VIDA DE CARNAVAL

Por Aydano André Motta

Com uma década de TV Globo, Milton Cunha conjuga o estilo da “loucura” superconectada à festa, a rotina organizada e a aposta incessante no estudo e na preparação

No fim de outubro, a TV Globo realizou, no Memorial da América Latina, em São Paulo, o Upfront Globo 2023, evento para apresentação de produtos e estrelas ao mercado publicitário. Luciano Huck, Fábio Porchat, Tatá Werneck, Luís Roberto, Ana Thais Matos, Taís Araujo, Aline Midlej e Maju Coutinho foram algumas das muitas estrelas que subiram ao palco para badalar a emissora.

Mas a jornada de autoexaltação teve seu ápice de glamour mesmo na hora do Carnaval, com Milton Cunha. Normal – ninguém ganha dele. A plateia se divertiu e se deslumbrou com o apresentador e ex-carnavalesco que, de estilo único, em uma década de Globo consolidou-se como emblema da maior festa brasileira na mídia.

Mas o personagem transgressor, de presença marcante no vídeo (ganhou até imitação de Marcelo Adnet), a olho nu guarda um metódico estudioso, a caminho de concluir o terceiro pós-doutorado, e casado há 16 anos com o professor de Educação Física e dançarino Eduardo (Dhu) Costa. Ativista LGBTQIAP+ que venceu o preconceito, a violência familiar e a Aids, Milton Reis da Cunha Júnior, 60 anos, passou a vida na folia e vive de Carnaval – mas sem perder, desde adolescente, o rumo de onde quer chegar.

Está tudo na entrevista a seguir.

Rio Já:  Quando você imaginou que conseguiria viver de Carnaval?

Milton Cunha: Na verdade, eu carnavalizava antes de saber o que era isso. Com 4 anos, comecei a usar tanga e outras roupas que horrorizavam meu pai. Apanhei muito! Bem como ensinou Mikhail Bakhtin, que observava o cinema, o teatro, a literatura pela ótica da carnavalização. É, na verdade, um questionamento ao oficial, ao convencional – como padres, freiras, os preceitos religiosos. Sempre debochei disso tudo. E logo na infância aprendi aquilo que o Caetano resumiu numa frase: “De perto ninguém é normal”.

Rio Já: Qual a importância do Pará e da floresta na sua formação?

Milton: Conheci na infância os encantados da floresta, a Matinta Pereira. Minha família tinha uma casa em Peixe-Boi, para onde íamos nos fins de semana. Eu era o Ney Matogrosso de Belém, transava com meninos e os pais da rua. Aos 14 anos, me aproximei dos hippies, dos gays, das bichas, do povo do teatro, das prostitutas. Virei um ser limítrofe – e em casa, a repressão. Sou júnior, porque meu pai esperou o filho lourinho, do meio, para dar o nome dele. Meu mundo é caótico, desarrumado, sempre foi. Vai do moralista aos devassos.

Rio Já: Você sempre mirou o Rio como destino?

Milton: Com 15 anos, estava na faculdade de Psicologia e vim ao Rio para um Congresso. De ônibus, quatro dias para cá, quatro para lá. Fiquei fascinado com o potencial da indústria do turismo e do entretenimento. Importante: nunca quis ser a pobrezinha, que sofre sem condição, sem estrutura. Busquei a vida toda ganhar dinheiro e ter boas condições.

Rio Já: Como você começou?

Milton: Com a carteira de ator, fui para as casas de Chico Recarey tentar emprego. Usava ombreiras gigantes, rabo de cavalo até o chão. Sempre separei 30% da minha renda para roupas. Invisto na minha imagem e o guarda-roupa me ajuda a separar o personagem da pessoa real.

Rio Já: E como virou carnavalesco?

