ARTE: O BRAVO E TALENTOSO NILTON

Jobi: um dos lugares que conservam bem os seus quadros

Luisa Prochnik

Conjugado quando se tem tempo e para se deixar levar por uma paisagem, uma obra de arte, uma construção histórica. No viajar da mente, sem pressa, costura-se, internamente, uma relação entre o que se vê, o que se é e o que se sente. As pinturas de Nilton Bravo, em telas ou diretamente nas paredes de bares e botequins, estimulam o solitário frequentador, sentado no balcão, de frente a um copo de vidro e a uma garrafa de cerveja, a mergulhar em si mesmo ou apenas a esvaziar a mente, após um dia cheio de trabalho. Segundo o próprio, em entrevistas dadas antes de falecer, foram quase dois mil estabelecimentos decorados com uma espécie de janela criada a pinceladas, que traz, comumente, paisagens idílicas e bucólicas. Pinturas que disputam com falatório, buzinas, música alta, e, mesmo assim, convidativas o suficiente para que a rotina corrida fique, por momentos, esquecida.

– O que é uma paisagem bucólica, né? É um rio passando na beira, uma casa na árvore, e ela não precisa se remeter a este ou àquele lugar. Ela é a forma como se interpreta uma paisagem bucólica, que é agradável num bar, que é palatável. (…) Então, aquilo é uma paisagem, uma representação imaginária do bucólico – explica Cícero de Almeida, museólogo e atual diretor do Museu Histórico Nacional.

– O padrão dele era uma paisagem que eu chamo de escapista. Eu acho que esse elemento escapista tem a ver com o contexto da obra, que é a pessoa que ia lá tomar seu café ou ia tomar sua cerveja, e ela meio que se perdia na obra, naquele sonho – completa Evandro von Sydow, poeta e professor do CAP UFRJ, um apaixonado por botequins e pela obra de Nilton Bravo, não necessariamente nesta ordem.

“Isso é uma contemplação”

– Aí você senta, não tinha uma televisão, não tinha ninguém para olhar. Você começa a olhar aquele painel. E, aí, você está focando nele, focando… E você começa a explorar aquilo com a vista e o teu cérebro vai registrar. Isso é uma contemplação – acrescenta Tânia Bravo, sobrinha de Nilton, a quem prefere chamar de “titio”.

– Em  algumas matérias que eu li, ele fala isso: as pessoas gostam de sentar, de olhar a paisagem,  é um escape, né? Você está no meio da cidade e, de repente, está vendo um laguinho, uma garça – contextualiza Rixa, que, após uma vida dedicada ao programa Vídeo Show, da TV Globo, hoje sorri ao se apresentar como aposentado – Nilton Bravo é o artista mais visto do Brasil, porque no Rio de Janeiro ele estava em toda parte. Cada bar era frequentado por dezenas, centenas de pessoas por dia. Então, todo mundo conhecia a obra do Nilton Bravo nos anos 60 e 70.

Explicar o sucesso do pintor Nilton Bravo aos mais jovens, sempre acompanhados de seus aparelhos de celular, que são da época em que bar bom é o que tem telão no futebol, exige um esforço. E uma tentativa de comparação, para alcançar a dimensão dele em nossa cultura popular, como quando escreve Nelson Motta, em sua coluna no Jornal do Brasil (1967): “seus painéis são mais conhecidos de qualquer quadro de Picasso ou Van Gogh”. E pelo próprio Nilton Bravo em entrevista concedida nos anos 80 “(…) quando o Pelé fez o milésimo gol, eu já estava com 1.500 bares”.

 – Antigamente, não tinha televisão. Então, tinha essa preocupação realmente de as pessoas irem para um lugar bonito. Então, vamos botar uma pintura? Vamos botar uma pintura. E Nilton Bravo acabou se tornando, nas palavras de Carlos Heitor Cony, o Michelangelo dos Botequins – revela o famoso epíteto de Nilton.

Cony deu o título “O Miguel Ângelo dos botequins” em sua coluna, escrita em 1998, no jornal Folha de São Paulo: “Herdeiro de nobre tradição pictórica, ele repetia Miguel Ângelo passando a vida pendurado em andaimes, cobrindo paredes com cores e formas. O botequim era a sua Capela Sistina”. As comparações não param por aí, seguindo com “o Rubem Braga da paleta, o Vinícius de Moraes do pincel”. E, do Brasil, por que não voltar ao velho continente e ousar? Nilton Bravo, o Toulouse-Lautrec – maior criador de cartazes de Paris – da Cidade Maravilhosa. Guardadas todas as devidas diferenças entre eles, claro. Uma delas, inclusive, é que Nilton Bravo não teve formação artística. Aprendeu com o pai e foi um autodidata, que veio de uma família de pintores, que passa a labuta de pai para filho desde 1885.

