MONARCAS NOVIÇAS DA SAPUCAÍ

POR JAN THEOPHILO

Por um bom tempo, seja por pindaíba financeira ou aventuras de marketing, as rainhas de bateria de várias das principais escolas de samba do Rio tinham pouca ou nenhuma relação com as comunidades que deveriam defender, no ritmo preciso do samba no pé, na Sapucaí. E tome modelos, atrizes, cantoras de axé e funk, influencers e subcelebridades dos mais variados tipos. Mas o reinado das alienígenas parece estar terminando, e um episódio no carnaval do ano passado serviu como uma espécie de divisor de águas da ótima tendência.

No dia do ensaio de rua do Paraíso do Tuiuti, a rainha da bateria, Thay Magalhães, uma louraça dentista, moradora de um condomínio de luxo da Barra da Tijuca, ficou presa no trânsito. Todas as atenções do público se voltaram para a então princesa da bateria, Mayara Lima, que com performance impecável, conjugando os passos com os movimentos da bateria, em sincronia perfeita, ganhou as redes sociais com milhares de compartilhamentos. Em poucos dias o perfil da jovem saltou de 60 mil para mais de 400 mil seguidores.

“Acredito que tudo tem seu tempo, sempre postei vários vídeos de ensaios, sambando e brincando com a bateria”, narra ela. “Esse viralizou, confesso que não esperava, veio como uma avalanche, abriu muitas portas, meu Instagram começou a bombar, fiquei muito surpresa e estou colhendo os frutos até hoje”, acrescenta ela, que depois do Carnaval foi empossada de direito (porque de fato sempre foi) rainha da bateria Super Som, a orquestra da escola.

Hoje, entrevistar Mayara na quadra do Tuiuti é uma missão e tanto. Por onde ela passa é assediada, geralmente por meninas que pedem para tirar foto, conversam e enxergam nela que é possível alcançar seus sonhos. A sambista lembra a responsabilidade muito grande, mas se sente feliz com o reconhecimento. “Vejo as meninas com os olhos brilhando, mas é bom que elas saibam que é possível realizar os sonhos. Passei por vários momentos na escola e hoje me tornei rainha, mas sempre com muito esforço e sem deixar de sonhar”, explica.

Tímida, a monarca dos ritmistas da azul e amarelo de São Cristóvão ainda não se sente à vontade para interagir com os jornalistas. Por isso, se agarra à própria trajetória nas entrevistas. “Fui da ala de crianças, passista, musa, princesa e agora sou rainha”, relembra. “Sempre sonhei com isso, mesmo assim é uma emoção muito grande. A expectativa é enorme, mal consigo dormir, fico assim quando estou ansiosa, desconto na comida também”, brinca.

Na Beija-Flor, a troca da rainha se deu num processo eleitoral e cheio de significados.  Após reinar por 20 anos, Raíssa de Oliveira, que vinha da ala das crianças da escola, cedeu o posto a Lorena Raíssa, de apenas 16 anos, após escolha feita por uma comissão de personalidades da escola. As outras concorrentes eram Aieny Mendes e Flávia Custódio, passistas nilopolitana, como a escolhida.

A vida de Lorena e da Beija-Flor se misturam desde sempre – a jovem nasceu dia 29 de janeiro de 2007, logo após o ensaio técnico da azul e branco na Sapucaí. A mãe dela, Aline Souza, voltava em um ônibus da escola para Nilópolis, mas o veículo teve que desviar o caminho para a maternidade. Aline era passista da escola, mas antes delas, o avô, Jorge Damu, integrou a ala dos compositores e plantou o amor pela azul e branco da Baixada no clã.

E olha que não era uma família qualquer. Lorena tem nada menos do que 15 irmãos. E uma de suas irmãs, Lorrayne, chegou a se inscrever no concurso de rainha. Lorena se destacou com o samba no pé, misturado a referências de stiletto e até do passinho do funk. A combinação perfeita entre a renovação e a tradição encantou os julgadores. “Costumo dizer que eu não estou na Beija-Flor, eu sou da Beija-Flor. Nasci ali”, exulta a majestade adolescente.

