HISTÓRIA: O GRITO DO BAIRRO DO CAJU

Tem gente viva, e sedenta por reconhecimento e visibilidade, no bairro que é um dos mais antigos do Rio, mas que ficou famoso pelos cemitérios

Luisa Prochnik

TOdos por um. Neste caso, todos são os moradores do bairro do Caju e o um é o bairro em si, local aterrado, em boa parte degradado e que exige reconhecimento pelo seu valor histórico, econômico e cultural. A proposta de lutar pela comunidade tem nome, página nas redes sociais, é base de diversos trabalhos acadêmicos, atua junto aos moradores – em atividades culturais e infantis – e pressiona políticos, exigindo visibilidade e respeito às demandas da região. A proposta é o Coletivo Caju Cultural, uma organização, hoje liderada por Fabiana Keller, com a premissa principal de levar a voz dos habitantes ao poder público e que, assim, sejam construídas políticas baseadas nos interesses de quem mora e trabalha no local. Fabiana, ou como é chamada pelas ruas do bairro, Fabi, não nasceu no Caju, mas se casou com um morador da região. E, assim como muitos cariocas, antes de se mudar para lá, Fabi relacionava o bairro apenas aos cemitérios presentes no local.

– Quando ele falou “eu moro no Caju” eu cometi aquela gafe tradicional de falar assim: “ué, mas tem gente viva no Caju?”. Porque, pra mim, Caju era cemitério. Como para quase todo o Rio de Janeiro” – conta durante o passeio turístico e político pela região a Fabi, professora, criadora e gestora do Coletivo Caju Cultural, guia de turismo, ativista socioambiental e cultural, que, depois do casamento, já acumula mais de vinte anos vivendo no bairro.

 – Eu perguntava: “onde eu vou caminhar?”.  Porque eu andava dezoito quilômetros todo dia, da Gávea ao Lido e do Lido para a Gávea. Adoro caminhar. E ele falava: “ué, caminha na rua do cemitério”, de uma forma natural. E aí eu fui tentar entender que bairro é esse – completa.

Com olhar de quem vem de fora, Fabi demorou a compreender a relação ambígua entre os moradores da região e os cemitérios. Afinal, esses espaços tiveram participação na degradação do bairro e, além disso, essa forma de relacionar o Caju apenas com o lugar onde os mortos habitam incomoda aos vizinhos vivos, cientes de que o bairro tem muito mais a oferecer. Ao mesmo tempo, os cemitérios já estão lá e fazem parte do cotidiano de todos.

– O morador já internalizou tanto a existência do cemitério que eles atravessam, caminham, as crianças pegam frutas dentro. Não só crianças. Adultos, também. É uma relação muito controversa – pondera Fabi.

– Meu avô era funcionário no cemitério. Meus primos pulavam o muro da vila para brincar de pique-esconde no cemitério. E tinha árvores frutíferas. Então, onde falam que a manga do cemitério é mais doce. Nunca que eu iria comer uma manga de cemitério, mas nessas histórias que a gente escuta os que dizem que é muito bom – acrescenta Mauro Célio, bacharel em turismo que, atualmente, complementa a renda dirigindo carro de aplicativo. A família de Mauro é da região e, apesar de nunca ter morado por lá, guarda com carinho suas memórias em relação ao bairro.

– Cartola morou no Caju. Só que ninguém conta isso porque ele é o Cartola da Mangueira. E vai continuar sendo. Na verdade, hoje eu brinco assim: ele continua sendo do Caju, porque ele está aqui, acabou sendo enterrado aqui – completa Fabi.

A criação não oficial do Coletivo Caju Cultural foi em 2019 com um abraço simbólico à Casa de Banho, ponto turístico onde funcionava um museu, mas há anos fechado. O abraço ali era também de certa forma de Fabi em relação ao bairro que a abrigou, onde ela constituiu sua família e aprendeu a amar.

– Eu não saio do Caju para nada – ela diz, sorridente.

Essa paixão foi uma mistura da personalidade investigativa e interessada de Fabi a um bairro cheio de histórias e curiosidades, boa parte aterrada junto à sua localização à beira mar. O Caju é um dos bairros mais antigos e históricos do Rio de Janeiro, localiza-se na Zona Portuária. O bairro tem o início da sua história no ano de 1800, com a vinda do Império Português para o Brasil e, na sequência, a colonização por muitos portugueses, dedicados à pesca.