– Tinha um quadro fantástico no Cachambi, no Café e Bar Rio – Brasília, da dona Margarida. Ela conta que os dois pintaram ao mesmo tempo. O pai, como era canhoto, começou do lado esquerdo e o outro do lado direito. E se encontraram no meio. Chegou a ser tombado, mas está desaparecido. – lamenta Evandro, que em suas andanças acompanhou o sumiço e a deterioração de várias obras do pintor.

– Ele está fresco ainda na memória de quem está vivo, como eu. Mas os jovens já não vão conhecer mais, quem tem 20 já não vai saber o que é – reforça o coro Rixa.

As comparações e os superlativos tornam-se ainda mais necessários quando a maioria das obras de Nilton Bravo já não existe mais ou têm seu paradeiro desconhecido, mesmo as obras tombadas. Em 1986, cinco obras de pai e filho foram tombadas pelo IRPH – Instituto Rio Patrimônio da Humanidade – e, em 2018, a listagem foi ampliada e pode ser acessada no site oficial.

Nilton Bravo é o artista mais visto do Brasil, porque no Rio de Janeiro ele estava em toda parte. Cada bar era frequentado por dezenas, centenas de pessoas por dia. Então, todo mundo conhecia a obra do Nilton Bravo nos anos 60 e 70 (Cícero de Almeida, diretor do Museu Histórico Nacional).

Evandro von Sydow, poeta e professor do CAP UFRJ, um apaixonado por botequins e pela obra de Nilton Bravo

 – As pinturas de botequim tombadas pelo município são obras particulares, localizadas em imóveis privados, como bares e restaurantes. Quando um imóvel muda de uso, passa por reformas ou altera sua configuração, a permanência das obras no local não é obrigatória, e a proteção legal não implica, necessariamente, sua irremovibilidade – explica fonte oficial do IRPH em resposta às perguntas feitas para esta matéria – No entanto, alterado, removido ou destruído sem autorização, o responsável pode ser notificado e autuado conforme legislação municipal.

– O tombamento não é garantia de nada. Às vezes, nem os proprietários querem o tombamento – diz Evandro, que foi de bar em bar, ao lado de profissionais do IRPH, contribuindo para o levantamento das obras de Nilton Bravo.

– Eu lembro que até meu pai mesmo falava em relação a essa coisa, principalmente dos bares. Os bares são lugares que não têm muita condição financeira mesmo – relata Simone Bravo, filha única do Nilton, com uma casa repleta de quadros que herdou e um coração cheio de ótimas lembranças – Eu tive um pai maravilhoso, leve, um pai muito alegre.

– Há um desrespeito natural ao tombamento, uma incompreensão. Então, você fecha o bar e o outro nem sabe que aquilo é tombado, manda quebrar, faz uma parede nova. Se você não incorpora, não importa se tombaram – é meu, faço o que eu quero -, o que não é verdade. Quando é tombado, você tem que respeitar os princípios do tombamento – relata Cícero, que propõe – O tombamento foi um ato do executivo, um ato intelectual, mas além de não ter fiscalização – por ser praticamente impossível – as pessoas não valorizaram. Quando o reloginho virou, e reportagens fazem isso, é que o dono do bar vê que tem alguma coisa. (…) O melhor que pode acontecer é que as pessoas se apropriem daquilo como valor, aí sim elas começam a preservar.

Evandro e Rixa são o que podemos chamar de flâneurs contemporâneos. Os dois caminham pela cidade – principalmente no subúrbio, na zona oeste, na zona norte e na Ilha do Governador -, juntos ou separados, atrás de histórias que estão desaparecendo, uma espécie de arqueologia e turismo, que inclui interesse por casas antigas, sobrados, azulejos, letreiros de outras épocas. E, claro, de obras ainda desconhecidas da paixão de ambos, o Nilton Bravo.

– Eu sempre falo com o Evandro assim: a gente está sempre à procura do penúltimo Nilton Bravo – diz Rixa

– A gente fala que é penúltimo, porque o último parece que vai morrer – conta Evandro que, apesar de saber que é muito difícil, ainda guarda esperança de achar outras pinturas dele por aí.

– Eu encontrei, que para mim era inédito, na Ilha do Governador, no bairro Tauá.  E era espetacular: tinham quatro murais – divide Rixa, que, na sequência, convidou o amigo para apreciar o tesouro.

– Aí, a gente fez um passeio ali pela Ilha do Governador. E deixamos esse bar para o final. A gente fez várias coisas para aumentar a sede e chegar lá e coroar. Aí foi um achado fantástico, né? – relembra Evandro.

Se o tombamento não impede que quadros e painéis do Nilton Bravo sejam destruídos ou desapareçam, certamente tiveram papel importante para alavancar a carreira do pintor, quando já não havia mais tantas novas solicitações de botequins. Colecionadores começaram a fazer encomendas e um marchand conhecido o colocou no meio da alta sociedade. Em 1979, Luiz Alphonsus gravou um curta-metragem “Nilton Bravo – o Filme”.