Milton: Fui convidado pela Beija-Flor, que tinha ficado anos com Joãosinho Trinta, e resolveu apostar em alguém novo. Quando o Anísio (Abrahão David, bicheiro e patrono da escola) foi preso, virei uma louca, bem estilo que queria. Lembro que na minha primeira viagem internacional, para Miami, cheguei no aeroporto com um chapelão e uma capa que ia até o chão. Vivia como num filme de Felini. Aliás, o cinema foi fundamental para mim. Vi todos os grandes diretores – Louis Malle, Pasolini, Zefirelli, Godard, Truffaut, Bertolucci. Sempre em busca de possibilidades do vir a ser. E contei com benfeitores fundamentais: Chico Recarey, Anísio, Boninho e Miguel Athayde.

Rio Já: Estilo é tudo?

Milton: Vivo há 60 anos debochando, sacaneando, mas fiz do jeito que quis. É uma necessidade da verdade, do assumido. Quero enfeitar a vida, como partes de um todo real.

Rio Já: Por que a mudança para a televisão?

Milton: Meu objetivo, desde que vim para o Rio, foi trabalhar na Globo. Um dia, ouvi de uma diretora de TV: “Se você não fosse tão viado, teria espaço aqui”. Os anos como carnavalesco, de 1993 a 2010, e todo o resto foram uma etapa para chegar à TV. Fui comentarista de rádio, colunista de jornal, debatedor no Sem Censura… Também fiz o Boi de Parintins por cinco anos. A televisão foi a segunda cartada definitiva.

Rio Já:Doeu largar o Carnaval?

Milton: Estava planejado. Vi a decadência de muitos colegas, numa função que é pesada, insalubre, precarizada. Muita gente genial na dureza. O desafio é não amarelar. O nervosismo me joga pra frente, me conecta com tudo que quero fazer. Enxergo Maju, Poliana, Sabrina como iguais a mim, com seus medos, desafios e projetos.

Rio Já: Você mantém uma ligação muito forte com a academia. É forma e conteúdo.

Milton: Estava no meio do doutorado quando fui para Globo. Preencho o salário com aulas e palestras. Tinha o personagem, que juntei à academia e à luz do palco da TV. Ninguém tinha diploma acadêmico. É uma loucura muito planejada. É característica dos loucos: eles sabem onde querem chegar.

Rio Já: E o planejamento inclui o casamento, a vida pessoal organizada, nada louca?

Milton: Tem a vida resguardada e a vida pública. Preciso da vida ordeira, a casa organizada, resolvida, as contas em dia, para os estudos e o trabalho mais reflexivo. Quando fecho a porta, é tudo arrumadinho. A erudição me conecta com os muito velhos, as pessoas mais vividas. Só escolho disciplinas sobre o pensar. No meio do ano, passei alguns dias na aldeia Bakairi, a sete horas de Cuiabá, com a decana Tânia Clemente, professora do Museu Nacional. Um perrengue (risos).

Rio Já: Para que isso?

Milton: Tenho sede, gana de informação, que me dá o arcabouço para derrubar o queixo de quem me ouve no estrelato.

Rio Já: Isso sem largar o Carnaval. Você frequenta ensaios, escolas pequenas, vai a eventos quase invisíveis.

Milton: O Carnaval é para experimentar. Preciso vivenciar tudo para levar esse conteúdo ao palco estrelado. Então, faço eventos para a Liesa, entrevisto os carnavalescos lá da Intendente Magalhães (avenida do subúrbio onde acontecem os desfiles das divisões mais pobres da festa). Não posso perder nada.

Rio Já:Você se considera um ativista LGBTQIAP+?

Milton: Sou filho da geração da Aids. Vi meus amigos morrerem. Em 1980, com 18 anos, passei a transar de camisinha e fiquei 30 anos nessa. Sou o único da minha galera que sobrevivi. Minha vida sempre foi de muito ativismo. Nas colunas do jornal “O Dia”, peitei Olavo de Carvalho, Dom Paulo Evaristo Arns, Chico Anysio, Millor Fernandes, Baby Consuelo, na luta contra a homofobia. Também atrasei minha vida porque comprei briga do ativismo. Sou um dos lutadores. Levei o “ser gay” para a frente da câmera.

Rio Já: E agora?

Milton: Quero um programa como o do Chacrinha ou o “Perdidos na Noite”. No escracho. Não posso morrer sem isso.