PERSONALIDADE: RENÊ SILVA, O CRIADOR DA VOZ

Renê Silva com Washington Quaquá, diretor da Rio Já

Aydano André Motta

Quando dobrou na viela por onde passou a vida inteira, Renê Silva avistou um menino com fisionomia familiar. Difícil lembrar com exatidão de onde – afinal, é tanta gente, tantos lugares, tanto trabalho, tantas interações… A busca na memória se encerrou na fala do garoto, que, de uniforme escolar, aparentava 11 anos no máximo: “Chegamos longe, hein? E vamos em frente, para mais 20 anos”, comentou, num sorriso vitorioso, antes de desaparecer na outra esquina.

A cena existe somente na magia dos territórios pontilhados por preceitos, rezas, coragem, resiliência, criatividade. Predicados que marcam a trajetória de Renê Silva, um dos mais importantes empreendedores sociais do país, a partir do Conjunto de Favelas do Alemão, onde nasceu e vive até hoje. Numa jornada que conjuga determinação e pragmatismo, ele consolidou-se como um dos maiores exemplos de talentos oriundos das periferias brasileiras.

Agora, Renê promove passeios exclusivos pelo Alemão, para mostrar a favela, sua realidade e demandas, seus encantos e surpresas, a visitantes com potencial para se tornarem parceiros em ações comunitárias. Como se dizia antigamente, o ativista, incansável, não dá ponto sem nó. “É uma ideia orgânica”, resume. “Quem não conhece a realidade, vem conhecer e apoiar trabalhos sociais. Tento fazer pontes”.

Há duas décadas, desde que era um menino de uniforme, com 11 anos e a energia para batalhar pelos seus. Assim, Renê, então aluno da Escola Municipal Alcide de Gasperi, em Higienópolis (Zona Norte carioca), fascinou-se pelo jornal e a rádio do grêmio estudantil, mas, muito jovem, não foi aceito nas equipes.

Começou naquela negativa sua admirável história de empreendedorismo social. Alguns meses depois, procurou a diretora da escola, Thalma Romero, com a ideia de produzir um jornal para circular no morro do Adeus, uma das favelas do Alemão, onde morava. Antes, criou uma rádio comunitária, veiculando informações úteis para os moradores, utilizando o equipamento de um tio, que trabalhava nos bailes funk da região.

“Sempre gostei muito de ler. Meu avô comprava o jornal domingo, eu lia a semana toda e nunca via a favela representada”, recorda. “Quando citavam, era tiroteio, mortes, violência. Não aparecia nada de bom – e havia o que mostrar, tinha certeza”. O incômodo de Renê sensibilizou a diretora da escola, que deu o estratégico apoio inicial. Dia 15 de agosto de 2005, saiu o primeiro número do “Voz da Comunidade” – dois pares de páginas numa folha A4, dobradas, reproduzidas na fotocopiadora da única papelaria da vizinhança. Cem cópias, escassas e promissoras.

Renê promove passeios exclusivos pelo Alemão, para mostrar a favela, sua realidade e demandas, seus encantos e surpresas, a visitantes com potencial para se tornarem parceiros em ações comunitárias

O sucesso foi instantâneo – e enorme. Falar dos inúmeros problemas da comunidade, da falta de esgoto à escassez de oportunidades, da iluminação precária à ausência do poder público, mobilizou a população do Adeus, que mergulhou de corpo e alma na iniciativa. “Os problemas eram solucionados quando saíam no jornal, o que incentivava a participação das pessoas”, relembra Renê. “Os comerciantes também apoiaram e pude crescer o jornal”.

O número de páginas dobrou, outras pessoas da região passaram a trabalhar no Voz, e o então adolescente ficou mais conhecido no conjunto de favelas da região da Leopoldina, mas era desconhecido fora dele. Até 2010, quando, durante a tensa ocupação para instalação da Unidade de Polícia Pacificadora, transformou-se em correspondente, utilizando o Twitter como plataforma de circulação das informações. “No início, minha família ficou com medo, falar dentro da favela era muito arriscado. Mas não sofri ameaça”, relata ele, que, então com 17 anos, morava com a mãe, os irmãos e os avós, no Adeus.

“Foi muito confuso”, narra, “um menino de comunidade ir ao vivo em programas de televisão. Demorei a entender a grandiosidade daquilo”. A equipe passou a ter 10 integrantes, todos crianças e jovens da região. “Achava que seria algo comunitário, social, nada que tivesse tanta proporção”. Mas Renê encarou a missão que o destino legou – e o jornal não parou mais de crescer. Virou “Voz das Comunidades”, no plural, como portal que trata de todas as favelas da região metropolitana.

Nem a complexa geopolítica das facções criminosas do Rio parou o jornal de Renê. “A gente faz matérias em todas as comunidades”, garante ele, que, mês passado, publicou reportagens sobre a Cidade Alta, controlada pelo Terceiro Comando, rival do Comando Vermelho, dominante no Alemão. “Circulamos bem em todos os espaços”.

Não há fronteiras que parem Renê, hoje comunicador, empresário e palestrante, conhecido mundo afora, dono da R Burguer, na sua comunidade, e parceiro de empresas como Águas do Rio, Ambev e iFood, além da prefeitura carioca. Ele viaja o mundo dando palestras e participando de seminários. Os carimbos no passaporte somam 20 países. “As pessoas querem saber como é a vida dentro da favela, se é realmente como passa na televisão”, simplifica ele. “São leigos distantes da nossa realidade. Mas o interesse é muito grande”.

Renê Silva é doutor em fazer dos limões deliciosas limonadas – isso numa comunidade que ostenta outro comunicador poderoso, Raull Santiago (perfil na Rio Já em 2023). Parceiros, são diferentes na forma – um suave, conciliador, pragmático; o outro, vulcânico, intenso, veemente – e irmãos no conteúdo e nos objetivos. Amigos, na pandemia uniram-se para criar o Gabinete de Crise do Alemão (com outra ativista, Camila Moradia). “Temos estilos diferentes, dialogo com o governador, faço projetos com a UPP. Ele é mais combativo”, define Renê. “Temos identidades próprias, mas somos parceiros e amigos”.

A pandemia, aliás, foi dos poucos momentos nos quais o ativista deixou a comunidade. Diante das missões que o obrigavam a circular – na desigualdade nacional, isolamento social foi privilégio de rico –, ele escolheu se mudar para a Lapa e, assim, evitar o contágio dos avós. “Ficava na rua o tempo todo e, com medo de contaminar minha família, me mudei”, confirma.

Além disso, morou ano e meio nos EUA, para estudar inglês. Conseguiu cursos gratuitos que o levaram a estados como Califórnia, Nova York e Tenessee. Tudo para turbinar a rotina de palestrante, mas sempre conectado à favela. Hoje, o Voz das Comunidades roda 15 mil exemplares a cada edição mensal e mantém portal com farto conteúdo sobre as favelas cariocas. São 33 profissionais fixos na equipe, além de colaboradores espalhados pela cidade.

E Renê? Na favela, sempre. “Consigo estar mais próximo do dia a dia da comunidade, conectado com a realidade. Não tenho urgência de sair, mesmo se morar fora, continuarei com os projetos aqui. Nunca vai sair da minha vida”, garante, numa profissão de fé que completou 20 anos, e durará para sempre.