PICADINHO: NÃO TEM NADA MAIS CARIOCA QUE ELE

Bruno Agostini

Outro dia senti um súbito desejo. Comer o picadinho dos Gajos d’Ouro, em Ipanema. Queria resgatar lembranças infantis, memórias com o meu saudoso avô Mário. De quando eu quase sempre pedia esse prato nos almoços em família no Antiquarius, que eram naquele início dos anos 1980 o meu ápice gastronômico, a mais refinada e deliciosa das refeições. Talvez por querer por muitos anos manter a memória intacta, eu não me lembro de ter pedido nenhuma vez mais, depois de adulto, o picadinho no histórico restaurante português do Leblon. Nem mesmo nos Gajos d’Ouro, que é a representação atual da cozinha do Antiquarius, servindo praticamente o mesmo cardápio, que é preparado pelos mesmos cozinheiros, e que é também servido pelos mesmos maîtres de sempre, como o André, o Otávio e o Leitão. Quando abriu as portas, os Gajos tinham cerca de 40 ex-funcionários da casa da família Perico, de raízes alentejanas.

Sem me dar conta que teria um benefício com isso, eu reservei o almoço de sábado para passar uma tarde tranquila nos Gajos d’Ouro, sem pressa, sem compromissos posteriores. Vi que dei uma grande sorte, ao receber o couvert. Além dos quitutes de sempre, destacando os croquetes, os bolinhos de bacalhau, o queijo de ovelha derretido, o queijinho frescal e o patê de fígado, fui brindado por um copinho de caldinho de feijão, o que não é habitual.

– É o caldinho da feijoada – informou o Paulo Gilson, que tem me atendido com sua simpatia.

Quando pedi o picadinho, tive uma boa ideia: aceitar a sugestão dada por ele de repetir o caldinho, mas desta vez para regar o prato, encharcando com ainda mais sabor esse emblema da cozinha carioca, tão simples quanto delicioso.

A receita continua a mesma dos meus tempos de criança, e eu tenho na cabeça exatamente como ela era. A carne, filé mignon, é picada na ponta da faca, miudinha mesmo. Refogada na manteiga, não por muito tempo, para se manter suculenta, ganha um molho espesso, que eu imagino ter caldo de carne e vinho tinto, talvez algum ligeiro destilado, para uma flambada generosa, não posso ter certeza. O fato é que o serviço do picadinho dos Gajos é de uma lindeza só. Ele vem à mesa numa travessa de metal, coroado por um ovo poché de gema mole, como se deve, e escoltado por duas bananas fritas. As guarnições, arroz, farofa simples, só na manteiga, e caldo de feijão, são servidas à parte, em suas respectivas travessas. Assim que meu prato foi lindamente montado, solicitei o caldinho de feijão, que reforçou o tempero, trazendo ainda mais grandeza ao meu mero picadinho, que para mim significa um prazer gigante. Já estou decido a voltar aos Gajos – num sábado, mas é claro – levando a filha, para transmitir a ela esse legado, que assim vai chegar à quarta geração da família, se perpetuando também nas lembranças dela. Banalizaram o termo cozinha afetiva, que eu até evito usar: deixo para casos como esse: esse picadinho é puro afeto, é amor, é memória, é imaginação. 

Lembrei das origens do prato. Diz a História que o picadinho como conhecemos hoje nasceu nos restaurantes populares da Lapa e do Centro, no final do século 19. O ensopado de carne era feito com carnes mais baratas, que exigiam cozimentos mais longos. Guarda lembranças com receitas portuguesas, de pratos de carnes bovinas, com seus molhos encorpados, com base em vinho, como o bife à Café, tradição de Lisboa, e mesmo o pica-pau, um petisco típico que se parece um pouco com o nosso bom e velho filé aperitivo. Foi, porém, no Copacabana Palace que ele ganhou status de prato especial, e refinado, conquistando as elites. Nos anos 1940 o hotel inaugura a sua boate, chamada de Meia-Noite, porque abria as portas a essa hora. Foi quando o o barão austríaco Maximilian Von Stuckart, espécie de diretor-geral do Copa, pediu para o chef-executivo, o francês Paul Ruffin, fazer a sua versão do picadinho. O jornalista e pesquisador J.A. Dias Lopes descreveu a receita desenvolvida por ele: “Levava pontas de filé mignon refogadas na manteiga e temperadas com sálvia, manjericão, segurelha, alecrim, sal e pimenta, além de tomate e um pouco de farinha de trigo para ligar a carne, que cozinhava por dez a vinte minutos. Era servido úmido em uma panelinha ou travessa de barro, com arroz, agrião picado, pimenta-malagueta, farinha de mesa e ovo poché por cima.” Banana frita, ou à milanesa, farofa, caldinho de feijão, milho verde, ervilha, couve frita e outras guarnições e complementos que se tornaram comuns atualmente, como o quiabo usado no ensopado do Málaga, não eram utilizados no picadinho da Meia-Noite, como o prato ficou conhecido a partir de então, nome usado ainda nos dias de hoje em alguns cardápios.

– Tenho provado muitos picadinhos recentemente, e a maioria me decepciona. Gosto do picadinho do Guimas, um dos pratos mais icônicos do Rio. Muitos consideram o picadinho do Guimas uma referência definitiva — tanto que virou prato obrigatório de cariocas e estrangeiros que frequentam o restaurante. O Guimas conseguiu elevar o picadinho à categoria de clássico da gastronomia carioca de restaurante: fiel à tradição, mas com apresentação e qualidade que o transformaram em “alta cozinha do conforto” – diz o especialista Guilherme Studart, autor do guia Rio Botequim, autoridade em cozinha tradicional carioca.

