em 2010, no entanto, com diminuição das vendas e crise no mercado fonográfico, Sérgio passa a usar o estúdio com mais frequência para restaurar e masterizar música.
A música “Cabeça de Porco”, de 1902, uma das primeiras gravações em solo nacional, realizada na Casa Edison e interpretada pela banda do Corpo de Bombeiros e seu maestro Anacleto de Medeiros, inunda o espaço da entrevista. Mas, além da música, ruídos e distorção causados pela idade e pelo estado do disco não permitem uma fruição completa dessa raridade. Sérgio, então, pula para a próxima faixa: a mesma música restaurada. Os diversos naipes de instrumentos são reconhecíveis e sua melodia admirável. No início do século passado, as gravações eram mecânicas e não havia microfone, apenas um grande cone. Então, a arrumação da banda tinha que seguir a lógica de quais instrumentos deviam ficar mais perto do cone, pela dificuldade de captação, e quais poderiam ficar mais distantes. Uma engenharia completa antes e depois de gravar, já que o disco viajava para a Alemanha, sendo finalizado e serializado por lá, antes da existência de uma indústria fonográfica nacional. Ouvir “Cabeça de Porco” restaurada é uma viagem no tempo com aquele quentinho no coração de poder viver, mesmo que espiritualmente, uma época e um Rio de Janeiro que não existem mais.
Nessa mistura entre passado e futuro, o presente traz uma curiosidade: a fita cassete também está de volta. Sérgio é cético em relação ao ganho na qualidade, já que, segundo ele, para ter uma real experiência sonora com fitas o deck tem que ser muito bom. A experiência física e o som analógico, no entanto, ainda mais depois de um banho de vida digital intensificado pela pandemia, são atrativos para esse retorno, além da nostalgia, da possibilidade de se lembrar da infância. Mas pode parar nesse passeio idílico, aqui estamos tratando, sobretudo, da indústria fonográfica, que gera receita, mercado de trabalho e, através do seu produto, dita moda, costumes e cultura. Grandes artistas como Taylor Swift, Beyoncé, Adele e por aí estão lançando edições de seus álbuns em fita cassete, atraindo fãs para o formato.
Neste momento, aqueles que não acompanham tanto o mercado fonográfico, e seguiam satisfeitos com seus streaming no celular, entendem não apenas que a música digitalizada pode trazer perdas de qualidade, como nem tudo – por incrível que pareça – de produção independente está on-line e mais: como é bom segurar um disco, apreciar a capa, ouvir e, de certa forma, ver o som tocar, na agulha do toca-discos, no “aperte o play” do rádio com deck. E, se ainda está confuso, saiba: os CDs também vão voltar. Voltar com força, e não sou eu que estou dizendo. Se ainda der tempo, segure em casa suas preciosidades que, em breve, podem se tornar raridades e objetos de desejo.
As fábricas de discos de vinil ativas no Brasil são a Polysom, a Vinil Brasil e a Rocinante Três Selos. Essas empresas são responsáveis por produzir os vinis, do material bruto ao disco final, e atendem tanto artistas independentes quanto grandes gravadoras. Entre essas, a Polysom, há três anos, entrou no mundo das fitas cassete.
Uma geração nova de músicas tem explorado bem o mercado do vinil, como Matuê, Liniker, Jão, Luedji Luna, Xênia França, entre muitos outros. Uma fatia grande que está presente em disco é a produção musical independente, aquela que, com boas chances, você não encontra nem no streaming. E, claro, músicos consagrados, como Marisa Monte, Gilberto Gil, Raul Seixas são poucos exemplos entre um universo analógico em expansão.
Para quem guardou seus decks ou já está procurando um equipamento para compra, a produção internacional em fita cassete é bem ampla. Aqui, no Brasil, Pitty, Ratos do Porão, muita música independente, rap e hip-hop.
Aos interessados, convidados a realizar uma viagem no tempo, seja passado, presente e/ou futuro, a La Macchina del Tempo fica no Cittá América, shopping da zona sudoeste do Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca. Alguns exemplos de trabalho e pesquisa realizada por Sérgio: Dom Pedro I compositor (não apenas a melodia do Hino da Independência), agora com disco e livro sobre o tema, acervo amplo da Casa Edison restaurado, discursos do Museu da Imagem do Som sem ruídos e chiados, e muito mais.