Na verdade, uma veterana das aventuras nilopolitanas pela avenida. “Em 2013, fui o pequeno Beija-Flor em uma coreografia. Em 2014, entrei na ala das passistas, foi no enredo sobre o Boni. Em 2015, o falecido tio Laíla me botou no abre-alas e foi uma coisa incrível, uma emoção, eu pequenininha desfilando no primeiro carro”, lista ela, sorrindo.

Segundo Lorena, ainda é grande o preconceito em relação às rainhas mais jovens. “Mas o passista tem que levar o samba, mostrar que é uma cultura, uma dança, além de tudo, mostrar o que é amor pelo samba, pelo pavilhão e pela arte. Ser comunidade não significa que precisa nascer ali para ter amor pela Beija-Flor”, ensina. “Ser comunidade é querer mesmo estar ali, integrar o grupo que está ali, um por todos e todos por um, e amar o pavilhão. Comunidade é estar em todo ensaio de quinta-feira. É tudo isso e mais um pouco”, define. Mais raiz, impossível.

(Sabe como terminou o Carnaval do ensaio técnico do nascimento de Lorena? Beija-Flor campeã com o inesquecível desfile “Áfricas”, um dos maiores de todos os tempos, que conquistou todos os prêmios da crítica.)

Em novembro do ano passado, a Imperatriz Leopoldinense anunciou Maria Mariá como nova rainha de bateria, em substituição à cantora IZA, que deixou o trono em meados de outubro.

A nova monarca tem 20 anos, é moradora do Complexo do Alemão e está na escola desde criança. Até o anúncio, ela desfilava na ala das passistas. A nova rainha de bateria da Imperatriz é estudante de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é faixa preta de taekwondo. “A alegria de ser uma mulher preta, favelada, atleta, universitária de uma faculdade federal e do CPX carrega a gana e a vontade de representar tudo que a escola merece”, festeja ela, citando a sigla do conjunto de favelas.

A estudante, aliás, recebeu uma coroa banhada a ouro em formato de boné com a sigla CPX, tão falada na campanha eleitoral. O carnavalesco Leandro Vieira explica a mensagem embutida no acessório: “Coroas são símbolos de poder. A que agora está sobre a cabeça da Maria se estende para outras cabeças como sinal de poder coletivo. É uma coroa popular: por ser comum a tantos, é singular. Sobre sua cabeça, o Complexo e a Imperatriz. Sua territorialidade banhada a ouro e cravejada de pedras brilhantes”.

Maria foi coroada por Evelyn Bastos, rainha de bateria da Mangueira. As colegas Bianca Monteiro, da Portela, e Lorena Raissa, da Beija-Flor, também estiveram na quadra e participaram da cerimônia. Segundo a mangueirense, conquistas como a de Maria Mariá ajudam a convencer o público de que as rainhas não precisam ser midiáticas – mas apenas representar a legitimidade de seus territórios. “Muita gente ainda acha que só ter identidade com a escola não é suficiente”, observa ela, “mas estamos mostrando que as rainhas devem, sim, vir da ala de passistas. Tem que ter não só habilidade com o samba, mas conexão com o toque dos orixás das baterias. E graças a esse trabalho hoje começamos a ter um quantitativo bacana de rainhas oriundas de suas comunidades”, festeja a nova integrante da família real do samba, que, com as parceiras novas e experientes, garante a alegria no reino do Carnaval.

Bastidores da realeza

As três novas rainhas de bateria do Carnaval carioca se encontraram numa ensolarada manhã de janeiro, para o ensaio fotográfico que produziu as imagens da capa e da reportagem principal desta edição da Rio Já. A fotógrafa Rafaela Cassiano escolheu a Cidade do Samba como cenário para o trabalho, que ficou marcado pela felicidade e a dedicação das monarcas estreantes da folia. “São lindas, solícitas e conectadas à festa. Mostraram entender perfeitamente a importância dos postos que ocupam agora. Foi um prazer fotografá-las”, atesta a autora do ensaio.