Hoje, a maior parte do Caju fica distante da Baía de Guanabara, como a Casa de Banho, que, antes, era colada às areias brancas da praia local. Quanto mais Fabi pesquisava, mais novidades e descobertas ela fazia relacionadas à região. De paixão, isso se tornou uma profissão, com ela virando pesquisadora local. Descobertas um tanto desconhecidas, como no caso da própria Casa de Banho, que é associada à família de D. João VI, mas, segundo a Fabi, não há registro oficial que prove a presença de D. João no local e essa relação foi construída ao longo dos anos, um factóide, ela afirma. A casa era da rica família Tavares Guerra, comerciante de café. E, antes de ser fechada, abrigava o Museu da Limpeza Urbana, administrado pela própria Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana).

Uma casa histórica, tombada, mas esvaziada. Através do Caju Cultural, Fabi tenta que o Iphan atue na reabertura do museu. Não da Limpeza Urbana, tema importante, como ela mesma diz, mas um museu que conte a história da região. Uma região de passado nobre e presente repleto de artistas, pescadores e comerciantes. Uma região que, assim como a Comlurb, abriga diversas empresas, muitas delas na área de logística. A Ponta do Caju até certo momento na história fazia parte do bairro de São Cristóvão. Hoje, é um local com apenas uma saída e uma entrada, ambas as ruas de mão dupla. Esse isolamento do resto da cidade contribuiu para a deterioração do bairro.

– Tudo aquilo que não pode ser visto na cidade maravilhosa é jogado para o Caju, que não faz divisa com bairro algum – denuncia Fabi.

Enquanto a entrevistada comenta, uma carreta com rodas de avião enormes passa perto de nós. A quantidade de grandes veículos que trafega pelo local é impactante e deixa marcas nas ruas, todas esburacadas. E, com ruas estreitas, é comum que eles demorem a manobrar para poderem se locomover e isso termina por formar trânsito e dificultar a travessia dos pedestres, além de afastar as crianças da rua, mesmo em regiões bucólicas, arborizadas. E o medo vai além do atropelamento.

– Aconteceu aqui no Caju mais de uma vez de o contêiner virar e alguém morrer. Morreu de quê? De contêiner – uma tragédia que pode ser vista em escombros do que um dia já foi um bar. Nesse acidente, especificamente, não houve vítimas além da destruição do comércio local.

A caminhada pela rua Praia do Caju, onde água e areia estão debaixo de asfalto desde o aterramento para a construção da Ponte Rio-Niterói, é agradável. A brisa do mar ganha força e é possível ver diversos casarões centenários, alguns bem cuidados, outros precisando de revitalização.

O bairro ficou de fora das obras do Porto Maravilha, realizadas antes das Olimpíadas de 2016. Sem benefícios das melhorias, mas, também, sem o processo de gentrificação, um alívio para os moradores que, apesar dos problemas já citados e outros, como falta de transporte público, não querem sair dali por nada. A exclusão do Caju do plano para a zona portuária, na época, foi apontada por críticos como a valorização dos contêiners em detrimento da qualidade de vida dos moradores.

– Estão trocando a gente por contêiner, como assim? Quanto mais espreme, mais a gente vai agir – música entoada pelo Projeto Cria em vídeo gravado nas ruas de comunidades do bairro do Caju. O vídeo segue com críticas ácidas a forma como o bairro é tratado e valoriza a história da região e a importância da cultura. O Projeto Cria é uma organização fundada em 2018, com experiência em escolas públicas e iniciativas sociais. Enquanto os moradores são espremidos, mais coletivos surgem exigindo que a voz dos moradores do Caju possa ser ouvida.

Gilberto Alves da Silva, mais conhecido por Betinho, chegou ao Caju aos 14 anos e durante três décadas trabalhou como pescador. Chegou a ver a praia mais de perto e as águas e areia mais convidativas. Outros moradores relatam a presença de tartarugas e cavalos-marinhos. Hoje, no entanto, o relato de pescadores sobre a Baía, em formato de música, traz história bem diferente do passado.

– Sou caiçara, sou sim. Jogo a rede no mar. Sou caiçara, sou feliz e vou pescar. Jogo a rede no mar, só vem geladeira e sofá. Jogo a rede no mar, não tem peixe para matar. Jogo a rede no mar, tem cadeira, fogão e sofá – canta Arnaldinho, marceneiro, que trabalha na beira do mar. O autor da música é o Bita, um pescador local.

Arnaldinho traz a triste realidade das águas da Baía de Guanabara na música, mas o amor dele pela Quinta do Caju é declarado: “não saio daqui por nada”. Há muito o que se fazer para melhorar a região, mas a natureza é sábia e sabe ser exuberante, mesmo diante das dificuldades. Gaivotas sobrevoam os barcos em grande quantidade: temos peixes em abundância. Dia bom para a pesca, alegria dos trabalhadores remanescentes do que já foi uma das maiores colônias de pescadores do país. Alegria também dos moradores, que vão se aproximando das caixas de pescado e saindo, sorridentes, com seus peixes na sacola.