Ele lembra do restaurante Fred, em Brasília, como seu picadinho preferido, uma amostra de como a receita se tornou popular em todo o país (em São Paulo, usam pastel de carne, não se sabe bem o porquê).

– No geral, todo picadinho tem a sua santíssima trindade: carne, arroz e farofa. Esses não falham nunca. Já os “coadjuvantes”, batata palha ou frita, ovo (pochê ou estalado), banana dourada na frigideira e até um feijãozinho, aparecem ou desaparecem conforme o humor da cozinha. É quase como se cada picadinho tivesse sua própria personalidade. Eu gosto do picadinho na seguinte composição: filé mignon bem temperado e cozido no vinho, arroz, farofa (mas nada daquela de panko, que definitivamente não é pra mim), ovo pochê de gema escorrendo e banana empanada para adoçar a combinação. De quebra, uma porção ou um caldinho de feijão. Batata? Dispenso sem pensar duas vezes. Um clássico é o do restaurante Botequim, que oferece mais de uma versão do prato. Eu gosto do que é servido no Málaga, com quiabo, e do Fim de Tarde. O do Mosteiro também é servido com quiabo – continua Guilherme Studart. – Comi outro dia o da Curadoria e achei bem razoável. No Jobi também servem todos os dias, com arroz, farofa, feijão e ovo frito. No Botequim, há uma seção só de picadinhos, com cinco opções disponíveis (fomos lá conferir, e hoje, são apenas três: à Botequim, com arroz, aipim frito, farofa de carne-seca e caldinho de feijão; à Luiz Antônio, com arroz de linguiça e ovos mexidos, batata frita e farofa de banana; e de frango com molho de curry, como arroz de couve e batata palha).

– E os picadinhos ao molho de especiarias, e de carne-de-sol? – perguntei ao garçom do Botequim.

– Só entram às vezes, como sugestão – informou.

Resolvi investigar o assunto. Acionei o restaurateur Marcelo Torres, a quem eu sempre gosto de ouvir, referência na gastronomia carioca.

– Tenho em quase todas as casas. Eu sou apaixonado por picadinho, e modéstia à parte, o nosso é perfeito. É feito na hora, não é extra cozido. Sou viciado em picadinho e trato esse prato como alta gastronomia e como fazemos é de fato – conta o empresário, dono de vários restaurantes no Rio, como os Giuseppe (Grill, Mar e Square), o Nolita, o Yusha e o Xian. 

Fui ao Giuseppe conferir. De fato, é o picadinho do jeito que eu gosto (e o Studart também).  Carne macia e saborosa, cortada em pequeninos cubinhos, coroada por ovo poché perfeito, banana à milanesa, arroz, farofa e caldo de feijão.

Passei algumas semanas pedindo picadinho. Meus preferidos eu encontrei em lugares onde eu já imaginava, como o EA Gastronomia, que – assim como os Gajos – também tem ex-funcionários do Antiquarius na cozinha e no salão; em locais que frequento muito, como o Esplanada Grill, cuja receita leva milho verde como diferencial; e no próprio Guimas. Qual foi a minha surpresa: num evento dedicado ao Negroni, no P’Alma, da Casa Horto, eu comi um picadinho impecável, que entra com louvor na lista dos melhores do Rio. Tem personalidade própria: o picadinho da chef (no caso, a Luisa Veiga) tem um delicioso purê de banana-da-terra, além de couve crocante, ovo poché e arroz pilaf (preparado com especiarias, popular no Oriente Médio, com cor amarelada, pela cúrcuma). A carne é macia, saborosa e delicada, envolvida em delicioso molho, espesso e condimentado.

É possível perceber que o picadinho está em toda a parte, reinterpretado de várias maneiras. Na Choperia Cotovelo, na Rua da Cerveja (Rua da Carioca), é uma novidade, que entrou no menu no fim de agosto: “O Picadinho do Pereira da @choperiacotovelo é preparado lentamente no caldo com cerveja e acompanha arroz à Piamontese, batatas portuguesas, couve crocante e ovos perfeitos. Uma versão original deste prato clássico pelas mãos do chef @tchelo.barreto: lembrança ao ex-prefeito Pereira Passos, que fez ‘picadinho’ da antiga e estreita Rua da Carioca — há exatos 120 anos — em sua reurbanização inspirada em cidades europeias. Só sai sexta e sábado e são poucos pratos disponíveis.”, escreveram no Instagram, no lançamento.

Encontrei o prato em muitos menus executivos, de almoço nos dias de semana, como o Rubayat, o Zinho Bier, o Aurora e o Bar da Frente. No Rudä, em Ipanema, o prato infantil é o picadinho de mignon, com purê de batata cremoso, ou a massa da casa na manteiga.

Coincidência ou não, enquanto apurava essa matéria eu fui convidado a provar o novo menu do restaurante Quitéria, no térreo do hotel Ipanema Inn. Um dos pratos sugerido para aquela noite pelo maître foi o picadinho de mignon, com arroz, farofa, banana-da-terra assada, ovo perfeito e couve.

O picadinho carioca é o passado, o presente e o futuro da gastronomia do Rio de Janeiro. Para a nossa sorte, e alegria.