– O Luiz Alphonsus sempre gostou do trabalho do Nilton e aprendeu a pintar com o Nilton – que também teve muitos alunos. E, então, o Alphonsus fotografou pessoas sentadas no bar bebendo, ao fundo, uma tela do tio Nilton. E isso foi para a tela, não tem fotografia. Tanto o Luiz Alphonsus pintou como titio também – completa a sobrinha Tânia.

A versão Nilton Bravo em galerias durou pouco perto do que poderia ter sido, tendo ele morrido jovem, aos 66 anos, mesma idade do pai, deixando sua carreira mais atrelada aos locais que de fato o projetaram: bares e botequins.

– Não ficarei admirado se, no dia do Juízo Final, ficar sabendo que Nilton Bravo foi o maior artista brasileiro de nosso século – frase que encerra a célebre coluna de Cony e que, por tudo e por tanto, assim como o epíteto famoso por ele criado, merece ser repetida.

Onde encontrar a apreciar Nilton Bravo pela cidade?

Na Adega Flor de Coimbra, na Lapa, o quadro se destaca

Uma pergunta difícil de responder. As duas entrevistas foram realizadas em locais com dois quadros de Nilton Bravo em ótimo estado: Jobi, no Leblon, e Adega Flor de Coimbra, na Lapa. No entanto, tirando os locais que valorizam e destacam a obra de Nilton, outros tantos se desfazem com tamanha rapidez, que a lista pode ter alteração antes mesmo da publicação desta reportagem.

Ao longo dos anos, os ‘nilltonbravófilos’ visitaram e revisitaram bares e botequins para conhecer mais da sua obra e, também, checar se ela resiste ao tempo.

– Conheci muito lugar com pinturas dele, que pouca gente soube ou sabia quando o inventário da prefeitura começou a ser feito. Ali na Santa Luiza, por exemplo, eu via duas pinturas lá, mas depois o lugar foi fechado – conta Cícero.

– O cronista carioca João Antônio era “niltonbravófilo”. Então, ele começou a anotar onde tinha Nilton Bravo. Existem essas folhas de caderno e foi a partir desse, que é o maior inventário em que eu tive contato, que eu fiz o mapa da cidade. Eu botei um alfinetinho: aqui tinha, aqui tinha, aqui tinha, aqui tinha, aqui tem.

– Trouxe uma cola aqui. Tem esse aqui onde a gente está, na Adega Flor de Coimbra. No Adegão Português, no Campo de São Cristóvão, tem dois. Em Tauá, Ilha do Governador, tem quatro. Bar Novo Horizonte, em Fátima, tem um. Esse bar está sempre mudando de nome, mas lá tem um. No Gurilândia da Tijuca, tem um ótimo, que é uma graça. Tem um colégio no Alto da Boa Vista, chamado escola Santa Marcelina, é onde tem mais pintura do Nilton Bravo. Recentemente, encontrei uma em um apartamento em Laranjeiras, me procuraram e tinha um pequeno afresco lá.

Bar Flôr do Tâmega: mural de Eduardo Costa Mattos

OS SEGUIDORES DO GRANDE PINTOR

Nilton Bravo não foi o primeiro nem o último a pintar paredes e telas para botequins.

– Isso aí é uma tradição, eu acho que na europa já tinha, na era Medieval já tinha você pintar as tabernas com motivos, com vinhos e mesas, beberrões e carteado. No Brasil, eu não sei precisar quando começou, mas eu sei que tem uns cartoons dos anos vinte, trinta. Charges que falam disso, de pinturas em botequins. O Nilton Bravo só começou nos anos 60. O pai dele já fazia, o avô – relata Evandro.

Na listagem de “Pinturas de Botequins” do IRPH, além de Nilton Bravo pai e filho, encontramos o nome de Amaro Anacleto Gonçalves Ribeiro e Manoel Araújo Rodrigues, mas a maioria das obras citadas no documento são de autoria desconhecida. Até mesmo Nilton Bravo não assinou alguma de suas obras, deixando dúvidas em relação ao autor, ou teve pinturas tão retocadas e modificadas que, por pouco, não ficam de fora do tombamento, como o painel externo da Confeitaria Rio-Lisboa, no Leblon, incluída com estado de conservação considerado ruim, já que, segundo o IRPH, a pintura está muito deteriorada com interferências.

Rixa inclui em seu mapa digital pinturas de botequins que não são da família Bravo também, entre elas: Façanha (pintou o Flôr do Tâmega, no Santo Cristo); Russo (pintou o Bar Maringá, em Copacabana); César Augusto Castelão (pintou o Bar Pimazia, em Ramos).

Sem certezas ao ponto de propor uma lista para turistar obras de Nilton Bravo, fica o convite para flanar por botequins tradicionais e, quem sabe, se deparar com uma obra do nosso Miguel Ângelo ou mesmo de outro pintor. E tomar uma cerveja gelada contemplando a paisagem.