BÁRBARA SUT: UMA CARIOCA ARREBATADORA

Num espetáculo de excelência como o musical Torto Arado, a atriz encanta por atuação no papel de Belonísia

Aydano André Motta

Como se diz hoje em dia, são muitas camadas.

Começa com “Torto arado”, o épico best-seller escrito pelo baiano Itamar Vieira Júnior, adaptado livremente para o teatro em forma de musical, a partir de ideia e direção de Elisio Lopes Júnior. Continua no protagonismo feminino para a odisseia de vida e morte nas entranhas do sertão baiano, que desfila insubordinação social, combate e redenção, ao abordar mazelas como trabalho análogo à escravidão, disputa de terra, racismo, resistência, sobrevivência. Até se consumar em fé, magia, poesia e religiosidade totalmente brasileiras.

É, numa palavra, espetacular. Com direito a alguns arrebatamentos – o maior deles, Belonísia.

A personagem que perde a fala ainda criança ganha vida na atuação magistral da carioca Bárbara Sut. A tragédia banal acontece logo na primeira cena – e o resto você só descobrirá assistindo, porque ‘Rio Já’ não está aqui para dar spoiler. Para compensar, oferece orientação segura: a atriz está entre os pontos altos de um dos melhores espetáculos da temporada, aclamado por crítica e público, que cumpre turnê pelo Brasil.

E um dos destaques do elenco majoritariamente baiano é a carioca de 29 anos, há 21 na estrada do teatro – sim, desde criança, aos 8, numa peça baseada no “Poema do medo”, de Bertold Brecht, a devastadora história de uma infanticida. Não foi no Rio, mas em Curitiba, para onde Bárbara se mudou muito nova com a mãe, a escritora Helena Sut (o sobrenome, francês, vem de um tataravô).

Descoberta a paixão pelo teatro, ela rapidamente encontrou seu caminho na multiplicidade artística e na experimentação de linguagens e formatos. Passou por balé, hip hop, canto, consolidando a vocação aprimorada na UniRio onde formou-se em teatro. “Eu me defino como artista”, resume. “Também sou cantora e compositora; penso e trabalho a arte além dos rótulos”, acrescenta ela, que tem álbum de músicas disponível nas plataformas de áudio.

As influências são dois totens da MPB: Elis Regina, a que mais ouviu, “das maiores intérpretes do Brasil, pela entrega ao microfone”, e Gal Costa, por ostentar timbre de voz muito parecido. Mas não para aí. “Sempre ouvi muito Milton Nascimento e, mais recentemente, me aproximei de Alaíde Costa”, lista ela, que em 2022 interpretou a veterana (89 anos) no espetáculo “Vozes negras – a força do canto feminino”. Virou referência.

Os musicais estão na carreira de Bárbara também desde o início – com 18 anos, ela encenou um biográfico, sobre André Rebouças, no Galpão da Ação da Cidadania. Aos 22, encenou versão de “Romeu e Julieta” com músicas de Marisa Monte, e passou meses viajando pelo Brasil. O trabalho abriu as portas do audiovisual e, além de sitcons, a atriz fez novelas, a principal delas “Amor perfeito” (2023), na TV Globo.

“Quero demais me surpreender. Dar nova entrevista a você, daqui a um ano e poder dizer: olha quanta coisa aconteceu. Estou aberta ao mistério”

Um dos diretores da produção foi justamente Elisio Lopes Júnior, que comanda “Torto Arado – o musical”. Ele convidou Bárbara para fazer teste, visando ao papel de Belonísia. “Interessante é que li o livro e fiquei impressionada justamente com ela”, lembra a atriz que, por causa de trabalho em São Paulo, recusou.

Mas, em 19 de junho do ano passado, na véspera do dia marcado, acordou com a intuição de que tinha de ir para Salvador, onde seria a audição. “Dá tempo?”, perguntou ao diretor, por telefone. “Vem”, respondeu ele. “Fiz mochila às pressas, ao mesmo tempo em que pedi o táxi para o aeroporto, em cima da hora”, recorda ela, num sorriso que destaca bochechas lindas e olhos puxados, sobre a viagem só de ida ao encontro da sua personagem.

Bárbara aplica outros saberes ao exercício virtuoso de viver Belonísia, entre eles a psicanálise, formação que iniciou em 2020, na Sociedade Iracy Doyle (Spid). “Quis entender sobre os processos do inconsciente e do desejo”, relata. “Desenvolvi escuta peculiar para a sensibilidade do corpo além da palavra”, sublinha ela, que fez mestrado sobre o trauma como performance.

Na conversa de pouco mais de uma hora, Bárbara faz pequena pausa para reconhecer que busca “saber e viver um pouco de tudo” – daí tocar baixo, surfar, andar de skate, fazer trilha e se revezar entre praias e cachoeiras, no lado mais carioca do cotidiano. “Vivemos num lugar muito exuberante”, constata ela, destacando a diversidade de interesses como ferramenta para seu ofício. “Como atriz, dá uma série de recursos”. No campo dos sonhos, está também o de ser passista da sua Mangueira, paixão que se acentuou no desfile, o do enredo “Histórias para ninar gente grande”, do samba com o verso para Marielle Franco, campeão de 2019.

A vida doméstica ainda tem lugar para jardinagem e trabalhos manuais. “Sou mãe de planta”, anuncia. “Gosto ainda de fazer trabalhos manuais em casa. Pinto, furo parede, monto meu espaço do jeito que quero”, revela, sobre o apartamento em Ipanema onde mora com a caramelo Greta.

Curioso que, no palco de “Torto arado”, a iluminação propositalmente intensa, muito branca, disfarça a negritude de Bárbara, mas você aí não se engane. As histórias da brutalidade mais brasileira também atravessaram o caminho da atriz. “Sempre fui negra, não é algo que aconteceu de repente”, avisa, citando Grada Kilomba, escritora e psicóloga portuguesa que aponta o racismo como ferramenta discursiva. “Consigo hoje em dia identificar negritude. Há violência, mas há prazer, amor perfeito, cultura, dança. Algo que vai sendo construído, não apenas no lugar de dor”, sublinha ela.

As muitas leituras sobre raça e gênero mantêm Bárbara nas trincheiras das batalhas progressistas. “Temos conquistas inegáveis, caminhamos muito na direção certa, mas o racismo se atualiza velozmente”, analisa. “A extrema-direita está muito ativa e atuante, em especial num Congresso Nacional machista e misógino. Felizmente, as artes sempre foram espaço aberto e podemos mostrar outras faces além das ideias prontas. Tem muita coisa acontecendo”, atesta, citando a Raquel de Taís Araújo – uma atriz negra e protagonista – em “Vale tudo”, a novela das 21h da Globo, como exemplo.

Há, claro, recuos. Quando fez Romeu e Julieta, Bárbara respondeu mais de uma vez sobre a experiência de interpretar a personagem de Shakespeare “sendo negra”, como se houvesse uma lei restringindo o papel às brancas. “Ao ator que viveu o Romeu, perguntavam sobre a dramaturgia, a complexidade. De mim, queriam saber do cabelo”, lamenta.

Tudo bem. Durante muito tempo, ela teve certezas, sem dar espaço a dúvidas, mas hoje busca somente ser feliz nos melhores encontros. “Quero demais me surpreender. Dar nova entrevista a você, daqui a um ano e poder dizer: olha quanta coisa aconteceu”, planeja. “Estou aberta ao mistério”.

Muitas camadas de Bárbara Sut, a incrível Belonízia de “Torto Arado – o musical”. E outras, diversas, virão.